Como visto nos últimos 2 anos, a pandemia de Covid-19 implicou a instauração de uma série de medidas visando a promover o distanciamento social. Os decretos municipais que tinham por objetivo a contenção da proliferação do vírus afetaram especialmente o exercício das liturgias religiosas, as quais foram, em muitos municípios, suspensas de forma irrestrita. Será, contudo, que se pode tratar o exercício religioso coletivo de forma indiferenciada em relação aos demais espaços de convívio social? Em outras palavras, o que a religião tem de único a oferecer à sociedade num período como o pandêmico?
Não poucos sociólogos propuseram que a religião em breve se tornaria algo do passado. Peter Berger, por exemplo, defendia inicialmente que as religiões se tornariam para a sociedade como museus, memoriais de um passado que não mais reflete as necessidades atuais da humanidade. Com efeito, o projeto da Modernidade incluía a perda da relevância antropológica da religião, com a premissa de que o declínio de seu papel de explicar os fenômenos científicos seria acompanhado de uma eliminação de sua função social e ética.
Todavia, o que se observou na segunda metade do século XX foi o contrário do profetizado por tais pensadores: um ressurgimento da experiência religiosa no espaço social. É o que se observa a partir das pesquisas de sociólogos como Charles Taylor, Giacomo Marramao e Ernst Tugenhadt. O próprio Peter Berger, em obra denominada “A dessecularização do mundo”, retrata-se de sua afirmação anterior, propondo que a religião se tornaria uma temática central do século seguinte. Se a religião é algo ultrapassado, a ser suplantado definitivamente pela racionalidade, como entender isso?
Viktor Frankl, um neuropsiquiatra austríaco, fornece-nos uma explicação. Frankl afirma que a busca pelo transcendente, longe de ser um construto social artificial, faz parte da dimensão constitutiva do ser humano. “Faz parte da essência do homem seu ser orientado para, seja para alguma coisa, seja para alguém, seja para uma obra, seja para um homem, para uma ideia ou para uma pessoa”, diz o autor. Diferentemente de abordagens “animalistas” do ser humano, como a elaborada por Freud, Frankl defende que “a busca do indivíduo por um sentido é a motivação primária em sua vida, e não uma ‘racionalização secundária’ de impulsos instintivos”.
Para Frankl, a religião ocupa um papel central nessa jornada do indivíduo para descobrir o sentido da vida:
“Das realidades existenciais do homem participam: a espiritualidade, a liberdade e a responsabilidade. Essas três realidades existenciais não caracterizam apenas a existência humana como tal, como humana; a bem dizer, elas a constituem. Nesse sentido, a espiritualidade do homem não é só um caracteristicum, mas sim um constituens: o espiritual não é algo que só caracteriza o homem, a exemplo do corporal e do psíquico, que são próprios também do animal; o espiritual é algo que distingue o homem, que é privativo só dele e antes de tudo dele”
As suas contribuições são especialmente oportunas quando se observa sua história de vida. Judeu e sobrevivente do Shoá (holocausto judeu), Viktor passou por quatro campos de concentração, nos quais perdeu sua mãe, pai e irmão. A partir de sua experiência dos horrores do holocausto, elaborou a teoria psicoterápica denominada logoterapia, ou “cura através do sentido” que se estabeleceu como a terceira escola de psicoterapia vienense.
Frankl constatou que os prisioneiros que atribuíam a sua vida um significado transcendente suportavam melhor o sofrimento e tinham mais chances de sobreviver, em comparação àqueles que perdiam a esperança. Com base em sua vivência, o autor concluiu que o ser humano depende constitutivamente de uma fonte de sentido em relação à qual possa processar e significar seu sofrimento, a fim de desenvolver sua capacidade de resiliência. Viktor pôde, portanto, evidenciar na prática a afirmação de Nietzsche: “Quem tem um porquê, enfrenta qualquer como”.
A partir dessas constatações, percebe-se a gravidade de se proceder à suspensão irrestrita das atividades religiosas no contexto pandêmico, que por suas próprias características trouxe consigo uma série de agruras emocionais e psíquicas, como insegurança, medo da morte e perda de entes queridos. O que as observações de Frankl nos desvelam é que é justamente nesses momentos de fraqueza, sofrimento e fragilidade que a necessidade religiosa mais se potencializa.
A preservação da vida humana é, sem dúvida, um objetivo legítimo a se perseguir. Não se pode ignorar o risco representado pelo coronavírus à vida biológica. Mas, como aponta Frankl, o ser humano não é meramente vida fisiológica, mas uma unidade e um todo corporal, psíquico e espiritual. Os responsáveis pela gestão da sociedade não podem, pois, ignorar qualquer uma dessas dimensões.
Devem-se atentar, pois, para o distintivo essencial da religião em relação aos fenômenos culturais: fornecer uma fonte de significado que não pode ser encontrada em times de futebol, preferências midiáticas ou encontros sociais. Logo, amputar o ser humano de sua dimensão religiosa ao mesmo tempo em que se preservam outras atividades socioculturais, como foi feito nesse período, não é apenas desproporcional, mas desumano.
Por fim, cabe mencionar as frequentes argumentações invocadas no sentido de que o direito à liberdade religiosa estaria preservado pela possibilidade de culto particular. Tal espécie de alegação perde sentido quando se trata de religiões cuja dimensão coletiva é dogmaticamente essencial. Para muitas religiões, nelas incluídas o cristianismo, a comunhão não é um emergente secundário, mas uma necessidade intrínseca para seu exercício.
Desse modo, por mais que não se ignore a importância de preservar-se o bem humano da vida, parece-me que a cessação absoluta e irrestrita da expressão religiosa coletiva ignorou a dimensão transcendental da experiência antropológica. É a transcendência que permite ao ser humano distanciar-se não apenas de uma situação, mas de si mesmo — para fora de si. E isso não apenas no sentido vertical, mas também horizontal: trata-se uma transcendência que se integra socialmente, não meramente da terra para o céu, mas do eu para o outro.
A vida espiritual não é um isolamento monástico para o contato isolado com o místico, mas o desprendimento de si e a entrega mútua. Em síntese, para o cristão, o logos serve ao ágape, e não há ágape sem a figura do próximo.
Por Dr. Lucas Vianna, Coordenador Regional Estadual (Rio Grande do Sul) da Associação Nacional de Juristas Evangélicos no Rio Grande do Sul.
A ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE JURISTAS EVANGÉLICOS - ANAJURE é uma entidade brasileira composta por operadores do direito, integrantes do Poder Judiciário, do Ministério Público, da Defensoria Pública, da OAB, das Procuradorias Federais e Estaduais, assim como Professores e estudantes de todo o país, estando presente em 25 Estados da República Federativa Brasileira, e tem como lema a “Defesa das Liberdades Civis Fundamentais”, em especial, a Liberdade Religiosa, de Expressão e a Dignidade da Pessoa Humana. A ANAJURE também é filiada a instituições internacionais que trabalham em defesa das liberdades civis fundamentais em todo o mundo, como a Federação Interamericana de Juristas Cristãos (FIAJC) e a Religious Liberty Partnership (RLP).
* O conteúdo do texto acima é uma colaboração voluntária, de total responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a opinião do Portal Guiame.