Cada geração de cristãos deve ter o firme compromisso de basear sua fé somente na Palavra de Deus – “a Igreja reformada deve estar sempre se reformando”, isto é, “sempre voltando às Escrituras Sagradas” como a única revelação que a Igreja deve obedecer. Esse princípio nos ensina que a igreja não deve ficar inventando novidades, mas deve pregar e ensinar tão-somente o puro e claro evangelho de Cristo como revelado nas Escrituras. No dia 31 de outubro celebramos a data em que, em 1517, é dito que Martinho Lutero afixou na porta da Igreja do Castelo, em Wittenberg, suas famosas “Noventa e Cinco Teses”, começando a Reforma Protestante. Só que este movimento de retorno às Escrituras não se restringiu apenas à Alemanha. E seu impacto também não se restringiu a questões teológicas divorciadas da realidade, mas buscou de igual forma responder aos grandes problemas sociais daquela época.1
1. Martinho Lutero
Martinho Lutero (1483-1546) se esforçou para diminuir o abismo entre a fé salvadora e a ação social2. O desejo de agir em prol dos necessitados apareceu resumidamente nas “Noventa e Cinco Teses”, nas quais Lutero argumentou que é melhor dar aos pobres e emprestar aos necessitados que comprar indulgências: “Deve se ensinar aos cristãos que, dando ao pobre ou emprestando ao necessitado, procedem melhor do que se comprassem indulgências” (Tese 43). Esta medida serviu para providenciar uma verba para o sustento dos pobres e, ao mesmo tempo, estimular o envolvimento da população na assistência social em Wittenberg.
Para Lutero, o cristão justificado se torna livre para poder, por meio da fé, viver uma vida de serviço decorrente do amor a Deus. A ação social é decorrente de uma mudança baseada na liberdade da justificação pela graça por meio da fé. O resultado será um novo compromisso moral com a sociedade, na medida em que os necessitados fossem amparados.
Sobre o papel dos pastores na transformação social, em sua “Prédica para que se mandem os filhos à escola”, ele escreveu:
“[O pregador atua] em favor das almas, livrando-as do pecado, da morte e do diabo. No entanto, ele também realiza tão somente grandes e imponentes obras em favor do mundo: ensina e instrui todas as categorias sociais como se devem conduzir exteriormente em seus cargos e posições, para agirem com justiça perante Deus. Pode consolar os tristes, aconselhar, intermediar em casos de conflito, reconciliar consciências confusas, ajudar a manter a paz, a reconciliar, a viver em harmonia e inúmeras obras mais diariamente. Pois um pregador confirma, fortalece e ajuda a preservar a autoridade, toda a paz secular, resiste aos sediciosos, ensina obediência, bons costumes, disciplina e honra; instrui pai, mãe, filhos, empregados, em suma, a cada qual em sua função e estado secular. (...) Para dizer a verdade, a paz temporal (...) é, no fundo, um fruto do ministério da pregação.”
Para Lutero, o cristão deve viver uma vida em que seu amor por Deus seja espontâneo, não visando qualquer recompensa material ou espiritual, mas simplesmente com o objetivo de fazer a vontade de Deus, pois a vida cristã consiste “em tudo querer o que Deus quer, buscar a glória de Deus e nada desejar para si, pois é no cuidado pelos mais fracos e desamparados que Deus é glorificado”.
2. Filipe Melanchthon
Um dos mais importantes amigos e colaboradores de Lutero foi Filipe Melanchthon (1497-1560)3. Este erudito lançou os fundamentos da escola elementar popular. O que guiava sua perspectiva do ensino era que “alguns não ensinam absolutamente nada das Sagradas Escrituras; alguns não ensinam às crianças nada além das Sagradas Escrituras; ambos os quais não se deve tolerar”.
Em 1528, seus “Artigos de visitação” para as escolas foram promulgados como lei na Saxônia, e sua obra como educador público passou a ser uma dimensão adicional em sua vida. Ele propôs a organização dos estudantes em três classes, divididas em faixas etárias. Na primeira divisão, as crianças estudavam o alfabeto, a oração do Pai-Nosso e o Credo dos Apóstolos. Na segunda divisão, eram estudados pelos adolescentes o Decálogo, o Credo e o Pai- Nosso. Os salmos mais fáceis – 112, 34, 128, 125, 133 – deveriam ser decorados, assim como deveriam ser estudados o evangelho de Mateus, as epístolas de Paulo a Timóteo, a primeira epístola de João e os Provérbios de Salomão. Tudo isto lado a lado com o estudo de física, lógica, gramática, moral e história. No último nível, o equivalente à faculdade, os estudantes deveriam se dedicar ao latim, gramática, dialética, retórica, filosofia, matemática, física e ética. Aqueles que estavam sendo preparados para ensinar na igreja, além destas matérias deveriam aprender o grego e o hebraico, pois em seu entendimento, este conhecimento deveria servir ao estudo e pregação de um evangelho puro.
Melanchthon entendia que Cristo tinha colocado toda a cultura sob seu controle, acreditando que este entendimento impediria os cristãos de viverem vidas grosseiras, enquanto, ao mesmo tempo, os impedia de atribuir mais importância à cultura humana do que à fé cristã. O estudo das letras estava sempre subordinado ao estudo das Escrituras Sagradas, mas ele disse: “Aplico-me a uma coisa, a defesa das letras. Convém que com o nosso exemplo se inflame a mocidade de admiração pelas letras, e que as ame por amor delas, e não pelo proveito que delas possa tirar. A ruína das letras traz consigo a desolação de tudo o que é bom: a religião, os costumes, coisas divinas e coisas humanas. Quanto melhor é um homem, tanto maior é o ardor que tem por salvar as letras; porquanto sabe que das pestes a mais perniciosa é a ignorância. Uma escuridão terrível cairá em nossa sociedade, se o estudo das ciências for negligenciado”. Este ensino abrangente tinha por objetivo tornar os cristãos ativos no mundo, dissipando as trevas de uma fé corrompida e supersticiosa e da ignorância.
Melanchthon também foi considerado o fundador do ensino patrocinado e sustentado pelo Estado. Pelo menos cinquenta e seis cidades procuraram sua ajuda na reforma de suas escolas. Ele ajudou a reformar oito universidades e a fundar outras quatro. Escreveu numerosos livros didáticos para uso nas escolas e, mais tarde, foi chamado o “instrutor da Alemanha” (“Preceptor Germaniae”).
3. João Calvino
O francês João Calvino (1509-1564) foi o reformador da Igreja de Genebra, na Suíça, e a ação social também estava entre as suas principais preocupações.4 Ele sustentava que em Cristo Jesus não haveria mais escravos nem livres, pois o Senhor aboliu todas as divisões de classes. Isso significa que o cristão vive a fé autêntica quando encontra seus irmãos numa fraternidade que exclui a discriminação social. Calvino jamais estabeleceu uma conexão entre riqueza ou pobreza de um lado e o favor ou desfavor de Deus de outro. Antes, ele entendeu a riqueza e a pobreza como expressões do favor ou do julgamento de Deus sobre toda a comunidade, que então deveria redistribuir livremente os seus recursos com vistas ao bem comum: “Por que é então que Deus permite a existência da pobreza aqui embaixo, a não ser porque ele deseja dar-nos ocasião para praticarmos o bem?”
De acordo com André Biéler, Calvino ensinava que “somos todos ricos em relação a alguém. O rico tem uma missão econômica de providenciar ao mais pobre parte de sua riqueza, de tal maneira que o pobre deixa de ser pobre e ele mesmo deixe de ser rico”. Esta igualdade pregada pelo reformador tem como objetivo levar os membros do corpo de Cristo à restauração social do mundo, uma vez que, pela fé, o crente em Cristo sendo restaurado à imagem de Deus reconstitui suas relações com seu próximo. Calvino ensinou que Cristo estabelece entre os membros de seu corpo uma comunhão espiritual tão intensa que esta faz com que os cristãos supram as necessidades uns dos outros. Conforme Calvino: “A vontade de Deus é que haja tal analogia e igualdade entre nós. Cada um socorra os indigentes na medida de suas possibilidades, a fim de que alguns não sofram necessidades enquanto outros têm em supérflua abundância”.
Calvino considerava os negócios como uma forma legítima de servir a Deus e de trabalhar para a sua glória. Ele via a circulação de dinheiro e os bens e serviços como uma forma concreta da comunhão dos santos, e defendia que aqueles que se envolviam em negócios deveriam ter como objetivo ajudar os pobres e os ricos. Ele pensava que seria bom restaurar o ano do jubileu – uma redistribuição voluntária periódica da riqueza, de modo que a brecha social nunca se tornasse permanente. Em um sermão, ele disse: “Deus mistura os ricos e os pobres para que eles possam encontrar-se e ter comunhão uns com os outros, de modo que os pobres recebam e os ricos repartam”.
Biéler cita “um excelente texto do reformador”, que resume o pensamento social de Calvino:
“É necessário começar por saber qual a atitude que o Senhor deseja que tenhamos diante dos bens materiais: quais os meios lícitos de ganhá-los e qual o seu uso adequado e legítimo;
Em primeiro lugar, não devemos buscar os bens terrenos por cobiça. Se vivermos na pobreza, devemos suportá-la pacientemente; se tivermos riquezas, não devemos nos prender a elas nem confiar nelas, devendo estar dispostos a renunciá-las se isso convier a Deus. Tanto o possuir como o não possuir devem ser indiferentes e sem maior valor, considerando a bênção de Deus como maior do que todas as coisas, buscando o reino espiritual de Jesus Cristo sem nos envolvermos em ambições iníquas;
Em segundo lugar, trabalhemos honestamente para ganhar a vida. Recebamos nossos lucros como vindos das mãos de Deus. Não usemos de má fé para nos apossarmos dos bens dos outros, mas sirvamos ao próximo com consciência limpa. Que o fruto de nosso trabalho seja o salário justo. Ao vender e ao comprar não usemos de fraude, astúcia ou mentira. Apliquemos ao nosso trabalho a mesma honestidade e lealdade que esperamos dos outros;
Finalmente, quem nada possui não deixe de render graças a Deus e de comer seu pão com alegria. Quem muito possui não use de glutonaria, de luxo, de orgulho e de vaidade, gastando dinheiro com coisas supérfluas; antes, seja em tudo moderado, e empregue seus bens em ajudar e socorrer o próximo, reconhecendo-se como quem recebeu seus bens de Deus e que deles há de um dia prestar contas. Devemos nos lembrar que o que tem em abundância use apenas o necessário para que o que nada tem não fique privado;
Em resumo, assim como Jesus Cristo deu-se por nós, também comuniquemos ao próximo, com amor, as graças que recebemos, ajudando-o na sua pobreza e socorrendo-o na sua miséria. Isto é o que nos cabe fazer.”5
Na prática, os pastores em Genebra intercediam diante do Conselho da cidade em favor dos pobres e dos operários. O próprio Calvino intercedeu várias vezes por aumentos de salário para os trabalhadores. Os pastores genebrinos pregavam contra a especulação financeira e fiscalizavam parcialmente os preços contra altas abusivas. Sob a influência dos pastores, o Conselho limitou a jornada de trabalho dos operários. A ociosidade foi proibida por leis: os estrangeiros que não tivessem meios de conseguir trabalho deveriam deixar Genebra dentro de três dias após a sua chegada. E os desocupados da cidade deveriam aprender um ofício e trabalhar, sob a ameaça de serem presos, se assim não fizessem. O Conselho instituiu cursos profissionalizantes para os vadios e os jovens, para que eles pudessem entrar no mercado de trabalho.6
Conclusão
Nosso atual cenário político é marcado por gastos públicos incontroláveis, aparelhamento das estatais e órgãos públicos onde o Estado é colocado a serviço de um partido, corrupção desenfreada, sistemática desmoralização dos poderes e instituições, ações sociais inefetivas, além dos inquietantes sinais de instabilidade política na América Latina. Diante disto, precisamos perguntar em que sentido a teologia social dos reformadores podem nos ajudar hoje, aqui e agora, no Brasil. Como decorrência de tal herança, a igreja evangélica (especialmente os reformados) deveria se envolver em todos estes aspectos da sociedade, “usando os meios apropriados, lícitos e legais para protestar, advertir e resistir à injustiça social, usando a pregação da Palavra para chamar ao arrependimento os governantes corruptos, os ricos opressores e os pobres preguiçosos, e exercitando obras de misericórdia e assistência social através de uma diaconia treinada e motivada. Todo este envolvimento social deve acontecer sem perder de vista que a missão primordial da Igreja é promover a reforma (parcial e provisória) da sociedade através da proclamação do evangelho de Jesus Cristo, aguardando os novos céus e a nova terra onde habita a plena justiça de Deus”.7
A assistência social tem um lugar importante na vida cristã. É um dever do cristão se engajar nas esferas políticas para influenciar o Estado, para lutar e estabelecer instituições e estruturas mais justas. Mesmo assim, não podemos colocar nossa confiança em sistemas econômicos e ideológicos. É necessário enfatizar que qualquer sistema de governo somente é tão bom quanto o são os homens e mulheres que governam. Por isso, e esta é outra lição que poderemos aprender com os reformadores, não se deve centralizar o poder nas mãos de algumas poucas pessoas, mas dividi-lo entre poderes claramente separados e equilibrados, e entre o maior número possível de pessoas. E os governantes devem sempre prestar contas ao povo, que tem o direito e o dever de afastar os injustos e corruptos do poder.8
Que Deus nos dê coragem de viver e morrer pela e na fé evangélica. Que oremos como Martinho Lutero: “Eterno Deus e Pai do Nosso Senhor Jesus Cristo, dá-nos o teu Espírito Santo que escreve a Palavra pregada em nossos corações. Que nós recebamos e creiamos no teu Espírito para sermos regozijados e confortados por Ele na eternidade. Glorifica a tua palavra em nossos corações e faz com que ela seja tão brilhante e candente que nós achemos prazer nela, e através do teu Espírito Santo, pensar o que é certo, e pelo teu poder cumprir a tua Palavra por amor de Jesus Cristo, teu Filho, Nosso Senhor. Amém!”
Notas
1. Este estudo, aqui revisado e corrigido, foi originalmente publicado pela Editora Cultura Cristã, na revista Expressão: Cidadania Cristã – Uma perspectiva reformada, em janeiro de 2002. Usado com permissão.
2. Informações baseadas em Marc Lienhard, Martin Lutero: tempo, vida e mensagem, São Leopoldo, Sinodal, 1998, p. 220-222 e Carter Lindberg, As reformas na Europa, São Leopoldo, Sinodal, 2001, p. 137-163.
3. Para as informações e bibliografia sobre Melanchthon, cf. Franklin Ferreira, Servos de Deus, São José dos Campos, Fiel, 2013, p. 203-212.
4. As informações sobre Calvino estão baseadas nas obras de André Biéler, A força oculta do protestantismo, São Paulo, Cultura Cristã, 1999, e, especialmente, O pensamento econômico e social de Calvino, São Paulo, Cultura Cristã, 2012 e O humanismo social de Calvino, São Paulo, Edições Oikoumene, 1970.
5. Citado em André Biéler, O humanismo social de Calvino, p. 72-74.
6. Augustus Nicodemus Lopes, O ensino de Calvino sobre a responsabilidade social da Igreja, São Paulo, PES, 1998, p. 20.
7. Augustus Nicodemus Lopes, op. cit., p. 23.
8. Para um desenvolvimento deste ponto, cf. Harro Höpfl (ed.), Sobre a autoridade secular: Lutero e Calvino (São Paulo: Martins Fontes, 1995).
• Franklin Ferreira
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