Marisela Álvarez passa grande parte do dia debruçada sobre um fogão elétrico em sua pequena cozinha externa. Seus joelhos doem muito. Seu cabelo ruivo tem cheiro de óleo de cozinha.
Mas faz anos que ela não se sente tão feliz assim.
"Me sinto útil, sou independente", disse Álvarez, que, em novembro, abriu um pequeno café em sua casa, nesta decadente cidade a 40 km da capital cubana, Havana. "No fim do dia, quando me sento e vejo o quanto fiz, fico satisfeita".
Com zelo e entusiasmo, cubanos estão aceitando a oferta do governo de trabalhar para si próprios, vendendo café em seus quintais, alugando casas, produzindo móveis de junco e vendendo coisas que vão de DVDs piratas a borracha de silicone e vinho caseiro. Na esperança de ressuscitar a debilitada economia de Cuba, o presidente Raúl Castro abriu as portas, no ano passado, para uma nova, ainda que limitada, geração de empreendedores, depois de alertar que a "inchada" folha de pagamentos do estado poderia acabar "colocando em risco a própria sobrevivência da Revolução".
A federação trabalhista de Cuba afirmou que o governo demitiria meio milhão dos cerca de 4,3 milhões de funcionários públicos até março, emitindo centenas de novas licenças para pessoas que querem entrar para o minúsculo setor privado cubano, no que pode ser a maior reforma de uma economia operada pelo estado desde que Fidel Castro nacionalizou todos os empreendimentos, em 1968.
Até o final de 2010, o governo tinha emitido 75 mil novas licenças, de acordo com o "Granma", jornal oficial do Partido Comunista, inflando o índice oficial de autônomos em 50%.
Ainda há um longo caminho até a quantidade necessária para criar alternativas para todos os trabalhadores que acabarão sendo demitidos, e não há garantia de que o mercado suportará centenas de milhares de autônomos. Porém, as licenças vêm sendo concedidas rapidamente, e o governo tem incentivado a burocracia a continuar assim.
As ruas antes destituídas de comércio, em cidades como esta e em Havana, estão pouco a pouco tomando vida, à medida que as pessoas penduram placas e toldos do lado de fora de suas casas, ou montam barracas na beira da estrada. Um engenheiro eletrônico, que por anos operou à sombra, agora publica folhetos alegando consertar todos os aparelhos existentes. Uma praticante da Santería vende colares de contas, sardinha moída e milho torrado usado em cerimônias na loja de sua casa, com teto de estanho.
Álvarez e o marido, Ivan Barroso, receberam uma licença para o café e outra para vender carne e peixe. Agora, o casal comanda um negócio ativo servindo rolinhos recheados com porco ao alho e atum fresco por 60 centavos de dólar, num balcão de madeira na entrada de sua casa. Álvarez, ex-bibliotecária de uma escola que desistiu de trabalhar há muitos anos, administra o café com o enteado. Barroso sai para pescar, separa os porcos e entrega produtos a clientes em Havana.
"Se você tem a capacidade, a dedicação para alcançar uma coisa, deve aproveitar", disse Barroso. Até novembro do ano passado, ele vendia peixe e porco sem licença a um círculo próximo de amigos e clientes.
US$ 20 por mês
Cerca de 85% de todos os cubanos com emprego trabalham para o estado, ganhando aproximadamente US$ 20 por mês em troca de acesso gratuito a serviços como saúde e educação, e uma quota de bens subsidiados.
Ainda que de má vontade, Fidel Castro permitiu que o setor privado se enraizasse no começo dos anos 1990, depois que o colapso da União Soviética derrubou a economia de Cuba. Entretanto, ao longo dos anos o governo parou de emitir novas licenças e sufocou muitos negócios com impostos e proibições.
Desta vez, Raúl Castro, que assumiu o poder do seu irmão Fidel em 2006, afirma que as coisas mudaram. Num discurso realizado na Assembleia Nacional, em dezembro passado, ele pediu que membros do governo e o Partido Comunista ajudem o setor privado, sem "demonizá-lo".
"É essencial que modifiquemos o sentimento negativo que muitos de nós nutrimos em relação a este tipo de trabalho privado", disse Castro. Muitas pessoas continuam céticas. Juan Carlos Montes administrou um restaurante privado no pátio de sua casa em Havana por cinco anos, mas ficou exausto de receber visitas de inspetores implicantes e fechou o estabelecimento no ano 2000. Agora, ele está relutante em começar de novo.
"Quando alguém que tem o mesmo argumento há mais de 40 anos de repente muda o tom, é preciso muita fé para acreditar", ele disse.
A esposa, Yodania Sanchez, vem tentando mudar a mentalidade de Montes. Ela tem licença para alugar dois quartos em sua desordenada casa e paga cerca de US$ 243 em impostos todo mês, independente da ocupação dos quartos.
"As mudanças são realmente positivas. Há novas oportunidades", disse ela, enquanto limpava a minúscula cozinha. "As pessoas querem que Cuba se torne uma Suíça da noite para o dia, mas isso não é possível".
Mas Montes jura que não abrirá um novo restaurante até que haja um mercado de atacado.
"As pessoas não conseguem o que precisam para gerenciar um negócio", ele disse. "O carpinteiro não tem madeira. O eletricista não tem cabo. O encanador não tem canos. No momento, não há farinha nas lojas. Então o que as pizzarias estão fazendo? Elas têm que comprar coisas roubadas das padarias".
O governo afirma que estabelecerá um mercado atacadista _ embora isso possa levar anos _ e que, este ano, importará US$ 130 milhões em bens e equipamentos para o setor privado. Também planeja micro-empréstimos e cooperativas comerciais, além de permitir que as pessoas comprem e vendam carros e casas, uma medida que, como especulam alguns analistas, pode ser anunciada antes do Congresso do Partido Comunista, em abril.
Por ora, carpinteiros como Pedro Jose Chávez só estão autorizados a fazer reparos, e não produzir objetos, pois não há mercado legal para a madeira. Sua oficina, que fica em cima do telhado na área de Vedado, em Havana, está cheia de máquinas feitas com partes reaproveitadas, pois as ferramentas reais são muito caras.
"É um absurdo que eles concedam uma licença para trabalhar, mas não deem acesso a materiais", disse Chávez. "Cuba está se desintegrando", ele acrescentou, apontando para os prédios ali perto. "Poderíamos ajudar a reconstruí-la".
Lista de ocupações
Para que o setor privado prospere, o governo deveria expandir bastante a lista de ocupações abertas para os autônomos, a fim de incluir profissões como engenharia ou direito, disse Ted Henken, especialista no setor privado cubano da Baruch College. A lista de 178 trabalhos atualmente abertos para os autônomos cubanos _ entre eles, conserto de guarda-chuva e de bases de camas _ é altamente específica e parece ter o objetivo de legalizar e cobrar impostos de pessoas que trabalham no mercado negro.
"Há muito mais coisas a serem feitas para que o estado saia do caminho e para que as pessoas produzam e empreguem", afirmou Henken.
O governo também precisará confrontar a questão dos direitos civis e políticos que surgirá com o crescimento de uma classe comercial, incluindo assuntos potencialmente polêmicos, como as crescentes disparidades na concentração de riqueza.
"Não há fim para o caos e as demandas de uma economia privatizada", disse Henken.
Enquanto isso, Álvarez e Barroso estão saboreando a vida no mercado quase-livre. Barroso se debruça diariamente sobre um livro onde calcula margens de lucro. As vendas totais para os dois negócios estão em cerca de US$ 270 por mês, ele disse. Barroso e a esposa pagam US$ 37 cada um em impostos por mês, mais 10 por cento do lucro no final do ano.
Álvarez compete por clientes com alguns outros cafés que abriram a menos de duas quadras do dela. Recentemente, todos os três tinham mais clientes do que o sombrio bar estatal na mesma rua, cujas ofertas incluíam sanduíche de omelete, charutos enrolados à mão e preservativos.
"Acho que o governo percebeu que o negócio estatal não funciona", disse Barroso. "É o setor privado que gera concorrência. Temos o hábito de fazer mal as coisas em Cuba, mas a concorrência vai consertar tudo isso".