Caríssimos irmãos, a ideia de que um Deus intrinsecamente bom e misericordioso possa "rejeitar" uma de Suas criaturas é, sem dúvida, um dos temas mais complexos e, por vezes, angustiantes dentro da teologia. Longe de ser um conceito unívoco, a rejeição divina deve ser analisada sob diversas lentes bíblico-teológicas, distinguindo-se entre a rejeição de um indivíduo para um ofício ou propósito específico e a rejeição final, escatológica, que implica a condenação. Este artigo busca fornecer uma fundamentação exaustiva, recorrendo ao cânone bíblico e à literatura teológica pertinente, para compreender a natureza, as causas e as implicações desse severo juízo.
1. TERMINOLOGIA E CONTEXTUALIZAÇÃO BÍBLICA
O conceito de rejeição divina não se manifesta na Bíblia por um único termo hebraico ou grego, mas por uma variedade de expressões que indicam desaprovação, abandono, repúdio ou privação de favor. No Antigo Testamento, termos como mā’as ( מאס - rejeitar, desprezar) e nātaš ( נטׁש - abandonar, largar) são frequentemente empregados para descrever a ação de Deus. No Novo Testamento, encontramos o uso de apōtheō (ἀπωθέω - afastar, rejeitar) e dokimos (δόκιμος - aprovado) e seu negativo adokimos (ἀδόκιμος - réprobo, reprovado).
A compreensão dessa rejeição passa inevitavelmente pelo conceito da Aliança. A relação de Deus com a humanidade, especialmente com Israel e, posteriormente, com a Igreja, é pactual. A rejeição, em muitos casos, é a consequência direta e pactual da infidelidade, da quebra dos termos estipulados por Deus.
Aqui estão as referências bíblicas principais, categorizadas por contexto:
a) Rejeição de Nações ou Lideranças Coletivas (geralmente após períodos de infidelidade)
Israel (Reino do Norte): (2 Reis 17:20) "E o Senhor rejeitou toda a descendência de Israel, e os oprimiu, e os deu nas mãos dos despojadores, até que os lançou da sua presença." Israel (Reino de Judá): (Jeremias 6:30) "Prata reprovada chamar-lhes-ão, porque o Senhor os rejeitou." O Templo de Siló: (Jeremias 7:12-15) Deus rejeitou o lugar onde sua morada estava (Siló) devido à maldade do povo, servindo como aviso para Jerusalém. Saul como Rei: (1 Samuel 15:23) "Porquanto rejeitaste a palavra do SENHOR, ele também te rejeitou a ti, para que não sejas rei." (cf. 1 Samuel 16:1)
b) Rejeição de Indivíduos por Atos Específicos
Caim: (Gênesis 4:14-15) Embora a palavra "rejeitar" não seja usada, ele é expulso da presença de Deus e da terra. Esaú: (Malaquias 1:2-3, Romanos 9:13) "Amei a Jacó, e odiei a Esaú." No contexto profético, refere-se à escolha de Deus para a linhagem da aliança, rejeitando Esaú (os edomitas) por sua idolatria e hostilidade. Os Sacerdotes Ímpios: (1 Samuel 2:12-17, 22-36) A casa de Eli é rejeitada para o sacerdócio devido à irreverência e corrupção de seus fi lhos.
c) A Linguagem de "Afastar-se" ou "Entregar" Muitas vezes, a rejeição é descrita como “Deus se retirando” ou entregando as pessoas às consequências de suas escolhas. Por exemplo: Romanos 1:24, 26, 28: "Deus os entregou" à impureza, paixões infames e uma mente reprovável, como juízo sobre a idolatria e a supressão da verdade. Oséias 4:17: "Efraim está entregue aos ídolos; deixa-o." Juízes 16:20: Sansão, após sua contínua desobediência, não percebe que "o Senhor já se tinha retirado dele".
2. REJEIÇÃO COM FOCO NO OFÍCIO OU PROPÓSITO
É crucial diferenciar a rejeição de um indivíduo ou grupo de indivíduos para um papel específico dentro da economia divina, da rejeição final de salvação. É comum as pessoas confundirem, por exemplo, Deus não ouvir um pedido específico, e se sentirem rejeitadas para a salvação. Assuntos completamente distintos sendo aglomerados dentre das necessidades humanas.
a) A Rejeição de Ofício no Antigo Testamento
Um dos exemplos mais proeminentes é o do Rei Saul. Saul foi ungido por Deus para ser o primeiro rei de Israel (1 Samuel 10:1), mas foi subsequentemente rejeitado por Deus por causa de sua desobediência e arrogância. 1 Samuel 13:13-14: O profeta Samuel repreende Saul por oferecer um holocausto sem esperar por ele, afirmando: "agora não subsistirá o teu reino; o Senhor buscou para si um homem segundo o seu coração [...] porquanto não guardaste o que o Senhor te ordenou." 1 Samuel 15:23: Após Saul desobedecer novamente, poupando Agague e o melhor do gado amalequita, Samuel declara: "Porquanto tu rejeitaste a palavra do Senhor, ele também te rejeitou a ti, para que não sejas rei."
A rejeição de Saul não implica necessariamente sua danação eterna (um juízo que a Bíblia não permite fazer), mas sim a privação do favor divino para o exercício de seu cargo teocrático. Ele perde o ofício e o Espírito de Deus se retira dele (1 Samuel 16:14). Não há como permanecer dentro do ofício divino, uma vez que “se perdeu” da metodologia divina. Há inúmeros casos, atualmente, que se assemelham a Saul, grandes lideranças na igreja, se perderem da metodologia divina, e é visível que o Senhor os rejeitou. E o que é mais deprimente, tais estão tão atolados na própria vaidade, que mesmos completamente perdidos, insistem em permanecer liderando o povo “a lugar nenhum”.
b) A Rejeição de Israel em Sentido Cíclico e Escatológico (Romanos 9-11)
A rejeição de Israel é um tema central, notavelmente abordado por Paulo em Romanos 9-11. A nação, como um todo, foi infiel à Aliança, culminando na rejeição do Messias.
Rejeição Cíclica (Antigo Testamento): Israel frequentemente experimentou o abandono temporário de Deus (exílio, cativeiro), descrito em passagens como Jeremias 7:29 ("o Senhor rejeitou e desamparou a geração da sua ira"). Esses períodos eram punições pedagógicas para levar ao arrependimento. Assim, o Senhor na sua excelência como mestre, ensina a seu povo, o caminho do seu propósito. Devemos aprender com essas lições divinas, para não nos sobrevir tais procedimentos divinos, pois o Senhor é o mesmo (cf. Hebreus 13:8). Rejeição do Messias (Novo Testamento): A nação de Israel, em sua maioria, rejeitou a Jesus Cristo. Paulo pergunta em Romanos 11:1: "Porventura, Deus rejeitou o seu povo?" E responde com veemência: "De modo nenhum!" Essa passagem é maravilhosa no sentido de que Deus, de fato, não quer abandonar a ninguém. Contudo, o povo de coração obstinado, permanece distante da luz, e consequentemente, eles se sentem abandonados. Mas não foi o Senhor quem os abandonou, e sim, o Senhor os permitirá viver sobre a direção do seu coração endurecido (cf. Salmo 81:12).
A teologia paulina estabelece uma distinção vital: a rejeição de Israel é parcial ("endurecimento sobreveio em parte a Israel," Romanos 11:25) e temporária ("até que a plenitude dos gentios tenha entrado," Romanos 11:25). Deus não revogou Suas promessas, mas as suspendeu para a maioria, canalizando a salvação através de um remanescente (Romanos 9:27) e dos gentios, com a promessa de uma restauração futura ("todo o Israel será salvo," Romanos 11:26). A rejeição de Israel serviu, paradoxalmente, como o veículo para a salvação do mundo.
3. A REJEIÇÃO EM SENTIDO ESCATOLÓGICO: O JUÍZO FINAL
O sentido mais severo da rejeição divina é aquele que culmina na condenação eterna, a separação final de Deus. Esta rejeição é sempre apresentada na Escritura como o resultado da obstinação humana, do pecado persistente e da incredulidade diante da graça oferecida. Faço questão de exemplificar como o aluno, que ao final do ano letivo, culpa o professor por reprová-lo. Contudo, é o aluno que não seguiu as diretrizes do professor e, portanto, não tem condições de ser aprovado. Um curso, quem faz é o aluno. O Caminho é Cristo, mas quem percorre é o cristão.
a) A Causa da Rejeição: O Pecado e a Incredulidade
A Escritura é clara: a rejeição final não é um ato arbitrário de Deus, mas o veredito justo sobre aqueles que deliberadamente rejeitam a verdade e a salvação em Cristo. a) João 3:18: "Quem nele crê não é julgado; mas quem não crê já está julgado, porquanto não crê no nome do unigênito Filho de Deus." A rejeição é, primariamente, a autorrejeição da oferta de salvação. b) Hebreus 10:26-27: Adverte sobre aqueles que pecam deliberadamente depois de terem recebido o conhecimento da verdade, restando-lhes "uma expectativa horrível de juízo e fogo vingador que há de devorar os adversários." c) Tito 1:16: Descreve aqueles que professam conhecer a Deus, mas negam-no pelas obras, sendo "abomináveis, desobedientes e reprovados (adokimos) para toda a boa obra."
b) Os Réprobos (Adokimos)
O conceito de reprovação (reprobation) na teologia reformada, baseado em textos como Romanos 9 e 2 Coríntios 13:5 ("examinai-vos se realmente estais na fé; provai-vos a vós mesmos. Ou não reconheceis que Jesus Cristo está em vós? Se não é que já estais reprovados [adokimos]"), aborda a rejeição eterna. A reprovação é a decisão soberana de Deus de não conceder a graça salvadora (eleição) a certos indivíduos, permitindo-lhes permanecer em seu estado de pecado e, consequentemente, condenando-os por sua incredulidade e desobediência. Teólogos como João Calvino e a Confissão de Fé de Westminster (Capítulo III) definiram a reprovação como o decreto duplo de Deus, em que Ele “elege” alguns para a salvação e decreta que o restante passará pela queda e condenação por seus pecados.
c) O Juízo e a Sentença
Jesus descreve explicitamente a rejeição final no cenário do Juízo: a) Mateus 7:23: No Sermão da Montanha, Jesus declara aos falsos mestres e obreiros de iniquidade: "Nunca vos conheci; apartai-vos de mim, vós que praticais a iniquidade." A rejeição é a privação da relação pessoal com Cristo. b) Mateus 25:41: Na parábola do Juízo Final, o Rei dirá aos que estiverem à sua esquerda: "Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos." A rejeição escatológica é a destinação ao inferno. c) 2 Tessalonicenses 2:10-12: Menciona a rejeição daqueles que "não receberam o amor da verdade para serem salvos," sobre os quais Deus envia uma operação do erro para que creiam na mentira e sejam julgados.
4. IMPLICAÇÕES TEOLÓGICAS E LITERATURAS AFINS
A doutrina da rejeição divina tem implicações profundas na compreensão da Soberania de Deus, da Justiça Divina e do Livre-arbítrio Humano. Apesar de sabermos que “livre-arbítrio” não é necessariamente uma terminologia teológica, mas filosófica, a Doutrina Cristã acolheu para ilustrar as designações das escolhas humanas. É natural na teologia, o diálogo com outras ciências para direcionamento ou apropriação conceitual.
a) Soberania e Justiça
A rejeição divina, especialmente em seu sentido escatológico, afirma a soberania inquestionável de Deus sobre o destino final. Romanos 9:22-23 fala do poder de Deus sobre os "vasos de ira, preparados para a perdição" e os "vasos de misericórdia, que para glória preparou." A rejeição é, portanto, um exercício de Sua justiça retributiva. Deus não é injusto; Ele julga os ímpios com base em suas obras iníquas (Salmo 7:11-12). Quanto à soberania Divina, o ser humano é inútil nos seus questionamentos. Ainda que tais questionamentos sejam legítimos, (como os questionamentos de Jó diante de Deus) diante do Eterno não tem peso de igualdade. Afinal, onde estávamos quando Deus estabeleceu os firmamentos da terra? (Cf. Jó 38.4-7).
b) A Responsabilidade Humana
Apesar da soberania divina na reprovação, a Bíblia enfatiza que a culpa da rejeição recai inteiramente sobre o ser humano. Deus deseja que todos se arrependam (2 Pedro 3:9), mas o indivíduo, em seu livre-arbítrio decaído, endurece seu coração (Êxodo 7:3, Romanos 9:18) e recusa o convite da graça. Distinta de outras religiões, o cristianismo, fundamenta a responsabilidade nas escolhas humanas. Liberdade sem responsabilidade não faz sentido! Vale lembrar, quando no Brasil, foi assinada a Lei Áurea, onde muitos escravizados fi zeram a escolha de permanecer sob as rédeas da escravidão. Pois, uma vez livres, teriam que se sustentar. Isso revela o que a Bíblia sempre disse a respeito da “comodidade” do pecado.
c) Literatura Teológica
A discussão sobre a rejeição divina é um pilar da teologia sistemática, observe: a) Agostinho de Hipona: Em obras como A Cidade de Deus, desenvolveu a doutrina da graça irresistível e da predestinação, fornecendo as bases para a ideia de que Deus soberanamente permite que alguns permaneçam em sua condenação justa. b) João Calvino: Em As Institutas da Religião Cristã, detalhou a doutrina do duplo decreto (eleição e reprovação), argumentando que a rejeição é um "decreto terrível, confesso" (horribile decretum), mas necessário para sustentar a soberania completa de Deus. c) Arminianismo e Teologia Wesleyana: Apresentam uma visão que mitiga a predestinação incondicional, focando na presciência divina (Deus sabe quem O rejeitará, mas não determina ativamente a rejeição) e na rejeição como consequência direta da persistente resistência humana à graça preveniente de Deus.
5. CONCLUSÃO
A rejeição divina é um tema multifacetado na Escritura. Em um sentido, ela é a privação do favor divino para um ofício específico (Saul) ou uma disciplina pactual temporária (Israel).
Em seu sentido mais severo e final, a rejeição é o juízo escatológico sobre aqueles que, em sua persistente incredulidade e iniquidade, rejeitam a obra salvífica de Jesus Cristo.
Ela não é um capricho, mas a manifestação da Santidade e Justiça de um Deus que não pode tolerar o pecado. A fundamentação bíblico-teológica aponta para a rejeição como o fim justo daqueles que optaram pela autonomia e pela inimizade contra Deus, servindo como um solene lembrete da seriedade da obediência, da fé e da necessidade urgente de acolher a eleição graciosa em Cristo Jesus, o único refúgio contra o decreto de reprovação.
É vital equilibrar essas passagens bíblicas apresentadas neste artigo sobre rejeição divina, não podem ser recortadas da essência da mensagem central das Escrituras: a) A rejeição não é o desejo primário de Deus: Lamentações 3:31-33 e 2 Pedro 3:9 mostram que Ele tem compaixão e não quer que ninguém pereça. O Senhor é infinitamente mais misericordioso do que irado. Aliás, o Senhor é apresentado nas Escrituras como aquele que é tardio em irar-se (cf. Naum 1:3 e Números 14:18). b) É possível retornar: A rejeição de Israel (como nação em aliança) não foi final. Romanos 11 fala de um remanescente e da possibilidade de enxertá-los novamente. c) A garantia para o crente em Cristo: João 6:37 é a promessa fundamental: "Todo aquele que o Pai me dá virá a mim; e o que vem a mim de maneira nenhuma o lançarei fora." A segurança está em Cristo, não em nossa própria justiça. d) O critério é a fé e o arrependimento: A rejeição fi nal (no Juízo) é para os que persistentemente rejeitaram a Deus e se recusaram a se arrepender e crer (João 3:18, 36).
Assim, as referências bíblicas mostram que Deus rejeita aqueles que, de forma persistente e impenitente, rejeitam a Ele, quebram Sua aliança e se recusam a ouvir Seus apelos ao arrependimento. A "rejeição" é o triste reconhecimento judicial de uma escolha humana definitiva, nunca um ato de arbitrariedade divina. A mensagem predominante da Bíblia é um convite ao arrependimento e à reconciliação, sendo a obra de Cristo na cruz a prova máxima de que Deus não deseja rejeitar, mas acolher.
Daniel Santos Ramos (@profdanielramos) é professor (Português/Inglês - SEE-MG, EJA/EM/EFII), colunista do Guia-me e professor de Teologia em diversos seminários. Possui Licenciatura em Letras (2024), Bacharelado/Mestrado em Teologia (2013/2015) e pós-graduação em Docência. Autor de 2 livros de Teologia, tem mais de 20 anos de experiência ministerial e é membro da Assembleia de Deus em BH.
* O conteúdo do texto acima é uma colaboração voluntária, de total responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a opinião do Portal Guiame.
Leia o artigo anterior: Entre o Espírito e a Shekinah
