Os religiosos são os primeiros a carecerem de salvação

O fermento que pode estragar o projeto de Deus para a humanidade pode vir, prioritariamente, dos autoproclamados salvos. Da arrogância de quem se vê eleito, o veneno da hipocrisia pinga devagar. E entre os religiosos, maior tentação sofre quem se considera ungido

Fonte: Guiame, Ricardo GondimAtualizado: sexta-feira, 30 de janeiro de 2015 às 10:46
Homem no oúlpito
Homem no oúlpito

Entre as parábolas que Jesus contou, uma inquieta bastante. Eis a narrativa de Lucas 18.9: “Dois homens subiram ao templo para orar; um era fariseu e o outro publicano. O fariseu em pé, orava silenciosamente: ‘Deus, eu te agradeço porque não sou como os outros homens: ladrões, corruptos, adúlteros; nem mesmo como este publicano. Jejuo duas vezes por semana e dou o dízimo de tudo quanto ganho’. Mas o publicano ficou à distância. Ele nem ousava olhar para o céu, mas batendo no peito, dizia: ‘Deus, tem misericórdia de mim, que sou pecador’.

O arremate de Jesus veio como um cruzado de esquerda no queixo dos religiosos: Eu lhes digo que este homem [o indigno publicano] e não o outro [o moralista religioso] foi para casa justificado diante de Deus.

Ao contrário do que a maioria pensa, os religiosos são os primeiros a carecerem de salvação. O fermento que pode estragar o projeto de Deus para a humanidade pode vir, prioritariamente, dos autoproclamados salvos. Da arrogância de quem se vê eleito, o veneno da hipocrisia pinga devagar. E entre os religiosos, maior tentação sofre quem se considera ungido.

Por isso Jesus quer salvar televangelistas, pastores, apóstolos e bispos. O evangelho promete redimir, inclusive, estrelas de primeira grandeza da religião. Mesmo difícil, o clero profissional pode ser alcançado pelo amor de Deus. Nenhum burocrata da fé está irremediavelmente perdido. Jesus salvou gente bem escolada no bê-a-bá da religião como Nicodemos, Zaqueu e Saulo de Tarso. Depois, o Novo Testamento lembra que o juízo divino começa pelas sacristias e gabinetes pastorais.

A grande mensagem do evangelho é que Deus ama a todos, incluindo, embusteiros, charlatões, exorcistas e cambistas do templo. Jesus deseja resgatar os cínicos que mantém seus colarinhos clericais alvejados no polvilho do oportunismo institucional. Milagreiros podem ser tocados e se arrependerem. Se é verdade que todos podem herdar a vida eterna, o que seria necessário para a salvação de um religioso?

Salvação chega à casa do religioso se ele se dispor a calçar as sandálias do pobre. Discursos idealizados, sem conexão com a realidade, se esvaziariam caso o sacerdote fosse obrigado a esperar por atendimento no banco enferrujado do ambulatório público. O evangelista, que gasta milhões alugando horário na televisão, precisa sentir o drama da mãe solteira, negra e subempregada, que não acha creche para deixar o filho. Desses que viajam de helicóptero, todo o apóstolo deveria se dispor a passar um mês ao lado de um pai que tenta proteger o filho de traficantes. A mensagem do evangelho é simples: Jesus, um dia, há de separar os bodes das ovelhas. As ovelhas serão conhecidas pela compaixão e os bodes, pela leviandade com que encaram a sorte do pobre.

Todo o que ostenta em nome do Nazareno precisa de salvação. Luxúria, desde a Idade Média, é pecado capital. Anéis, relógios e automóveis caríssimos apontam para um desvio grave: vários pastores e bispos embarcaram no carreirismo religioso. Muitos, vindos de infância pobre, usam a Bíblia para compensar a marginalização econômica que experimentaram um dia.

Cristo pode salvar o pastor que se mostrar sensível diante do que amarga horas em sessões de hemodiálise, da família que espera por transplante de pulmão para o familiar, do mutilado e paraplégico que reaprendem a andar em clínicas de fisioterapia, da crianças com câncer das Unidades de Tratamento Intensivo.

Os que vivem da oratória podem ser resgatados caso aprendam a se solidarizar com os refugiados de guerra. Há esperança para o sacerdote que valoriza o esforço dos Médicos sem Fronteiras – eles cuidam do refugo humano em grotões miseráveis mundo a fora. Enquanto um pastor tagarelar doutrina, no máximo, gera prosélitos – mas condena a si e seus seguidores ao inferno duplo da carolice.

Jesus pode libertar televangelistas desde que se resguardem de espoliar motoboy que arrisca a vida para ganhar um salário minguado, empregada doméstica que se submete a semi-escravidão, carvoeiro que vive na boca das fornalhas ou enfermeira que enfrenta longos plantões em hospital público. 
Pastor que insiste em propagandear superstição como milagre deve saber que está se comportando como o cego que guia cego.

Deus não tem prazer na perdição de nenhum religioso. Jesus insiste: Eis que estou à porta e bato. Ele quer entrar e cear na casa do piedoso que se fechou para ele. Enquanto perdurar o sistema que legitima a falsa piedade e pessoas se valerem do sagrado para confundir alucinação religiosa com esperança, é preciso voltar à parábola de Jesus. O fariseu, que se orgulhou de ser mais piedoso do que o pecador, saiu sem ser justificado e ainda ouviu: Pois quem se exalta será humilhado e quem se humilha será exaltado.

Soli Deo Gloria

 

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