Deserto e completo do gueto

Sempre que visito outras culturas me percebo da estreita janela que me permite ver o mundo. A fresta que me possibilita contemplar a vida também me condiciona imaginar que minha religião é dona de uma narrativa capaz de responder aos dilemas dessas outras culturas

Fonte: guiame.com.brAtualizado: sábado, 31 de maio de 2014 às 09:01
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desertoAlguém já disse que o universo é bem mais vasto que nossas certezas sobre ele. Depois de correr uma ultramaratona – 104 quilômetros em três dias – no Saara da Tunísia, estou certo de que a afirmação está correta. A Tunísia, que protagonizou a Primavera Árabe, é um país extremamente pobre e burocrático. Irritantemente lento. O avião não sai no horário. O ar-condicionado – necessário para um calor de 50 graus – não esfria. No aeroporto, apesar dos avisos de não fumar, policiais, pilotos e povão empesteiam o ar com baforadas desavergonhadas.

A bordo de um ônibus precário (os amortecedores deviam estar quebrados há seis anos) Villy Fomin e eu rumamos de Djerba para um oásis no meio do deserto. Cinco horas depois, chegamos. Ao fim da jornada, me dei conta: não passamos por nenhum posto de gasolina. Se nosso cacareco avariasse, ficaríamos quantas horas na beira da estrada?

Ainda meio longe do oásis, vimos camelos na paisagem – assim como os jegues nordestinos, camelos parecem animais abandonados, jogados à própria sorte inóspita.Só depois me dei conta de que eles anunciavam que o oásis estava próximo. Água, atrai, além dos camelos, passarinhos e gente.

Passamos por alguns barracos paupérrimos antes de chegar à ilha verde. Pensei que ali morava menino, menina, mulheres e homens. Lembrei: eles vivem no mesmo planeta de gente como o príncipe de Mônaco, George Clooney, Serena Williams, Fernando Collor e Vanessa Popozuda. Embora residentes na mesma terra, um beduíno e um parlamentar estadunidense estão anos luz distantes um do outro. Atinei que meu entorno filosófico-teológico-conceitual jamais tangenciará o daquelas pessoas. Eles sobrevivem com tão pouco. Mal sabem que a terra está ameaçada pelo meu estilo de vida e que nós os estereotipamos como inimigos da civilização.

Sempre que visito outras culturas me percebo da estreita janela que me permite ver o mundo. A fresta que me possibilita contemplar a vida também me condiciona imaginar que minha religião é dona de uma narrativa capaz de responder aos dilemas dessas outras culturas. Tacanho, suponho que minha moral sirva de norma para os comportamentos das outras etnias – sem considerar tempo e espaço. Resumindo: no interior da Tunísia, no meio do deserto, concluí: eu tenho que lutar contra uma mentalidade de gueto. Entretanto, o que caracteriza mentalidade de gueto?

1) A atitude nós contra eles. Quando nosso jeito de ser, viver, pensar e falar se torna normativo o outro será sempre um “desafio”.

2) O hermetismo. O conhecimento de outros povos, além das fronteiras do nosso grupo, é visto como uma ameaça à verdade. Desenvolve-se não apenas medo ao saber, mas ódio.

3) A opção pelo simplismo. O pensamento hegemônico do grupo descarta a complexidade da vida por acreditar que sua rede de sentidos basta como resposta à grande variedade de culturas, percepções espirituais e religiosas de outros povos. A razão crítica cede ao chavão. Clichês substituem ideias.

4) O narcisismo coletivo. A ideia de predestinação, eleição ou destino manifesto (responsável em grande parte pela dominação, escravidão e colonialismo que marcaram os avanços da modernidade) autentica o direito de exportar estilo de vida, divindade, regra religiosa e cultura. A partir desse conceito, a Espanha se valeu de Cristo para rapinar a América Latina e a Inglaterra, para sucatear e saquear a Índia. Vale a lógica: eles precisam do nosso deus e nós precisamos do ouro deles.

5) A paranoia. Com fronteiras estanques, herméticas, fica fácil para qualquer líder inescrupuloso, ambicioso pelo poder, jogar a culpa pelas mazelas que o grupo sofre em bodes expiatórios. A culpa é deles, tão diferentes de nós. Eles atraem a ira de Deus. Se deixarmos esse povo continuar, eles podem representar o fim do nosso estilo de vida.

As lógicas ensimesmadas de meu mundinho se mostraram ridículas e querem me tornar belicoso e intolerante. Corri a ultramaratona com uma equipe de apoio. Eles nos garantiam água e atendimento médico caso não suportássemos a areia frouxa, o calor de mais de cinquenta graus e a absoluta solidão. Reconbheci a tenacidade dos beduínos. Eles sobrevivem sem GPS, guiados pelas estrelas e pelo instinto. O mundo deles tem vastas dunas. É um mar inabitado. Só consegui ver lagartixas (que pareciam albinas), escaravelhos moscas e formigas. Eu não aguentaria mais que a semana que passei por lá. Aquele povo é forte, diferente de mim, nunca inferior. Nossa realidade jamais se confundiria, temos peculiaridades tão distintas. Todavia, estou certo de que todos são especiais, filhos de Deus.

Soli Deo Gloria


- Ricardo Gondim

 

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