Deus brasileiro

Como foi que nos imbecilizamos tanto? Como chegamos a níveis tão baixos de debate político e tentativa de exercício de cidadania? Quem nos levou para esse beco escuro onde o povo está dividido entre mocinhos e bandidos?

Fonte: guiame.com.brAtualizado: sexta-feira, 17 de outubro de 2014 às 13:50
Brasil
Brasil

BrasilPoucas coisas me entristeceram tanto nesse processo eleitoral quanto contemplar o mapa do Brasil indicando os resultados do primeiro turno. A metade superior: norte e nordeste, absolutamente vermelha PT, enquanto a metade inferior: centro-oeste, sudeste e sul, predominantemente azul PSDB.

Quaisquer que sejam as considerações feitas, suspeito de duas coisas aparentemente óbvias: não vivemos numa democracia, e estamos cativos de pensamentos extremados e de índole totalitária.

Luiz Carlos Heinze (PP–RS), que declarou que índios, quilombolas e LGBT são “tudo o que não presta”, e Jair Bolsonaro (PP–RJ), foram os mais votados em seus estados.

Geraldo Alckmin venceu em 644 das 645 cidades do Estado, e na capital ficou em primeiro lugar em 54 das 58 zonas eleitorais. Aécio Neves venceu em 88% dos municípios paulistas.

Não obstante ter sido chamada de “a nova cara da direita”, há quem acredite que Marina Silva representa um retrocesso ao pensamento gramsciano, opinião que acabo de ler no meu SMS.

Corre pelos quatro ventos a sugestão de que “ninguém, a não ser o PT, gosta de pobres; ninguém, a não ser o PT, quer o bolsa família; ninguém, a não ser o PT, se preocupa com o salário mínimo”. Palavras atribuídas a Chico Buarque, dão conta que “antes do PT chegar ao poder, teve uma turma que ficou 500 anos mandando aqui no Brasil e esse país se tornou um paiséco de 5° mundo”.

Em sua coluna semanal na Folha, Reinaldo Azevedo afirma que “o PT nunca foi revolucionário”, atua conforme “o modo da esquerda totalitária”e “se organiza para por a seu favor o ódio, o rancor e o ressentimento” e mantém o povo refém de seu “assistencialismo chantagista”.

Levy Fidélix, segundo Luciana Genro, poderia ter saído algemado do debate realizado pela Rede Record, sob acusação de homofobia. No mesmo dia em que Malala Yousafzai, a menina muçulmana, recebia o prêmio da Paz, Silas Malafaia se pronunciava com suas usuais palavras conciliadoras e pastorais conclamando o povo nordestino a dar uma resposta a “esses vagabundos e bandidos”, referindo-se ao PT.

Até o mais simplório observador perceberá que os fatos, comentários e opiniões relatados acima passam longe de qualquer virtude relacionada a moderação, bom senso e abertura ao diálogo, busca de entendimento e aproximações para o desenvolvimento de pensamentos convergentes, e espírito de conciliação, imprescindíveis ao processo democrático.

O Brasil padece de um surto maniqueísta. “As discussões em redes sociais sobre as eleições fizeram aumentar em 84% o número de denúncias de crimes de ódio cometidos na web”, informa a Folha de S.Paulo. “As páginas incluem conteúdo relacionado a racismo, homofobia, xenofobia, neonazismo e intolerância religiosa”.

Gregório Duvivier, que admiro, disse que não vota feliz em nenhum dos dois candidatos: Dilma e Aécio. E explica: “não importa quem ganhe, já começa endividado – e vai quitar a dívida com dinheiro público. Ambos contraíram empréstimos milionários com empreiteiras, bancos, com a Friboi (sim, a Friboi doou a mesma quantia para os dois candidatos – não quis correr riscos) e fizeram acordo com os setores mais reacionários da sociedade. Ambos os governos – não se enganem – vão ser ruralistas, fundamentalistas e corruptos. Seu dinheiro, eleitor, já está comprometido”, declarou na Folha.

Disse também que no imaginário popular “quem defende causas humanitárias e direitos civis é tachado de petista”, e portanto, não lhe resta outra opção senão “aceitar essa pecha”. Já o comentarista de twitter do artigo do Duvivier carregou na tinta da polarização: “Tenho um bom motivo para votar em Dilma, racistas, homofóbicos e preconceituosos contra ela”. Em síntese, quem vota Aécio é racista, homofóbico, e preconceituoso. Quem vota Dilma é defensor dos direitos civis e das causas humanitárias.

“Da esquerda à direita no espectro político, há uma forte tendência a reforçar posicionamentos que legitimam uma estética da violência e da discriminação”. Alguns dos que estão mais à esquerda atribuem todos os males do país à elite branca paulista. Provavelmente revidam o ataque feito em 2010, quando Dilma saiu consagrada no Nordeste, quando uma aluna de direito postou em seu twitter que “nordestino não é gente (sic). Faça um favor à SP: mate um nordestino afogado” (será que a falta de chuva é porque Deus está castigando a terra da garoa?). Após a divulgação dos resultados do primeiro turno o ódio social se manifestou. Expressões como “esses paulistas têm que morrer de sede”, “esses paulistas são desprovidos de inteligência”, e “vontade de afogar esses paulistas”. Um grupo de médicos teve a desfaçatez de propor a castração de eleitores petistas. Outros afirmam que Dilma “só ganha voto do povo burro do Nordeste”. “Um jornalista mineiro chegou a propor que o Brasil fosse dividido em dois, Norte/Nordeste e Sul/Sudeste, e arrematou: “Dilminha ficaria com seus preguiçosos eleitores bolsistas fazendo uma cesta [sic] em redes nordestinas e nós com Aécio e demais trabalhadores esclarecidos, na banda de baixo, com mangas arregaçadas botando lenha na fogueira da produção desse país” (informações colhidas no artigo “Fraturados pelo ódio e pelo preconceito”, de Marco Antonio Carvalho Teixeira e Renato Sérgio de Lima, na Folha).

Começam a circular com mais intensidade na internet os videos de destruição da imagem dos dois candidatos e seus respectivos partidos e aliados. Willian Bonner usa o palanque do Jornal Nacional para demolir a reputação da presidente Dilma, cujo governo foi manchado por escândalos de corrupção e desvios éticos nos ministérios da agricultura, cidades, esportes, transportes, trabalho, saúde, turismo, além da Petrobras, objeto de duas CPI no Congresso, e uma elite condenada e encarcerada como corruptos, mas tratados pelo PT como guerreiros e vítimas de injustiça, contrariando a setença do maior tribunal de justiça do país. Do outro lado, um certo policial civil mineiro sobe no palanque do Youtube para adjetivar Aécio de “pilantra, bandido de carteirinha, playboy, viciado, noiado”, acusado de “beneficiar e estar envolvido com tráfico de drogas em Minas Gerais”, participar de uma quadrilha que chega ao absurdo de conspirar contra a vida de quem o denuncia. Mais uma vez, há quem defenda que os dois presidenciáveis não merecem a cadeira no Planalto, mas uma cela nada confortável num presídio de segurança máxima.

Será mesmo que essas eleições presidenciais deixaram como souvenirs para a história as bonequinhas “Petralhinha, a boneca canalhinha”, e “Reacinha, porque ser escroto é uma gracinha”, criadas pelas equipes das campanhas de Aécio e Dilma por ocasião do dia criança?

O circo está montado. Os dossiês correndo solto. Os bonecos manipuláveis para destruir reputações guardando discretamente envelopes no bolso. Os marketeiros varando a noite para criar na escuridão o que se envergonham de fazer à luz do dia. Um punhado de militantes se revezando no plantão para reagir com violência qualquer manifestação contrária ao seu candidato. Beneficiados e beneficiários das estruturas carcomidas pela corrupção tratando de proteger seus privilégios. E mais poderia ser dito, uma vez que a maldade humana não encontra limites.

Como foi que nos imbecilizamos tanto? Como chegamos a níveis tão baixos de debate político e tentativa de exercício de cidadania? Quem nos levou para esse beco escuro onde o povo está dividido entre mocinhos e bandidos? A quem interessa esse surto maniqueísta? Como podemos escapar dessa armadilha que traz consigo as sementes do totalitarismo e conspira contra a democracia e o Estado de Direito?

Independentemente dos resultados das urnas no próximo domingo 26 de outubro, é urgente que todos nós cidadãos, homens e mulheres de boa vontade, celebremos um pacto em defesa da justiça e da paz social.

Em dias de polarização tenho apenas uma certeza. Somente o compromisso a favor “do órfão, da viúva, e do estrangeiro” - expressão exaustivamente repetida pelos profetas hebreus que abrange os sem vez e sem voz, a solidariedade e o serviço ao pobre, e a luta incansável pela erradicação da pobreza e da miséria, poderão sustentar a esperança de que Deus seja mesmo brasileiro.


- Ed René Kivitz

 

Este conteúdo foi útil para você?

Sua avaliação é importante para entregarmos a melhor notícia

Siga-nos

Mais do Guiame

O Guiame utiliza cookies e outras tecnologias semelhantes para melhorar a sua experiência acordo com a nossa Politica de privacidade e, ao continuar navegando você concorda com essas condições