Andar direitinho conforme as leis do nosso país já é em si uma das mais difíceis missões. Agora, imagine ter de andar direitinho conforme as leis de dois países; tarefa pra lá de complicada.
Como agradar dois governos? Como respeitar cidadãos de lá e de cá? Como evitar com todas as forças a demagogia, a hipocrisia, a falsidade? Como se relacionar? Como agir? Como escolher? Como decidir? São muitos, enormes e complexos os desafios que se apresentam para todo discípulo de Cristo, afinal, desde quando recebemos a Cristo recebemos uma nova cidadania.
Enquanto ambas as leis, regras e códigos concordam, tudo bem, dá pra ir tocando com relativa facilidade. As dificuldades começam quando as visões se apresentam divergentes, contrárias, difíceis de encaixar. É nessa hora que o peso de escolher e decidir fica difícil de segurar.
Uma cidadania é do céu, outra é da terra. Precisamos priorizar o céu, mas ainda estamos por aqui, na terra. Somos cidadãos de duas pátrias, uma terrestre, outra celeste. Então surgem bifurcações com ordens, determinações e vontades diferentes. Como seguir? Como continuar?
Jesus nos ajuda a responder. Ele viveu tendo que discernir seu tempo, as armadilhas, as ciladas e todo tipo de ataque que armavam contra sua pessoa. Ele veio por soberana vontade do Pai, a quem amava e obedecia. Em suas palavras e atitudes, deixou bem claro que seu reino não era daqui, mas do céu. E ainda assim, mesmo não concordando com muitas das regras do jogo daqui, se sujeitou a viver como um de nós, suportando em amor e lutando através de seu testemunho e pregação contra tudo e todos que afrontavam a vontade de seu Pai.
Uma passagem deixa as duas cidadanias bem evidentes. Uma pergunta de cunho político foi feita, daquelas que normalmente nos deixam num beco sem saída. Uma pergunta que certamente aniquilaria cidadãos da terra, e do céu, como a gente. O detalhe é que esta pergunta foi feita a um cidadão do céu, Jesus, que naquele momento, por vontade própria, vivia também a cidadania da terra. Por isso mesmo, trazia consigo uma sabedoria que mestre rabino algum jamais alcançaria.
A pergunta, como uma flecha, foi lançada contra Jesus em Mateus 22:17: “É lícito pagar tributo a César, ou não?”
Os opositores de Cristo tinham certeza da vitória intelectual na formulação da pergunta. Se Jesus respondesse “sim”, automaticamente seria detonado pela opinião pública dos judeus, que odiavam pagar impostos abusivos a Roma. E mais, seria como se Ele negasse o próprio Deus, uma vez que o César era para aquela cultura um tipo de deus. Por outro lado, se respondesse “não”, seria condenado pelo poder romano como um rebelde e desobediente às leis do império. Que dilema! E que desafio!
Então, a partir de uma pergunta inesperada, Jesus fez a flecha voltar-se contra a malícia malandra de seus opositores: “Jesus, porém, conhecendo-lhes a malícia, respondeu: Por que me experimentais, hipócritas?” (pra dizer o mínimo, temos aqui uma reação extremamente firme de Jesus), continuando, “Mostrai-me a moeda do tributo”.
Trouxeram-lhe um denário. E Ele lhes perguntou: De quem é esta efígie e inscrição? Responderam: de César. Então lhes disse: “Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Mateus 22:18-21).
Jesus deu um nó em seus interlocutores. Ao pedir a moeda e fazer a retórica pergunta sobre a imagem e a inscrição, estava afirmando que naquela região, época e cultura, César era o governante, portanto investido de um poder que deveria ser respeitado. Ao finalizar com chave de ouro ordenando dar a Deus o que é de Deus, estava afirmando nossa dupla cidadania, pois em Cristo somos cidadãos dos céus.
Na resposta, Cristo também indiretamente afirma o que mais tarde Paulo vai elaborar: governos são autoridades espirituais, afinal “... não há autoridade que não proceda de Deus… ” (Romanos 13:1).
Se tal governante é bom ou mal, se teme a Deus ou não, é decisão individual, mas ainda que não saiba ou admita, só está onde está, em sua posição política, porque Deus o investiu de autoridade. Exemplos na bíblia não faltam: Saul, Ciro, Nabucodonosor, Pilatos etc.
E quanto a nós? Não temos o discernimento e o poder de Cristo, diriam alguns. Em I Coríntios 2:16, Paulo parece discordar de tais lamentos: “Pois quem conheceu a mente do Senhor, para que o possa instruir? Nós, porém, temos a mente de Cristo”.
Neste trecho da carta, Paulo está defendendo que a mensagem do evangelho não se rende à sabedoria humana, enquanto alguns naquela comunidade cobravam do apóstolo uma linguagem mais equilibrada com a filosofia grega e que fosse mais palatável ao sabor do homem.
A pergunta de Paulo, ele retira de Isaías 40:13, a conclusão, porém, vem do fato dele ter se encontrado com Jesus e assim poder confrontar aquela geração como quem tem “a mente de Cristo”.
E qual confronto ele teve com a comunidade de Corinto? Veja alguns:
Facções. A igreja se dividia na preferência por homens, criando grupos e causando divisões entre os irmãos.
Problemas doutrinários. Haviam grupos que não acreditavam na ressurreição. Outros nutriam dúvidas quanto a casar ou ficar solteiro. Uns bagunçavam os momentos litúrgicos quanto aos dons espirituais. Havia gente que se embriagava na Ceia. E mesmo com tudo isso, se achavam super espirituais.
Problemas morais. Um irmão processava outro num tribunal. Um grupo praticava prostituição religiosa. Um homem mantinha relacionamento sexual com a mulher de seu pai, levando Paulo a dizer em I Coríntios 5:1: “Geralmente se ouve que há entre vós imoralidade”, portanto era público e, para piorar, a igreja convivia tranquilamente com o problema: “E, contudo, andais vós ensoberbecidos, e não chegastes a lamentar, para que fosse tirado do vosso meio quem tamanho ultraje praticou?”, v. 2.
Ou seja, na visão paulina, ter a mente de Cristo é se pautar única e exclusivamente pelo que diz a Palavra, tudo o que passar e for além do texto sagrado, não tem nem moral e nem poder para regular e normatizar a conduta dos filhos de Deus.
Paulo não iria ceder a pressão para aliviar seu discurso, tão somente pelo fato da audiência querer algo mais leve. Duas cidadanias implica em honrarmos ambas, porém com o mesmo caráter.
Vivemos numa sociedade que, como a de Corinto, chama o errado de certo, o injusto de justo, o promíscuo de puro, o imundo de limpo, o carnal de espiritual, a morte de vida, a imoralidade de arte. O que faremos? Paulo, no caso do incesto, (já aceito por parte da sociedade atual), entregou o tal a satanás.
E qual seria o limite para transitar nas duas cidadanias? Obedecer antes a Deus do que aos homens, Atos 5:29.
Uma síntese possível sobre o que Paulo orienta em suas duas cartas aos Coríntios seria essa: “Deus é contra toda forma de idolatria e prostituição, portanto voltem-se a obediência e adoração ao único Deus e busquem a santificação, sem a qual ninguém verá o Senhor.”
Vamos combinar: a mensagem de Paulo não foi popular por lá, de igual forma não seria aqui.
Falar sobre o Jesus top, legal, brother, que espalha luzes de amor, é tranquilo. Agora experimente falar que Ele é único, somente Ele salva, que devemos total obediência a Ele, que Ele é o nosso Senhor e destinou os prazeres e as bênçãos do sexo apenas para os limites da família. Ou seja, adoração somente a Ele, sexo somente segundo as orientações dEle. Faça essa defesa publicamente e veja quais serão as reações da galera que usa a palavra “amor” para justificar todas as suas taras e crenças.
Os desafios das duas cidadanias são constantes. Sempre teremos de decidir e escolher. Daqui alguns dias, teremos o segundo turno das eleições. Como disse, preciso andar aqui como quero andar lá na pátria celestial. Mas por enquanto, para este mundo caído, devo ser representante de lá. Minhas ações e decisões dizem muito sobre o Deus que amo, adoro e sirvo. Os valores que escolho na hora do voto falam muito mais sobre mim, quem sou, o que quero, qual o propósito do meu papel na sociedade, do que sobre o candidato que escolho. Enfim, minhas escolhas e decisões ecoam na eternidade que sonho.
Paulo, apóstolo, também tem uma palavra certeira para um momento como este, que está em I Coríntios 10:31: “Portanto, quer comais quer bebais, ou façais outra qualquer coisa, fazei tudo para glória de Deus.”
Interessante ele ter dedicado tais palavras a problemática comunidade de Corinto. Era como se ele estivesse dizendo: Tudo que exorto, recomendo e provoco é no sentido de despertar as vossas consciências, não é para proibir vocês de desenvolverem a vida em meio à sociedade. Nada disso! O que quero é que vocês se relacionem, interajam, comam, bebam, enfim, façam qualquer coisa, mas sempre se perguntem, o que escolho, decido e faço, glorifica a Deus? Se sim, vá em paz, o Senhor é contigo.
Edmilson Ferreira Mendes é escritor, pastor, teólogo, observador da vida.
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