Saudade de um tempo irredutível

Saudade de um tempo irredutível

Fonte: Atualizado: sábado, 31 de maio de 2014 às 09:03
saudadeSou de Fortaleza. Morei no barro da Gentilândia, pertinho do estádio de futebol Getúlio Vargas. Nossa casa ficava nas bicas da concha acústica da Universidade Federal. Estudei em um grupo escolar numa rua apelidada de Cachorra Magra. Cheguei a nadar em um canal fétido – que transbordava nas chuvaradas. Na minha terra, inverno só chove, sem frio. Passei a infância, livre, leve e solto.
 
Havia quatro cinemas em Fortaleza: São Luis, Diogo, Majestic e Arte. O São Luis exigia paletó em todas as sessões. Para não perder o filme do Elvis Presley, precisei pedir um emprestado. Devo ter ficado ridículo com o casaco folgado e as mangas no meio da palma da mão.
 
Os Jogos Universitários mobilizavam a cidade. O Clube dos Estudantes Universitários, o CEU, hospedava as grandes partidas entre os dois times de rivais do futebol de salão: Administração e Medicina. Para assistir aos jogos, pulei o muro do CÉU muitas vezes.
 
A praia de Iracema parecia longe. As ruas eram bucólicas e as alamedas, calmas e acolhedoras. Lembro que o Hotel Iracema Plaza parecia um ferro de engomar – um edifício fantasmagórico no meu olhar adolescente. Se queria ir à praia, tinha que pegar ônibus. O Circular 1 levara e o Circular 2 voltava. Poucos conseguem imaginar o sufoco da viagem para casa, às duas da tarde, com fome e sede. Suor se misturava ao sal e areia e a gente se sentia um bife à milanesa.
 
Prestei o Exame de Admissão no Liceu do Ceará. O Liceu era considerado uma escola modelo, onde passaram homens importantes do Ceará. Estudar em escola pública dava status. Alguns colégios particulares tinham a fama de pagou passou. Entrei para o ginásio no começo da decadência do ensino público no Brasil.
 
A vida social gravitava nos clubes. O Ideal Clube era frequentado pelos grã- finos, o Náutico, pelos pequenos burgueses e o Maguary, por uma classe média bem média. Os clubes davam festinha de dança chamada tertúlia. Os adolescentes iam às tertúlias no domingo pela manhã, as matinês. Quando aconteciam à tarde, entre 5 e 8, os bailinhos se chamavam vesperais. Como não conseguíamos ser sócios nem do Maguary, restava a solução de praticar esporte. Natação, judô, basquete, fiz de tudo para ganhar carteira de sócio atleta.
 
Andávamos pelas ruas Liberato Barroso e Guilherme Rocha à noite, sem medo nenhum. Os gatunos daquela época não passavam de pés-raspados, que não metiam grande medo. Os vigilantes noturnos, senhores aposentados, vagavam pela madrugada com um apito. Cada assobio anunciava segurança; podíamos dormir seguros. Eu os confundia com lobos –  e por causa dos vigias noturnos, sempre achei que lobos são do bem. Hoje, a paranóia de morrer em algum assalto tomou conta de todos.
 
As prostitutas trabalhavam perto da Light, em duas ladeiras: uma, encostada à Penitenciária e a outra, ao lado da Santa Casa de Misericórdia. A zona era conhecida como Rampa - rampeira é palavrão em Fortaleza. Pouco sei da Rampa, território proibido para meninos.
 
Dava para aguentar o calor do Ceará – hoje, insuportável.
 
O único canal de televisão passava os Intocáveis e Bonanza. As novelas eram feitas nos estúdios da TV Ceará. Eu gostava do ator Emiliano Queiroz. Recordo que em um episódio sobre a paixão de Cristo ele abraçou a cruz. Nunca esqueci as suas mãos ensanguentadas, agarradas ao madeiro.
 
O progresso não fez bem a Fortaleza. A cidade dá a impressão de ter sido toda remendada. Chegaram turistas às pencas. A miséria foi empurrada para longe. Quem vai à beira-mar não sabe das condições de quem vive na periferia. Fortaleza se despersonalizou em uma caricatura pobre de Cancún.
 
Quando volto, mal reconheço os lugares por onde andei descalço. Procuro amigos e não os encontro. Passados tantos anos, não passo de mais um estrangeiro em minha própria terra.
 
Apesar de nunca ter sido tão achincalhado e odiado como em Fortaleza, dediquei a ela meus melhores anos. O tempo é irredutível. Sinto que preciso deixá-lo ir, enquanto procuro me apegar à memória. A saudade, entretanto, não dá trégua.
 
Soli Deo Gloria 
 
 
- Ricardo Gondim
 

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