Segunda-feira (27) o Ministério Público da Bahia realizou uma audiência pública sobre a letra cantada por Claudia Leitte. O evento contou com ânimos acirrados e dificuldade no diálogo e escuta entre as partes opostas. A repercussão do caso se contrasta com a repercussão de outro clipe viral, uma gravação de um pregador de rua sendo agredido na Avenida Paulista, no coração de São Paulo. Pessoas enfurecidas o cercam, lançam sua Bíblia ao chão e buscam impedir sua pregação, intimidando-o.
Essa gravação da Avenida Paulista indica tratar-se de local público, repleto de muitos outros barulhos, inclusive de música rock tocando alto. Assim, o problema não seria o fato do pregador estar fazendo barulho (pois haveriam vários outros barulhos tão ou mais altos a serem protestados naquele ambiente, os quais passaram ilesos) mas o conteúdo de sua mensagem: o Evangelho de Cristo.
O episódio configura possível caso do crime previsto no artigo 20 da Lei 7.716/89 (Lei do Racismo), que pune “Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, RELIGIÃO ou procedência nacional”, crime com pena de 01 (um) a 03 (três) anos e multa. A mesma Lei aumenta a pena de reclusão para 02 (dois) a 05 (cinco) anos se o crime “for cometido no contexto de atividades esportivas, religiosas, artísticas ou culturais destinadas ao público”, aplicando a mesma pena a “quem obstar, impedir ou empregar violência contra quaisquer manifestações ou práticas religiosas”.
O artigo 208 do Código Penal também proíbe “impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso” e/ou “vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso”, o crime de vilipêndio ao sentimento religioso, aparentemente cometido já que perturbaram a pregação pública (uma prática religiosa) e publicamente atacaram uma Bíblia Sagrada, interrompendo sua leitura (ato e objeto religioso). Até o presente momento, não há informação sobre qualquer medida adotada pelo Ministério Público de São Paulo (MPSP) sobre o caso.
O episódio segue amplas denúncias e tentativas de ‘cancelamento’ contra a cantora Claudia Leitte por prática de racismo religioso. No caso de Leitte, viralizou uma gravação de uma apresentação onde a cantora substituiu uma menção à “rainha Iemanjá” por “meu rei Yeshua” (Jesus), na letra da música “Caranguejo”. O Ministério Público da Bahia (MP-BA) abriu um inquérito civil sobre o fato, concedendo à cantora um prazo de 15 dias para se manifestar e agendando uma audiência pública para o dia 27 de janeiro.
A denúncia foi formalizada pelo Instituto dos Direitos das Religiões Afro-Brasileiras (Idafro) e a Iyalorixá (mãe de santo) Jaciara Ribeiro e será seguida, de acordo com as redes da Idafro, por interpelação criminal para que Leitte explique sua alteração. A acusação é de que, ao alterar a letra, Leitte teria desrespeitado as religiões afro-brasileiras, ofendendo assim ao Povo de Terreiro, promovendo o apagamento cultural-histórico e vilipêndio ao sentimento religioso dos mesmos. Nas mesmas redes, fala-se também de “estelionato”, “fanatismo” e “fundamentalismo”, posto a cantora trabalhar com Axé Music e em festas de Carnaval.
Evidentemente, os denunciantes ignoram a ampla cultura/história do Axé Gospel (e até mesmo do Axé Católico), os quais - longe de qualquer “estelionato”, apagamento ou vilipêndio - configuram mero exercício regular da liberdade de expressão artística e religiosa de inúmeros artistas e compositores, em sua maioria, negros (como o protestante Irmão Lazaro, já falecido) e pardos (como a católica Jake Trevisan).
O paralelo entre os dois episódios citados é didático para a compreensão do atual cenário da questão “racismo religioso” no Brasil. No caso do pregador, há uma vítima, violência e violação clara de direitos: a prática religiosa (leitura bíblica) de um homem negro é interrompida violentamente, e o pregador intimidado e agredido por sua identidade religiosa, enquanto um objeto de culto (Bíblia Sagrada) é arremessado ao chão pelos agressores.
No caso da Cláudia Leitte, não há vítima, nem violência, nem violação do direito alheio. Não há discriminação ou qualquer rebaixamento ou lesão aos direitos e dignidade dos praticantes das religiões afro-brasileiras por Leitte ser cristã e adequar a letra de uma música de seu repertório à sua crença religiosa atual. Ir ao show ou de outra forma consumir os produtos artísticos de Cláudia Leitte são opcionais: compra ingresso, assiste, ouve quem quer.
Como em inúmeras outras releituras artísticas disponíveis online, um aspecto da música é alterado ao gosto do artista. Em nada constata-se atitude pejorativa, agressiva ou de menoscabo por parte de Leitte. Poderiam, eventualmente, os autores discutir judicialmente algo no quesito dos direitos autorais, dependendo dos contratos e permissões concedidos (ou não) entre as partes - mas se fosse este o caso, deveriam os autores terem se manifestado quando Leitte primeiro começou a prática, já que outros registros demonstram Leitte alterando a letra desde 2014 (em outro clipe viral, de 2021, Leitte saúda “meu rei Yeshua HaMashiach” ao lado de Ivete Sangalo).
Que dano moral, exatamente, teria ocasionado a cantora por não celebrar a religião alheia? Estariam os artistas obrigados, por Lei, a louvar aos orixás ao cantar qualquer ritmo de origem afro-brasileira? Como não considerar essa atuação litigância de má-fé, se os envolvidos bem sabem que tais obrigações inexistem em Lei e que cerceiam a livre expressão do pensamento, da religião e da arte?
Em conjunto, os casos evidenciam um contrassenso que se alastra no cenário jurídico-político do Brasil. Trata-se do fruto da “fé revolucionária”, que arregimenta uma crescente burocracia em torno do ideal de constante revolução e combate. Após conseguir o reconhecimento de direitos iguais em Lei, os institutos e organizações criados pelos movimentos sociais precisam continuar justificando sua existência - e o financiamento que recebem - criando novos conflitos nos quais podem atuar, demonstrar serviço e urgência de causa. No Brasil, contam com o apoio quase incondicional dos Ministérios Públicos, cuja estruturação favorece uma postura ativista - prejudicial ao debate público, à liberdade de expressão e a aplicação subsidiária do Direito Penal, mas (à semelhança do ativismo das militâncias) favorável aos próprios interesses.
Dá-se o nome de “lawfare” à prática de assédio judicial, onde determinado(s) grupo(s) buscam perseguir, calar e punir seus inimigos usando o aparato estatal e legal. No Brasil, percebe-se um forte movimento de lawfare por parte de promotores de causas minoritárias que não possuem apoio popular ou força política para emplacar seus pleitos democraticamente no Legislativo. Recorrem ao Judiciário para denunciar seus opositores, criando um cenário onde ganham quando conseguem a condenação do inimigo, mas também ganham quando quem pensa diferente deixa de exercer seu direito para evitar um processo ou “dor de cabeça” (dá-se o nome de “chilling effect” a esse efeito inibitório).
O Ministério Público frequentemente entra em cena para chancelar as denúncias. O cancelamento de figuras como Cláudia Leitte, orquestrado e coordenado por grupos de interesse que menosprezam sua crença é assim legitimado sob a guisa de notícia ou explicação da atuação do Ministério Público. Meses ou até anos podem se passar até que a parte denunciada consiga o arquivamento ou absolvição.
Mostra-se necessário problematizar a atuação exacerbadamente ativista dos Ministérios Públicos, que (in)diretamente chancelam cancelamentos e linchamentos virtuais e minam direitos fundamentais por meio da intimidação e exposição pública. Mostra-se necessário distinguir entre a litigância legítima e de má-fé, o lawfare que vale-se do ajuizamento de ações para assediar e esvaziar as forças do pensamento contrário. Mostra-se necessário também trabalhar melhor questões conceituais, distinguindo a discriminação (nos termos da Lei) daquilo que alguém simplesmente não gosta ou não aprova, inclusive, a expressão de opiniões e crenças que nos aborrecem, mas são protegidas por Lei – justamente por inexistir um direito subjetivo das pessoas só serem submetidas, na vivência democrática, a expressões com as quais concordam.
Por fim, mostra-se necessário fazer resistência aos alardes que lucram em cima da distorção semântica, onde conceitos técnicos como “racismo religioso” vão sendo distorcidos horizontalmente (para abraçar fenômenos distintos, mas próximos) e verticalmente (para abraçar fenômenos cada vez menos graves), como, no caso, acusar uma cantora de racismo religioso porque mudou a letra de uma música para honrar sua divindade.
Sobre o autor:
Guilherme Joshua Fantini Blake é advogado na cidade de Belo Horizonte, Mestre em Direito pela Universidade FUMEC e Assessor Jurídico da Associação Nacional de Juristas Evangélicos – ANAJURE.
A ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE JURISTAS EVANGÉLICOS (ANAJURE) é uma entidade brasileira fundada em 2012, sendo composta por operadores do direito, integrantes do Poder Judiciário, do Ministério Público, da Defensoria Pública, da OAB, das Procuradorias Federais e Estaduais, assim como Professores e estudantes de todo o país, estando presente em 25 Estados da República Federativa Brasileira, e tem como lema a “Defesa das Liberdades Civis Fundamentais”, em especial, a Liberdade Religiosa, de Expressão e a Dignidade da Pessoa Humana. A ANAJURE também é filiada a instituições internacionais que trabalham em defesa das liberdades civis fundamentais em todo o mundo, como a Federação Interamericana de Juristas Cristãos (FIAJC) e a Religious Liberty Partnership (RLP)
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