Não toque no ungido do Senhor: o que exatamente isso quer dizer?

Texto dentro do contexto

Fonte: Guiame, Cris BeloniAtualizado: quarta-feira, 12 de janeiro de 2022 às 18:43
(Foto: Unsplash/Stormseeker)
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Primeiro vamos analisar como esta frase tem sido usada nos nossos dias. Quem é o “ungido do Senhor”? Para muitos são os pastores, bispos, presbíteros, apóstolos, evangelistas e todos aqueles que exercem algum cargo de liderança dentro das mais variadas denominações. 

Não há dúvidas que todo líder espiritual merece respeito, desde que esteja submisso à Palavra de Deus e pregando a verdade. Conforme a Bíblia, ele deve servir de exemplo, andando de maneira digna e honesta. O que ocorre é que, muitas vezes, não é essa a conduta de um líder. Como ser humano, ele pode errar e pecar contra Deus. 

Quando isso acontece e alguém se manifesta, há muitas pessoas ao redor para defendê-lo: “Não toque no ungido do Senhor”. Ou seja, essas pessoas entendem que ninguém pode acusar, questionar ou criticar o que os pastores fazem, mesmo que seja algo ruim. 

Sobre a unção do Senhor

A “unção do Senhor”, nesse caso, funciona como uma proteção e até uma imunidade dada por Deus aos líderes. Logo, é expressamente proibido falar em público sobre os erros que eles cometem. A pergunta é: isso é bíblico? Vamos ler alguns textos: 

“Não maltratem os meus ungidos; não façam mal aos meus profetas.” (1 Crônicas 16.22)

“Que o Senhor me livre de fazer tal coisa a meu senhor, de erguer a mão contra ele; pois é o ungido do Senhor.” (1 Samuel 24.6)

Quem disse isso foi Davi quando estava sendo pressionado pelos seus soldados a matar Saul na caverna. Na ocasião, o rei Saul estava perseguindo Davi e tinha com ele um exército de 3 mil soldados escolhidos para essa missão. 

Aconteceu que Saul deu uma paradinha para fazer suas necessidades justamente na caverna onde Davi estava escondido. Davi chegou a cortar a ponta do manto de Saul e ele não percebeu. Depois disso, Davi declarou: 

“Hoje o rei pode ver com os próprios olhos como o Senhor o entregou em minhas mãos na caverna. Alguns insistiram que eu o matasse, mas eu o poupei, pois disse: Não erguerei a mão contra meu senhor, pois ele é o ungido do Senhor” (1 Samuel 24.10)

O que exatamente Davi estava querendo dizer? O que significava ser “ungido” naquela época? A expressão “ungido do Senhor” se referia aos reis de Israel que eram escolhidos por Deus para ocupar aquele cargo logo após receberem a “unção” por um juiz ou um profeta. 

Eles derramavam óleo sobre a cabeça desses homens, o que simbolizava que eles estavam sendo separados para uma missão em favor do povo de Deus. 

“Então Samuel apanhou um jarro de óleo, derramou-o sobre a cabeça de Saul e o beijou, dizendo: O Senhor o tem ungido como líder da herança dele.” (1 Samuel 10.1)

Saul era o rei que o povo queria, mas Davi era o escolhido de Deus. Então, no capítulo 16, vemos Davi também sendo ungido:

“Samuel então apanhou o chifre cheio de óleo e o ungiu na presença de seus irmãos, e a partir daquele dia o Espírito do Senhor apoderou-se de Davi.” (1 Samuel 16.13)

Reconhecendo o cargo dado por Deus

Então, quando Davi se recusou a matar Saul, ele estava reconhecendo que, mesmo de forma indigna, Saul estava ocupando um cargo designado por Deus. Mas isso não quer dizer que Davi ignorava o que Saul estava fazendo. Ele teve uma conversa com Saul e o questionou sobre aquela perseguição. Veja: 

“Olha, meu pai, olha para este pedaço de teu manto em minha mão! Cortei a ponta de teu manto, mas não o matei. Agora entende e reconhece que não sou culpado de fazer o mal ou de rebelar-me. Não lhe fiz mal algum, embora estejas à minha procura para tirar-me a vida. O Senhor julgue entre mim e ti. Vingue ele os males que tens feito contra mim, mas não levantarei a mão contra ti. Como diz o provérbio antigo: Dos ímpios vêm coisas ímpias; por isso não levantarei a minha mão contra ti. Contra quem saiu o rei de Israel? A quem está perseguindo? A um cão morto! A uma pulga! O Senhor seja o juiz e nos julgue. Considere ele minha causa e a sustente; que ele me julgue, livrando-me de tuas mãos. Tendo Davi falado todas essas palavras, Saul perguntou: É você, meu filho Davi? E chorou em voz alta. Você é mais justo do que eu, disse ele a Davi. Você me tratou bem, mas eu o tratei mal.” (1 Samuel 24.11-17)

Respeitar o rei não impediu Davi de apontar a injustiça e a maldade dele. Tanto é que Davi chegou a invocar a Deus como juiz naquele caso, pedindo a punição sobre Saul e a proteção sobre ele. Davi não faria justiça com as próprias mãos, ele confiava em Deus, mas isso não quer dizer que ele deveria se calar diante dos erros de Saul. 

Até os “ungidos” devem lidar com as consequências de seus atos

O próprio Davi, enquanto rei, foi repreendido quando cometeu adultério com Bate-Seba. Veja o que o profeta Natã disse a ele, da parte de Deus: 

“Eu o ungi rei de Israel, e livrei-o das mãos de Saul. Dei-lhe a casa e as mulheres do seu senhor. Dei-lhe a nação de Israel e Judá. E, se tudo isso não fosse suficiente, eu lhe teria dado mais ainda. Por que você desprezou a palavra do Senhor, fazendo o que ele reprova? Você matou Urias, o hitita, com a espada dos amonitas e ficou com a mulher dele.” (2 Samuel 12.7-9)

“Você fez isso às escondidas, mas eu o farei diante de todo o Israel, em plena luz do dia. Então Davi disse a Natã: Pequei contra o Senhor! E Natã respondeu: O Senhor perdoou o seu pecado. Você não morrerá. Entretanto, uma vez que você insultou o Senhor, o menino morrerá. Depois que Natã foi para casa, o Senhor fez adoecer o filho que a mulher de Urias dera a Davi.” (2 Samuel 12.12-15)

O que podemos ver através da Bíblia é que o pecado de Davi, mesmo sendo um rei ungido pelo Senhor, foi revelado e se tornou público, e também teve suas consequências. 

Quer dizer que Davi era ungido, mas não era “blindado”.  Sendo assim, concluímos que não tem nada a ver, hoje em dia, uma pessoa ter que conviver com os erros e pecados de um pastor e se obrigar a ficar calado porque “ninguém deve tocar num ungido do Senhor”. 

Discordar de uma conduta errada e até mesmo enfrentar alguém com firmeza não é pecado. Aliás, no livro de 1 Timóteo existem até instruções sobre como repreender alguém, inclusive a liderança. Veja aqui alguns textos: 

“Não repreenda asperamente ao homem idoso, mas exorte-o como se ele fosse seu pai; trate os jovens como a irmãos; as mulheres idosas, como a mães; e as moças, como a irmãs, com toda a pureza.” (1 Timóteo 5.1-2)

“Não aceite acusação contra um presbítero, se não for apoiada por duas ou três testemunhas. Os que pecarem deverão ser repreendidos em público, para que os demais também temam.” (1 Timóteo 5.19-20)

Além disso, temos outros exemplos bíblicos. Paulo repreendeu a Pedro diante de todos por causa de um comportamento: 

“Quando, porém, Pedro veio a Antioquia, enfrentei-o face a face, por sua atitude condenável. Pois, antes de chegarem alguns da parte de Tiago, ele comia com os gentios. Quando, porém, eles chegaram, afastou-se e separou-se dos gentios, temendo os que eram da circuncisão. Os demais judeus também se uniram a ele nessa hipocrisia, de modo que até Barnabé se deixou levar. Quando vi que não estavam andando de acordo com a verdade do evangelho, declarei a Pedro, diante de todos: "Você é judeu, mas vive como gentio e não como judeu. Portanto, como pode obrigar gentios a viverem como judeus?”(Gálatas 2.11-14)

E para finalizar, veja como Paulo, sendo líder religioso, chegou a ser tratado pelos fiéis: 

“Porque me parece que Deus nos colocou a nós, os apóstolos, em último lugar, como condenados à morte. Temo-nos tornado um espetáculo para o mundo, tanto diante de anjos como de homens.” (1 Coríntios 4.9)

“Até agora estamos passando fome, sede e necessidade de roupas, estamos sendo tratados brutalmente, não temos residência certa e trabalhamos arduamente com nossas próprias mãos. Quando somos amaldiçoados, abençoamos; quando perseguidos, suportamos; quando caluniados, respondemos amavelmente. Até agora nos tornamos a escória da terra, o lixo do mundo.” (1 Coríntios 4.11-13)

“Portanto, suplico-lhes que sejam meus imitadores.” (1 Coríntios 4.16)

Reflexão

Apesar de ser apóstolo, um líder e fundador de várias igrejas no primeiro século, Paulo sempre se mostrou humilde e disposto a servir na obra de Deus. Em nenhuma ocasião vemos Paulo se gabar e muito menos dizer: “Não me toques, pois sou ungido do Senhor”. 

Muitas vezes, as pessoas deixam de agir corretamente por falta de entendimento da Palavra. Muitos são manipulados por uma palavra distorcida, e não percebe que por trás existe um “manipulador” que usa dessa distorção para se esconder e se esquivar dos seus erros. 

Sobre a liderança, Jesus é o nosso maior exemplo, o melhor líder. E o que Ele nos ensina?

“Pois quem é maior: o que está à mesa, ou o que serve? Não é o que está à mesa? Mas eu estou entre vocês como quem serve.” (Lucas 22.27)

Numa ocasião, ele lavou os pés dos discípulos e depois perguntou:

“Vocês entendem o que lhes fiz? Vocês me chamam ‘Mestre’ e ‘Senhor’, e com razão, pois eu o sou. Pois bem, se eu, sendo Senhor e Mestre de vocês, lavei-lhes os pés, vocês também devem lavar os pés uns dos outros. Eu lhes dei o exemplo, para que vocês façam como lhes fiz.” (João 13.12-15)

Jesus, enquanto líder, já no primeiro século, revolucionou a cultura humana. Hoje, em pleno século 21, vivendo num país que desfruta de liberdade religiosa, de consciência, de expressão e de imprensa, não temos desculpa para dizer que nos faltam recursos para a compreensão da Palavra. 

Ou seja, essa história de que pode haver uma “maldição” de Deus sobre a vida daqueles que questionam os “ungidos” realmente não existe. É um mito que precisa ser derrubado dentro de algumas instituições. 

E esse foi o nosso estudo de hoje. Espero que tenha tirado a sua dúvida e também colaborado para o seu crescimento espiritual. Beijo no coração e até a próxima, se Deus quiser!

 

Por Cris Beloni, jornalista cristã, pesquisadora e escritora. Lidera o movimento Bíblia Investigada e ajuda as pessoas no entendimento bíblico, na organização de ideias e na ativação de seus dons. Trabalha com missões transculturais, Igreja Perseguida, teorias científicas, escatologia e análise de textos bíblicos.

* O conteúdo do texto acima é de colaboração voluntária, seu teor é de total responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a opinião do Portal Guiame.

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