Além de seu duro preço em sofrimento humano e divisões cada vez mais amargas, a guerra em Gaza despertou o monstro adormecido do antissemitismo na Europa. Eu não diria o mesmo para a América Latina, embora haja sinais de que a fera pode estar despertando.
Alguns governos latino-americanos indicaram sua insatisfação com os atos de Israel. Chile e Brasil chamaram seus embaixadores, Fidel Castro acusou os israelenses de genocídio e todos os governos favoráveis à revolução populista na Venezuela condenaram publicamente Israel pela guerra. Embora essa rejeição política não seja antissemítica, algo novo está surgindo na mídia social em língua espanhola, principalmente entre os jovens, onde a condenação a Israel muitas vezes é acompanhada de discursos antissemitas. A América Latina não é especialmente antissemita, mas há o perigo de que se torne.
Em 1938, Jorge Luis Borges descreveu o antissemitismo na Argentina como um “fac-símile” baseado em modelos europeus. Isso foi uma verdade durante décadas, não apenas na Argentina mas em outros pontos da América Latina, onde o antissemitismo se baseou em dois ódios importantes: o antigo antijudaísmo da tradição católica espanhola e o racismo europeu moderno dos séculos 19 e 20. Nos últimos anos, porém, esses sentimentos foram reforçados por uma terceira influência —o conflito israelense-palestino— e se desenvolveu em um novo e inesperado preconceito: o antissemitismo de esquerda.
Desde os primeiros dias da conquista, no século 16, até meados do século 17, ondas de imigrantes judeus da Espanha e de Portugal chegaram ao Novo Mundo. Como o judaísmo e o islamismo foram proibidos na península Ibérica depois da reconquista pelos Exércitos cristãos, esses imigrantes ficaram conhecidos como “conversos” ou convertidos, que muitas vezes disfarçavam sua prática do judaísmo e assim eram chamados de “marranos”, ou judeus secretos.
O estudioso Jonathan Israel descreveu essa primeira migração para o Novo Mundo e suas consequências. Esses exilados instruídos estabeleceram uma impressionante rede financeira e comercial que abrangia continentes. Mas quando elas foram cortadas pela Inquisição no século 17, essas gerações desapareceram da memória popular, deixando apenas alguns vestígios culturais, como os muitos nomes portugueses judaicos que se espalharam pela América Latina. Talvez por causa de seu rápido desaparecimento na população em geral, não se desenvolveu qualquer variedade nativa de antissemitismo em relação a eles.
Na Espanha a história é um pouco diferente. Havia judeus na Espanha antes do nascimento de Cristo, e embora tenham sido oficialmente expulsos em 1492 sua presença havia sido tão vital para o país que continuou marcando a Espanha até hoje. O antigo antijudaísmo continua vivo no discurso cotidiano, na lenda popular e entre setores influentes da opinião pública, mas sua contrapartida positiva não está menos viva em um culto de respeito pelo legado dos sefardim (antiga comunidade judia espanhola) e uma tradição liberal de interesse pelas tradições judaicas.
No final do século 19, os países da América Latina pós-independência receberam novas levas de imigrantes judeus. Muitos fugiram da perseguição na Rússia e na Europa oriental, e a maioria rumou para a Argentina. Quando o antissemitismo reforçado pelo nazismo se ergueu na Europa, milhares de judeus poloneses (entre eles meus pais e avós) vieram para o México nos anos 1920 e 30. Aqui eles encontraram, como na maior parte da América Latina, uma tolerância geral —embora a Argentina fosse um caso um pouco mais complicado.
Então veio a Segunda Guerra Mundial e o auge da propaganda nazista. Quando a guerra irrompeu, parte da imprensa latino-americana, um segmento da opinião pública e vários intelectuais, políticos e empresários da direita simpatizaram com o Eixo, animados em parte pelo antiamericanismo e o traço negativo de admiração pelo caudilhismo político. A literatura antissemita foi amplamente divulgada (como os “Protocolos dos Sábios de Sião” e “Mein Kampf”). De particular importância no México foi a revista “Timón”, fundada pela embaixada alemã e dirigida por José Vasconcelos, um proeminente escritor e filósofo mexicano.
Depois da guerra, a disseminação do conhecimento sobre o Holocausto e o crescente prestígio de Israel incentivaram um período bastante pacífico para os judeus latino-americanos. Mas então Perón deu as boas-vindas aos nazistas que fugiram da Alemanha derrotada, permitindo que eles deixassem uma marca racista na sociedade argentina.
Em 1976, durante um período caótico na Argentina, os militares tomaram o poder e iniciaram um regime selvagem de tortura e assassinato de esquerdistas e liberais. Como mostrou Jacobo Timerman no livro “Prisoner Without a Name, Cell Without a Number” (prisioneiro sem nome, célula sem número), o antissemitismo argentino —especialmente forte entre a elite fundiária e militar, assim como na Igreja Católica— criou uma situação em que os judeus que caíram nas mãos da Junta Militar foram tratados, como no caso de Timerman, com antissemitismo nazista. É marcante a descrição pelo autor de uma sessão de tortura elétrica durante horas, em que não houve perguntas, apenas gritos de “Judeu, judeu!” —e sua lembrança da tortura em uma sala com uma foto de Hitler na parede.
O terror terminou com a queda do regime em 1983, mas em 1994 um ataque do Hizbullah (aparentemente apoiado pelo Irã com cúmplices locais) ao Centro Comunitário Judaico em Buenos Aires matou 85 pessoas. Foi o segundo ato terrorista antijudaico em Buenos Aires em dois anos. A inquietação no Oriente Médio havia afetado desastrosamente a comunidade judaica latino-americana. E a raiva compreensível pela ocupação israelense dos territórios subitamente cresceu em um movimento que se tornou um antissemitismo de esquerda, especialmente forte nos círculos universitários.
Dois outros fatores também influenciaram as atitudes em relação aos judeus: o elemento antissemita (pró-palestino) que foi introduzido no “chavismo” na Venezuela e o crescimento das redes sociais, onde se podem encontrar todos os lugares-comuns do antissemitismo de direita, muitas vezes sancionados por professores de esquerda.
Os bombardeios a Gaza intensificaram enormemente essas reações. Uma solução justa no Oriente Médio poderia abrandar o antissemitismo não apenas na América Latina, mas em todo o mundo. As perspectivas não são animadoras, mas talvez possíveis. Por ora, cada país deve discutir suas próprias reações ao problema —e também as comunidades judaicas, que deveriam participar livremente dessas discussões em um espírito crítico assim como autocrítico.
Por Enrique Krauze - historiador, editor da revista literária “Letras Libres” e autor de “Redeemers: Ideas and Power in Latin America”.
*Artigo publicado inicialmente no New Yor Times