Brasileiros com ascendência judaica lutam para recuperar identidade e fé perdidas

No século 17, pelo menos um quarto da população brasileira era formada por cristãos-novos, pessoas obrigadas a deixar o judaísmo.

Fonte: Guiame, com informações do Religion News ServiceAtualizado: segunda-feira, 3 de junho de 2019 às 18:17
Rabino Gilberto Ventura, que dirige a Sinagoga Sem Fronteiras. (Foto: Reprodução/ Alexandre Aroeira)
Rabino Gilberto Ventura, que dirige a Sinagoga Sem Fronteiras. (Foto: Reprodução/ Alexandre Aroeira)

Nas últimas décadas, o Brasil experimentou um inesperado ressurgimento judaico alimentado pelos descendentes de judeus portugueses e espanhóis forçados a se converter ao cristianismo nos tempos coloniais, que ultimamente recuperaram sua identidade e fé perdidas.

Hoje, graças a novas ferramentas para o estudo da genealogia e a ajuda de um rabino de boas-vindas, os Bnei Anusim (“filhos dos coagidos”), como são chamados, deram os primeiros passos para serem novamente reconhecidos como judeus.

As primeiras famílias judias do Brasil foram expulsas da Península Ibérica a partir do século 16, quando a Espanha e as colônias de Portugal no Novo Mundo estavam explodindo. Antes de serem deportados, muitos já haviam sido forçados a se converter ao catolicismo romano e eram oficialmente conhecidos como “cristãos novos”.

No século 17, pelo menos um quarto da população brasileira era formada por cristãos-novos, muitos dos quais alcançaram proeminência econômica e política. Seu sucesso fez deles alvo de ressentimento de seus compatriotas, bem como da Inquisição. Muitos foram acusados ​​de conduzir secretamente rituais judaicos e muitas vezes foram presos ou torturados.

Abandono do judaísmo

Diante da pressão que sofriam, os Bnei Anusim abandonaram suas tradições judaicas ao longo dos séculos ou as combinaram com ideias católicas. A Virgem Maria era frequentemente associada à Rainha Ester, e as figuras de Moisés e Jesus estavam frequentemente interligadas. Outros se tornaram céticos em relação à religião como um todo.

Mas, de acordo com Paulo Valadares, historiador e especialista dos Bnei Anusim, várias famílias de cristãos-novos conseguiram manter suas tradições, evitando certos alimentos, mantendo a distância que podiam da igreja e se casando dentro da nova comunidade cristã.

Os Bnei Anusim - também conhecidos pelo termo espanhol depreciativo “marranos” - geralmente tinham dois nomes: um do Antigo Testamento que era usado na comunidade e outro inspirado pelo Novo Testamento para uso público. As redes clandestinas, muitas vezes com seus próprios símbolos e linguagem secretos, mantinham-nos em contato uns com os outros e com comunidades semelhantes que ainda viviam na Europa.

“Eles também escaparam das grandes cidades na costa e se estabeleceram no campo, onde poderiam viver uma vida mais reclusa”, conta Valadares.

Retorno

Quando os holandeses invadiram o Brasil em meados de 1600, alguns cristãos-novos acolheram seus novos governantes mais tolerantes, e muitos anusim mudaram-se para os territórios holandeses no Caribe ou Nova Amsterdã (depois Nova York) após os holandeses serem expulsos de seu último reduto Recife.

Os 23 fundadores da Congregação Shearith Israel em Manhattan - a sinagoga mais antiga dos Estados Unidos - eram refugiados de Recife.

Na década de 1970, um descendente de cristãos-novos chamado João Medeiros desencadeou o movimento de retorno ao judaísmo. As primeiras comunidades Bnei Anusim a reivindicar publicamente o judaísmo novamente foram fundadas na parte nordeste do país, onde muitos se estabeleceram.

A necessidade de entender suas próprias origens levou Ricardo de Almeida à jornada em direção ao judaísmo. Criado como católico romano e agora com 49 anos, havia se convertido ao evangelicalismo. Mas em 2016, ele contratou um genealogista no estado da Bahia para pesquisar as origens de sua família.

Ricardo logo descobriu que tinha um ancestral português do século 17 que havia sido proibido de trabalhar para a Inquisição por causa de seu status de novo cristão.

“Então ficou provado que eu sou um Bnei Anusim”, disse Almeida. Ele apresentou suas descobertas a um especialista em Lisboa, que certificou sua origem sefardita.

Com o aprofundamento de seu interesse pelas raízes judaicas, ele procurou o rabino Gilberto Ventura e sua esposa, Jacqueline, que moram em São Paulo. Três anos antes, em uma série de vídeos on-line, o rabino Ventura - ele mesmo meio Ashkenazi, meio sefardita - havia começado a tratar da questão dos Bnei Anusim.

Nordeste

Ventura disse que se interessou pelos Bnei Anusim depois que seu estudo da história brasileira o levou a perceber o quão profundamente eles influenciaram a cultura do nordeste do país.

“Pessoas de todo o país começaram a me procurar”, disse Ventura, 45. “Eles disseram: ‘Finalmente, alguém está falando por nós na comunidade judaica’.” Eu viajei para cinco estados para me encontrar com essas pessoas”.

Ricardo almeida diz que “agora sou um membro orgulhoso deste grupo e sinto que minha missão é mostrar aos meus compatriotas as raízes judaicas que temos, que foram tiradas de nós”.

Sinagoga

Hoje os Venturas são os líderes espirituais de 20 comunidades em todo o Brasil, com mais de 900 pessoas em sua Sinagoga Sem Fronteiras. O rabino e sua esposa visitam cada comunidade pelo menos uma vez por mês e se comunicam por telefone ou pela internet. Apesar da descendência de cristãos-novos não ser um pré-requisito para a adesão, muitos nas congregações são.

Hélcio Magalhães, empresário de 49 anos em São Paulo, é outro membro da comunidade de Ventura. Ele também procurou informações sobre suas origens familiares e descobriu alguns cristãos-novos entre seus ancestrais, alguns deles figuras históricas importantes. “Um teste de DNA demonstrou que parte da minha família veio de Israel”, disse.

Agora Magalhães estuda hebraico e história judaica com o rabino. “Outro dia uma pessoa me entrevistou em uma pesquisa e perguntou a minha religião. Eu disse a ele que sou judeu. As coisas parecem fazer mais sentido para mim agora.”

Reconhecimento

Embora a tradicional comunidade judaica no Brasil tenha demorado a aceitar os cristãos-novos, o trabalho de Ventura está ganhando reconhecimento internacional.

Em Israel, o chefe da corte rabínica de Jerusalém, rabino Eliyahu Abergel, endossou seu processo de conversão como válido de acordo com as leis judaicas e disse que sua obra é o cumprimento da profecia de Isaías sobre o eventual retorno dos judeus a Israel. Dez membros da sinagoga de Ventura estudam em yeshivas em Israel.

Uri Blankfeld, coordenador internacional do Instituto de Estudos Sefardi e Anusim do Colégio Acadêmico de Netanya, em Israel, disse que sua organização localizou cerca de 60 comunidades judaicas no Brasil.

“Essas comunidades que detectamos são organizadas em torno dos preceitos judaicos, com frequência regular ao Shabat e às festividades religiosas. Mas o número de descendentes no país é imenso”, afirmou.

No final do ano passado, Ventura e um jovem de sua sinagoga viajaram para Nova York para participar de uma comemoração do 365º aniversário da Congregação Shearith Israel. O rabino que oficiou a cerimônia disse ao jovem brasileiro em seu discurso de abertura: “Lamentamos ter deixado você para trás. O que importa é que você finalmente nos encontrou”.

Depois de séculos perdidos, os Bnei Anusim estão prontos para dar sua contribuição única à comunidade judaica internacional.

“Eu disse a eles que deveriam se orgulhar”, disse o rabino Ventura. “Eu os considero os grandes heróis do mundo judeu hoje em dia.”

 

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