Um dos acessos ao Conjunto de Favelas do Alemão, na Zona Norte do Rio, é o atual endereço de quase duas mil pessoas há mais de sete meses. Elas vivem em clima de incerteza depois que uma decisão judicial definiu a reintegração da antiga fábrica onde se instalaram. Autoridades da área de segurança pública afirmam que estão planejando a operação para que a reintegração seja executada, mas ainda não há prazo para ela acontecer.
O imóvel fica na Avenida Itaoca 1776, na antiga fábrica do empresário árabe Tuffy Habib. Ele abriga 1992 pessoas cadastradas, mas o número pode chegar a quase cinco mil pessoas, segundo a associação de moradores Nova Tuffy. A reintegração foi decidida pela 7ª Vara cível do Méier no dia 31 de março, mas ainda não aconteceu porque o Tribunal de Justiça do Rio não decidiu a data.
Na decisão do juiz André Fernandes Arruda, ele aceita o pedido de reintegração, movido pela Comercio e Industria Tuffy Habib S.A e Associação Beneficente Recreativa Itaoca. Para que a reintegração seja realizada, no entanto, foram mandados ofícios para as secretarias municipal e estadual de Habitação, a secretaria municipal de Desenvolvimento Social e a estadual de Direitos Humanos; ao comando da UPP Nova Brasília, para viabilizar o cumprimento da ordem judicial ; às procuradorias gerais do Município e do Estado e à Defensoria Pública Geral do Estado do Rio. para acompanhar a diligência e oferecer auxílio aos ocupantes.
No texto, Arruda afirma que esses cuidados foram tomados "em razão das peculiaridades do caso, o grande número de pessoas envolvidas na invasão e o histórico recente de conflitos na região". Arruda afirma ainda que, apesar de compreender o ato dos réus, o déficit habitacional do Rio "não pode ser utilizado para justificar invasões e turbações à propriedade privada". O juiz informou que estão sendo realizadas diversas reuniões para esquematizar a operação e aguardando a autorização da Polícia Militar "para que a operação ocorra com a maior segurança possível".
Compasso de espera
Enquanto a reintegração não ocorre, os ocupantes esperam, em condições precárias, pelo fim do impasse. A fábrica, em um local desgastado e sem manutenção há pelo menos 10 anos, de acordo com moradores da região, foi invadida no dia 23 de março, e foi tomada em dois dias por tábuas de madeira para as barracas e lonas de plástico sendo usadas como teto para os dias chuvosos. Os moradores, que sobrevivem há mais de cinco meses com pouca água potável e sem saneamento básico, afirmam que não vão recuar:
"Temos que resistir. Somos todos sofridos, batalhadores. Queremos uma moradia. Um local como esse é uma vergonha. Não vamos sair sem solução", disse Sueli Edith de Souza, de 52 anos, que veio para a ocupação depois de não conseguir mais pagar o aluguel de R$ 350 na favela da Grota, no Complexo do Alemão.
"Não estamos aqui para fazer baderna nem queremos ser usados. Só queremos uma solução para nosso caso de moradia, independente de quem venha a trazer isso", disse Carlos Alberto da Conceição, de 30 anos, montador de eletrodomésticos e presidente da Associação de moradores da Nova Tuffy, como os ocupantes gostam de chamar o local. "Isso aqui já é uma comunidade de fato. Há 1992 moradores cadastrados, e a cada dia chegam mais", afirma ele. "Vão ter que tomar muito cuidado aqui se vierem reintegrar mesmo", diz o dirigente, mostrando a lista de moradores, atualizada recentemente.
Segundo Carlos Alberto, o diretor da Empresa de Obras Públicas do Rio, Ícaro Moreno Júnior, esteve na fábrica há cerca de duas semanas. Prometeu que, na próxima vez que voltasse, seria com uma promessa de cadastramento para que os moradores fossem para outra região. "Depois disso, nunca mais entraram em contato. Queremos uma solução", pediu ele.
Em nota, a EMOP informa que o presidente, Ícaro Moreno Júnior, vistoriou a área ocupada, pertencente à antiga fábrica. A empresa vem realizando diversas intervenções de reforma urbana de várias comunidades através do PAC, entre elas a do Complexo do Alemão, onde está a área invadida.
Durante a vistoria, Ícaro Moreno disse aos ocupantes que seria preciso um cadastramento, para que fosse verificada primeiro a real situação socioeconômica de cada família.
Foi feito um contato com a Secretaria de Governo da Prefeitura. Segundo a EMOP, isso foi feito porque a Caixa Econômica e o Ministério das Cidades ,agentes mais importantes do Programa Minha Casa Minha Vida, do Governo Federal , exigem que cada família seja previamente incluída no Cadastro Único do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, e quem faz esta inclusão são os Centro de Referência e Assistência Social (CRAS) do Município do Rio. O processo, segundo a EMOP, está em andamento.
Medo e falta de saneamento
Camila Lourenço da Silva, de 25 anos, estava morando de favor na casa de sua sogra, no conjunto de favelas do Alemão. Ela parou de trabalhar aos 20 anos, quando teve o primeiro filho, Lucas, e desde então tem ficado à disposição dos dois filhos, já que há 4 meses nasceu Arthur. Atualmente, Camila se sustenta apenas com os R$ 400 do programa Bolsa Família, do Governo Federal.
Apesar de ainda não haver uma data para a reintegração de posse do terreno, as violentas imagens da ação no prédio da Oi, no Engenho Novo, Zona norte do Rio, permanecem muito vivas nas mentes e olhos desses ocupantes, que não querem que as cenas - que incluíram ônibus queimados, viaturas policiais depredadas, feridos e 26 pessoas detidas – se repitam. Ao ser questionada sobre uma possível reintegração violenta, ela abraça com mais força o primogênito enquanto o amamenta:
“Deus que me livre disso. Aqui há muitas crianças, já imaginou o que pode acontecer caso haja gás de pimenta, bala de borracha? Espero que isso não aconteça”, disse ela, que mora hoje em uma sala do último andar da fábrica, com pouco mais de 10 m².
Os ocupantes reclamam que, devido à sujeira e a falta de esgoto, animais como ratos e baratas aparecem com frequência nas casas. Rosimeri Duarte, de 46 anos, mora em um barraco pouco depois da entrada da fábrica. Apesar do pouco espaço, ela vive ali com a filha Fabiana, de 5 anos de idade. Ela conta que já teve que levar a filha à Unidade de Pronto Atendimento da região, na Estrada do Itararé, devido à contaminação da água que vem para a ocupação, através de ligações clandestinas. "Ela teve diarréia, cólica, passou muito mal. Comprei um filtro e hoje em dia ela só toma água filtrada.
A presença de crianças na ocupação é marcante. Só Joyce dos Santos Silva, de 25 anos, tem três filhos: Juan Vitor, de 6 anos, Kariny Victória, de 4 anos, e Felipe Ricardo, de 1 ano e 6 meses. Ela deixou o Jacarezinho, onde morava com mais uma amiga, e vive na ocupação desde maio.
"Ninguém está aqui porque quer. Estou aqui porque não tenho para onde ir com meus três filhos", contou ela.
Há espaço também para figuras solitárias. Neuza Monteiro Cardozo, de 72 anos, vive sozinha em um barraco nos fundos da ocupação, em um ambiente abafado e escuro. Ela sobrevive cuidando de crianças e fazendo faxinas, e diz que precisa ganhar dinheiro para dar presentes aos netos.
"Só de netos, tenho 12. E agora um bisneto, que nasceu há um mês. Passo quase o dia inteiro fora e volto à noite", contou ela.
Dia da ocupação
Junior, um dos dirigentes da Associação de moradores do local, conta que, no dia da chegada dos ocupantes ao local, 40 a 50 famílias ocuparam o prédio e retiraram dois homens que tomavam conta do estabelecimento. Segundo o vice-presidente da associação de moradores, esses dois se mantinham às custas dos moradores e comerciantes da região
"Eles estavam cobrando R$ 150 para cada carro guardado aqui, cobravam R$ 250 de cada comerciante daqui desse trecho da Avenida Itaoca. Tiramos eles daqui, e eles saíram atirando para o alto, de moto, e a Polícia não fez nada", disse Junior.
Um funcionário de um posto de gasolina em frente ao endereço da ocupação, que não quis se identificar, confirmou que dois homens saíram do local disparando tiros para o alto. "Eles saíram daqui de moto, foi uma confusão muito grande", contou.
Ocorrências
O Alemão possui uma Unidade de Polícia Pacificadora desde 2010. De acordo com a assessoria das UPPs, no dia da entrada das famílias no local, houve registro de tiroteio na região, e também de roubo de objetos de dentro da área da fábrica.
No dia 10 de abril, os ocupantes da fábrica iniciaram uma manifestação na avenida Itaoca, e fecharam a via na altura do cruzamento com a Estrada do Itararé. De acordo com a assessoria das UPPs, os ânimos ficaram exaltados e um policial foi atingido por uma pedrada na cabeça, lançada por um manifestante. Segundo a assessoria, eles reivindicavam solução para a situação de falta de moradia na região.
Os moradores também passam por problemas quando há tiroteios na região, algo comum nos últimos meses. "Quando há conflitos, só podemos rezar para que não aconteça nada. Felizmente, nunca aconteceu", disse Vera Lúcia Pereira, de 58 anos, que está no local desde junho. "O aluguel de R$ 300 ficou muito caro para mim. Ficava entre comer e pagar o aluguel. Aí, vim para cá", relatou ao G1.
Respostas
Em nota, a secretaria estadual de Habitação informa que no dia 01/04/2014, recebeu ofício do Poder Judiciário informando o deferimento da liminar de reintegração de posse da referida área. Por meio deste ofício, foi determinado que dois funcionários do Iterj - Instituto de Terras e Cartografia do Estado do Rio de Janeiro, órgão vinculado à Secretaria de Habitação, acompanhassem a diligência, juntamente com outros órgãos governamentais.
A Coordenadoria de Polícia Pacificadora (CPP) foi notificada sobre a decisão e um planejamento de execução está sendo elaborado para o cumprimento da reintegração, porém sem data definida.
As outras entidades citadas na decisão já receberam os ofícios referentes ao caso, mas não responderam à reportagem do G1 sobre como vão proceder em relação à reintegração de posse.