Seleção feminina usa venda de rifas para se manter

Seleção feminina usa venda de rifas para se manter

Fonte: Atualizado: sábado, 29 de março de 2014 às 03:26

Como em tantos outros sábados, por volta das 15h, a Quinta da Boa Vista, em São Cristóvão (RJ), está repleta de famílias, casais de namorados e bichos de estimação. O tempo, no entanto, não é dos melhores. No céu, grandes nuvens pretas escondem o sol, preenchem o local com um tom cinza e anunciam a forte chuva que traria o caos para a cidade horas mais tarde. Alheio a isso, um grupo de mulheres começa a ocupar um dos maiores espaços gramados do parque, bem próximo ao lago. Sentam, conversam e tiram das mochilas suas chuteiras e camisas, além de uma bola oval, que ganha a atenção dos outros visitantes. A rodinha de passes começa e vai ganhando novas integrantes em pouco tempo. Com algum atraso, perto das 16h, todas se reúnem e dão forma à seleção feminina de futebol americano, que se junta pela segunda vez depois de sua criação, em outubro de 2009.

Desta vez, participam meninas do Rio de Janeiro, Espírito Santo e Mato Grosso, com o desfalque das de São Paulo, que não vieram para os treinos do fim de semana – além de sábado, elas também iriam se reunir no domingo, pela manhã. Todas as jogadoras, cada uma em seu estado, atuam em alguma equipe local e foram selecionadas em testes (“try out”, como chamam) para a seleção. A ideia inicial era se preparar para o Mundial da categoria, que será realizado em julho, na Suécia. Sem patrocínio, porém, não conseguiram juntar dinheiro para pagar a taxa de inscrição do campeonato - cerca de US$ 1.500. A opção para estrear a equipe, agora, é um amistoso aqui mesmo no Brasil, contra alguma seleção internacional.

- A falta de patrocínio é a nossa maior dificuldade. Não conseguimos pagar a taxa de inscrição e ficamos fora do Mundial. Mas já fizemos convite para algumas seleções de fora para jogarem com a gente aqui. As federações europeia e americana (EFAF e WNFL, respectivamente) retornaram e mostraram interesse, até porque todas querem conhecer o Brasil. Mas como elas estão em temporada e se preparam para o Mundial, só vão poder vir no segundo semestre – disse Deny Barbosa, strong safety da equipe, diretora de esporte feminino da Associação de Futebol Americano do Brasil (AFAB) e principal organizadora dos encontros da seleção.

Decepção por não participar do Mundial

Principalmente entre aquelas de fora do Rio, a decepção por não participar do Mundial na Suécia é evidente. Jogadoras do Cuiabá Angels, no Mato Grosso, organizaram festas e venderam rifas pizza, docinhos e adesivos. Tudo para comprar os equipamentos e as passagens para os treinos da seleção. O próximo passo seria justamente garantir a ida para a Europa. Não foi desta vez.

- Quando soubemos da seleção, bancamos a ida de um treinador daqui do Rio para Cuiabá para fazer nosso “try out”. Arrecadamos R$ 1.600, e ele foi para lá. Depois, fomos nos planejando para o Mundial. Começamos a vender pizza, adesivos para juntar dinheiro. Não temos técnico profissional, aprendemos tudo através de vídeos na internet. Eu fiz todo o planejamento, academia para me preparar, tudo... Para chegar aqui e encontrar este obstáculo. É frustrante – disse Susanna Tragni, running back que veio de Cuiabá, mas não treinou, lesionada.

A principal reclamação das mato-grossenses é com a forma que souberam que não jogariam o Mundial. Elas dizem que só foram saber ao ver a lista de jogos da competição e notar que o Brasil não estava escalado na tabela de jogos. Deny afirma que avisou a todas por e-mail, mas que pode ter surgido um problema de comunicação no meio do caminho.

Apesar das dificuldades, Deny diz que os passos estão sendo dados. O projeto para ser apresentado a possíveis patrocinadores está pronto desde o surgimento da seleção. O custo inicial para bancar viagens, equipamento e participações da equipe em campeonatos fora do país passava dos R$ 400 mil. Por conta das dificuldades de encontrar quem se dispusesse a apostar nas meninas, o valor precisou ser alterado. Mesmo assim, até agora nenhum “salvador” apareceu.

- Em outubro, nosso orçamento era de R$ 400 mil. Mas fomos diminuindo, até chegar a R$ 200 mil. A gente tinha até uma empresa de marketing por trás, para apresentar os projetos para as empresas, mas até agora não tivemos resposta – afirmou Deny.

Embora o principal problema seja a falta de dinheiro, as dificuldades em campo também atrapalham. Como o futebol americano ainda é pouco disputado no Brasil, o esporte é praticado de diferentes formas no país, com sete, nove, e 11 jogadores, que é o número oficial. Para Neuza Cristina, a Cris, também de Cuiabá, a seleção precisa de um tempo maior para se preparar.

- Eu acho que nós ainda não estamos preparadas. Em Cuiabá, jogamos sempre com 11 jogadoras, mas a maioria não joga assim. Algumas nem jogam na grama. Quando surgiu a ideia (da seleção), o pessoal disse sim na animação. Depois de quatro meses, viemos para cá. Mas precisamos nos preparar muito mais. São meses de adaptação para jogar com o equipamento, na grama. Aí, sim, vamos observar um padrão. Temos de ter uma base. Mas fiquei muito animada. É uma grande experiência, participar da primeira seleção brasileira – disse Cris, que joga como quarterback.

O orgulho de jogar na primeira seleção feminina também é geral. Kariny Soares, a Leão, espera poder levar a equipe para Vila Velha, de onde veio.

- É muito legal participar disso aqui. É a segunda vez que venho para o Rio me encontrar com elas. Espero poder jogar lá em Vila Velha - disse.

Vaidade fora dos jogos

Depois de um rápido aquecimento, as jogadoras começam a treinar algumas jogadas específicas de defesa e ataque. Sofrem com o desnível do gramado da Quinta, que passa longe do ideal para o esporte. Enquanto isso, as nuvens aumentam, e a chuva se aproxima. Fora do treino, Susanna lamenta, diz que queria ao menos aproveitar a praia carioca no domingo, já que não pode jogar. Mesmo assim, vibra a cada bom lance das companheiras e se impressiona com alguma jogada mais dura. Ela reconhece que o futebol americano é, em sua essência, um esporte violento, mas afirma que, fora do campo, as jogadoras não deixam de lado a vaidade. 

- Em campo, não tem vaidade. Todas ficam suadas, sujas. Mas quando a gente sai, ninguém reconhece. A gente se arruma, fica cheirosa. Não é porque o esporte é violento que não vamos ter vaidade. Para quem não conhece, à primeira vista, é só violência. Mas não é assim – afirmou.

Pouco antes das 17h, começa a chuviscar em São Cristóvão. O técnico Gustavo Barreto, então, apressa o planejamento e, apesar da falta de luz da Quinta, inicia uma simulação de jogo. Ele divide as meninas em dois grupos e, durante uma hora, orienta as jogadas, auxiliado pelo treinador ofensivo, Duda Duarte. Barreto, que também comanda uma equipe masculina, elogia o trabalho com o time feminino.

- As meninas ouvem mais. Elas são muito mais atenciosas e atentas, são mais detalhistas. Os homens, não. Com eles, é mais na base da vontade. Acho mais fácil trabalhar com elas - afirmou. 

Pontualmente às 18h, Barreto dá fim ao treino. Todas voltam a se reunir e conversam sobre a rifa de camisas do New York Jets e do New England Patriots, dois dos mais populares times dos EUA, que seriam sorteadas no domingo. Enquanto as meninas arrumam suas coisas, o céu se fecha de vez e se prepara para o temporal. A correria começa e logo o parque fica vazio. Sem problemas. Para o dia seguinte, as previsões eram melhores.

Por: João Gabriel Rodrigues

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