“O primeiro ofendido por nossas falhas é Deus e Ele não nos cancelou”, diz escritor

O advogado e escritor cristão Leonardo Dantas falou sobre as origens, definições e implicações da cultura do cancelamento pela perspectiva bíblica. E abordou como o cristão deve se posicionar diante do fenômeno.

Fonte: Guiame, Cássia de OliveiraAtualizado: segunda-feira, 3 de maio de 2021 às 19:47
Para o advogado Leonardo Dantas, o fenômeno social do cancelamento já existia há muito tempo fora do mundo virtual. (Foto: Reprodução/ Juventude AD Brasil).
Para o advogado Leonardo Dantas, o fenômeno social do cancelamento já existia há muito tempo fora do mundo virtual. (Foto: Reprodução/ Juventude AD Brasil).

Nos últimos anos, com o boom das redes sociais, influencers e haters, a internet acabou se tornando um tribunal virtual, onde figuras públicas e anônimos são incriminados e cancelados por pseudos juízes.

Em entrevista exclusiva ao Guiame, o advogado e escritor cristão Leonardo Dantas destrinchou as origens, definições e implicações do cancelamento, pela perspectiva bíblica e do Direito. E abordou como o cristão deve se posicionar nesta sociedade atual, em que cancelar pessoas se tornou cultura.

Para Leonardo, o fenômeno social do cancelamento está sendo discutido e conceituado agora, mas a prática já existia há muito tempo fora do mundo virtual e em outros termos.

“Não vejo o cancelamento como algo novo. Na Grécia Antiga, era institucionalizado no ostracismo (banimento de indivíduos que supostamente ameaçavam a democracia ateniense). Em Roma, podemos relacionar ao martírio dos cristãos perseguidos. Mais recentemente, falamos no Nazismo e logo lembramos da queima de livros contrários à sua ideologia. Enfim, onde houver sociedade, há suscetibilidade ao conflito interindividual e abertura ao cancelamento, que algumas vezes é mais velado, outras, escancarado”, lembrou o escritor.

Hoje, o cancelamento que presenciamos é uma prática típica do mundo virtual, de acordo com o advogado. Leonardo lista elementos essenciais para definir cancelamento: “Resposta a uma atitude contrária à cultura dominante; exposição pública da pessoa supostamente agressora dessa cultura; e valorização de uma suposta virtude individual/coletiva em detrimento do cancelado”, explicou.

O advogado afirma que um quarto elemento tem se tornado bem comum: “O boicote generalizado ao cancelado, influenciando não apenas sua vida social, como profissional”.

O cancelamento pelo ponto de vista bíblico

Leonardo Dantas afirma que pelo ponto de vista bíblico, o cancelamento parte da premissa errada de que o mundo é bom e algumas pessoas o corrompem. “Mas, quando avaliamos nossa história sob a perspectiva bíblica, percebemos justamente o contrário. João escreveu em uma de suas cartas que o “mundo” está sob o poder do maligno (1 João 5:19), o que corrobora com a realidade apresentada por Paulo no primeiro capítulo de Romanos, a partir do versículo 20. Ali, o apóstolo nos ensina que, tendo rejeitado Deus, o ser humano foi entregue à sua própria disposição mental para o mal (Romanos 1:28)”, esclarece Leonardo.

Dessa forma, a Bíblia mostra que o mundo e as pessoas são más. O escritor explica que quando somos salvos do mundo por Jesus, a estrutura do mundo não muda, mas o interior de quem foi salvo, no processo de santificação.

A partir dessa visão bíblica corrigida, Leonardo afirma que a cultura do cancelamento é incompatível com ao menos dois pilares da fé cristã; o perdão e a santificação. “No cancelamento expressa-se a intolerância com o erro alheio, esquecendo-se por completo que o primeiro ofendido por nossas falhas é o próprio Deus e Ele escolheu não nos cancelar. Por outro lado, ao cancelar alguém, a sociedade manifesta sua descrença na capacidade de regeneração e aprendizado; dito de outro modo, um erro é suficiente para que o cancelado perca o direito à segunda chance”, diz.

O escritor lembra que, como imitadores de Cristo, os cristãos devem perdoar seus ofensores. “Precisamos estar preparados para estender as mãos aos cancelados, pois no Reino de Deus não existe cancelamento. Em todo seu ministério, Jesus nos ensinou que o tratamento que conferimos ao próximo não tem a ver com quem é o próximo, mas sim com quem nós somos. Somos filhos de Deus, transformados pelo Espírito para amar, pacificar e evangelizar. É de nós, cristãos, que se espera o amor pelos inimigos e a oração pelos perseguidores; somos nós que temos os pontos finais para encerrar as infindáveis discussões que esfacelam a sociedade”.


A internet se tornando um tribunal virtual, onde figuras públicas e anônimos são incriminados e cancelados por pseudos juízes. (Imagem: Joe Oriade).

Canceladores: os fariseus contemporâneos

Dantas afirma que se cristãos assumirem a posição de canceladores, estarão se tornando como os fariseus: “Defender que algumas práticas são erradas não nos dá o direito de expor pessoas à ridicularização pública, sob pena de nos tornarmos fariseus contemporâneos”. E conclui: “Nós, cristãos, não podemos assumir a posição de canceladores. Para tanto, precisamos saber separar fatos de pessoas. Há leis e autoridades que cumprem a função de punir agressores e compensar vítimas”, assegura o advogado.

Leonardo revela como o comportamento dos grandes mestres da lei judaica, na época de Jesus, é muito semelhante ao que hoje denominamos de “cancelamento”, através da passagem bíblica da mulher adúltera. “Nela, os fariseus chamam para si o protagonismo da cena, expondo alguém publicamente por atos contrários aos padrões morais da época. Contudo, a intenção farisaica não era o cumprimento da lei, mas a sinalização de suas próprias virtudes e de uma justiça que só eles se entendiam capazes de realizar. Nisso, tornam-se opressores e distorcem a Lei para o benefício próprio”, afirma.  

Para nós, cristãos, é importante observar o comportamento de Jesus diante da multidão inflamada pelo politicamente correto, aconselha Leonardo. O Senhor não nega o erro da mulher adúltera, mas não dá razão aos fariseus.

“Sendo assim, demonstra que viver em sociedade não é um sistema de regras tão implacáveis como alguns querem que seja. O maior grau de complexidade de nossas relações sociais está em assumir atitudes como perdão, tolerância e humildade. Infelizmente, vemos o aprofundamento de uma sociedade incapaz de dialogar e o resultado disso não poderia ser outro senão o clima de guerra que paira já há anos no Brasil. Tudo tem se politizado de uma forma não saudável e no período mais difícil de nossa história, ficamos muito distantes de produzir empatia e acolhimento necessários”, analisa Dantas.  

Mordaças de medo e ameaça à liberdade de expressão

 O escritor também joga luz no outro lado da cultura do cancelamento: a vida dos cancelados depois da retaliação. Leonardo Dantas lembra que os prejuízos de quem sofre exposição pública são muitos, começando pelo sofrimento moral que pode afetar até mesmo a saúde emocional do cancelado: “não são raros os casos que evoluem para doenças psicossomáticas”, diz.

Dantas cita exemplos de figuras públicas que tiveram sua reputação e legado destruídos em pouco tempo depois de terem sido vítimas do cancelamento. “Em um mundo onde a imagem é tão importante, uma artilharia pesada apontada para destruí-la causa não apenas sua ruína, mas a ruína de tudo aquilo que está ancorado na construção de uma sólida reputação. Há casos de pessoas cujos legados de décadas foram ameaçados ou esfacelados em poucos dias: Woody Allen, JK Rowling, Kevin Spacey, entre outros”, afirma.

Existe ainda o prejuízo profissional e financeiro, de acordo com Leonardo. “Na minha opinião, estes são os mais assustadores. Hoje, esta cultura vem ganhando poder suficiente para gerar pressão sobre patrocinadores, empregadores e parceiros comerciais de cancelados. Há até organizações virtuais voltadas para isso. Por meio de ameaça de boicotes ou de desconstrução de marcas, essas organizações podem arruinar carreiras consolidadas e sonhos profissionais”.

Para além da vítima individual, Dantas diagnostica uma segunda vítima da cultura do cancelamento: “Há uma vítima coletiva, que é a própria sociedade. Esta cultura tornou-se um atentado à liberdade de expressão e coloca mordaças de medo em todos aqueles que não queiram professar o mainstream. Assim, há um crescente e triste silêncio decorrente da disseminação de um sentimento de temor pela retaliação à manifestação da própria opinião”, alerta.

Consequências legais para canceladores

Já se tornou comum o ambiente digital ser palco para atitudes hostis, ofensas e ciberbullying. Influenciadores digitais passaram a ser assombrados por haters; pessoas desconhecidas que se veem no direito de ofender e perseguir alguém que não é de seu agrado, nas redes sociais.

Apesar de a internet aparentar ser uma “terra sem lei”, onde é possível se esconder atrás de uma tela e não responder por seus atos, não é desta maneira que funciona. Com formação em Direito pela USP, Leonardo Dantas esclarece sobre as consequências legais que canceladores e haters podem ter.

“Embora ainda não haja lei que trate especificamente sobre o que chamamos de “cultura do cancelamento”, a legislação brasileira contempla institutos capazes de promover a responsabilização civil e até mesmo criminal de canceladores e haters. A dignidade humana, princípio fundamental constitucionalizado, incorpora o direito à honra, tanto em sua faceta objetiva (reputação social), como subjetiva (autoestima). Por isso, em se constatando que atos de cancelamento feriram a honra de um indivíduo, assegura-se o direito a indenização por danos morais”, explica o advogado.

Ainda no âmbito da responsabilização civil, Dantas explica que a vítima do cancelamento pode receber o direito de retratação pública do ofensor ou o direito de resposta ao ofendido.

Também há a possibilidade de responsabilização legal por danos materiais “sempre que ficar comprovado prejuízo efetivo decorrente da prática, por exemplo, se o cancelado sofre rompimento de contratos, demissão injustificada, suspensão de perfis profissionais, entre outros”, conforme Leonardo.

“Do ponto de vista da responsabilização criminal, o ato de cancelamento pode caracterizar o crime de difamação, se na conduta houver acusação de fatos ofensivos à reputação do cancelado, ou injúria, se a conduta lhe ofender a dignidade ou o decoro”, finaliza o advogado.

Não canceleis, para não serem cancelados

Citando o famoso mandamento de Mateus 7.1 “Não julgueis, para não seres julgados”, Leonardo Dantas relembra que os seres humanos não estão em condições de julgar através do cancelamento e que esta função é somente de Deus.

“O próprio Jesus, em sua conversa com Nicodemos, disse que não veio ao mundo para condená-lo, mas para salvá-lo. Quer dizer, Ele, o único legitimado para julgar-nos, despiu-se dessa prerrogativa para cumprir uma missão muito maior: nossa justificação. Essa matéria, portanto, compete exclusivamente a Deus, o justo juiz”, afirma.

Leonardo faz a diferenciação entre desaprovar o comportamento e imputar um juízo inafiançável a alguém, como faz a cultura do cancelamento. “Na realidade, não temos sequer condições morais para dizermos acerca dos outros. Isso não significa que não tenhamos legitimidade para exortar aqueles que se afastam da Palavra de Deus. Significa, porém, que não podemos determinar o destino de pessoas com base no nosso próprio entendimento do juízo”, esclarece.

Para Dantas, muitos dos canceladores, cedo ou tarde, também serão cancelados: “E a razão é muito simples: todos estamos suscetíveis a falhas e, inevitavelmente, vamos cometê-las. Por isso, o “não julguem” vem acompanhado do “para que vocês não sejam julgados”.

O escritor destaca a importância deste mandamento bíblico ser cumprido, apesar de ser difícil não avaliar as atitudes dos outros num mundo hiperconectado. “Primeiro, para não usurparmos uma prerrogativa de Deus. Segundo, para que possamos desenvolver a comunhão. Terceiro, para não nos tornarmos pessoas tóxicas, inebriadas pelos erros dos outros e desgostosas da própria vida em sociedade”, finaliza Leonardo Dantas.

 

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