No primeiro dia das férias de Janeiro, sonhando com a praia, antevendo a rede preguiçosa, café numa mão, jornal na outra e eu, chocado, entrava em contato com mais um ato de barbárie perpetuado pelas forças obscurantistas do fundamentalismo islâmico. Ontem o mundo viu, estarrecido, como as liberdades ocidentais são frágeis diante das garras do ódio e da intolerância. O que alimentaria essa força assombrosa, dizem alguns, é a xenofobia e intolerância europeia aos imigrantes islâmicos. Os 12 mortos e 11 feridos do semanário satírico Chalie Hebdo tem origens mais profundas: o que é a liberdade religiosa, afinal? O que é a liberdade de imprensa, afinal? O que é a liberdade tão propagada e valorizada pela civilização (pós) cristã do Ocidente? Onde essas perguntas e respostas se confluem e se chocam? Questões para os sociólogos e para quem assume a radicalidade do Evangelho no alvorecer do século XXI. Radicalidade? Do Evangelho? Como assim?
Pois eu queria tentar articular a diferença entre três conceitos nesse breve texto-lamento, nessa minha crônica-meditação, três ideias-força que brotam do meu estarrecimento diante desses tempos decisivamente escatológicos: o radicalismo religioso, o raquitismo irreligioso e a radicalidade evangélica. Timothy Keller, de modo brilhante, usando seu intelecto poderoso e antenado e uma teologia reformada e missional robusta no recente "Igreja Centrada" (Editora Vida Nova) propõe a (pouco) sutil diferença entre Religião, Irreligião e Evangelho. Religião é a proposta legalista/moralista que, tolamente, acredita que podemos merecer por meio de boas obras/barganhas espertas, o favor e a benção divinos. Temos de obedecer a verdade para sermos salvos. E combater os "infiéis que zombam da Verdade e do Sagrado". Muçulmanos e alguns cristãos acreditam nisso. Eis o gérmen do radicalismo religioso! Só há uma verdade e um modo de agradar a Deus. O resto, morte. Ao restante, a morte.
A outra força motriz da nossa cosmovisão é a Irreligião, com seu viés relativista e liberal. "Se há Deus", diriam os irreligiosos, do fundo do seu agnosticismo e/ou cinismo, "ele haverá de ser bondoso e salvar todo mundo nessa balbúrdia que é a humanidade". O primeiro seria Verdade sem Graça. Já o segundo ponto de vista, Graça sem Verdade. É o que eu chamo de visão raquítica da vida. Le it be. Viva e deixe viver. “Tô” nem aí. Um existencialismo extemporâneo, esse raquitismo da irreligião.
A terceira via é o Evangelho. A religião é de fora para dentro (comportamento, atos, charges, críticas e etc vem primeiro). O Evangelho é de dentro para fora. Não faço o bem (ou o mal) para ser aceito – faço o bem por que FUI aceito por Deus, em Cristo. “O Evangelho cria um novo tipo de comunidade que serve, com pessoas que vivem num mundo completamente incomum como seres humanos", diz o pastor Keller. E eu subscrevo. Um novo tipo de comunidade humana! Nem religiosa nem irreligiosa – verdadeiramente...evangélica!
Foi numa visita à uma casa franciscana nas montanhas de Nova Friburgo, Rio de Janeiro. Uma jovem freira, moça bonita, poderia ter casado, levar uma vida "normal", diriam alguns. Numa conversa gostosa e franca, a irmã Clara me diz algo assim: " É pastor, é preciso abraçar a radicalidade do Evangelho". Ela está mais que correta. Não precisamos nem do radicalismo religioso, nem tampouco do raquitismo da irreligião. Precisamos desesperadamente, sobretudo sob o profundo estado de choque francês após o violento atentado terrorista de ontem, reconsiderar o que é Religião e o que é a Irreligião. As duas coisas trazem consigo contradições importantes e, pior, incitações mútuas à violência e ao desrespeito – digo isso ao ler no Estadão de hoje cedo uma frase absolutamente infeliz de Salman Rushdie, escritor sentenciado à morte por radicais islâmicos após a publicação do seu livro “Os versos satânicos", chamando a fé monoteísta de "obscurantismo medieval", postura no mínimo desrespeitosa. Nem radicalismo, nem raquitismo – precisamos redescobrir a radicalidade do Evangelho de Jesus de Nazaré.