Os pais perceberão as inúmeras demandas de seus filhos, desde cedo, já nas primeiras interações. Juntamente com essa percepção constatarão que, apesar de se dedicarem em amor ao papel parental, nem sempre os filhos retribuirão ao seu empenho com beijos, mas o farão também com certa dose de mordidas. Os pais, em sua dedicação amorosa para um bom desenvolvimento de seus filhos, comumente suportam as mordidas dos filhos, até mesmo aceitando-as como parte da trajetória parental. Essas mordidas que se manifestam já nos primeiros dias de vida. Conforme explica o Dr. Carlos Hernandez (psiquiatra e professor), apenas um ser suporta a mordida no bico do seio e, apesar da dor lancinante, aguenta firme e continua nutrindo: a mãe. Ela amamenta seu filho com afeto, e ele, em meio à voraz sucção, inconscientemente a morde sem dó. Para o Dr. Carlos Tadeu Grzybowski (psicólogo e professor), as mordidas no bico do seio materno podem representar uma metáfora para outras mordidas, que se estendem para as fases ulteriores do desenvolvimento.
Partindo da percepção dos dois professores, o presente texto peregrinará pelas fases do desenvolvimento humano, numa ponderação sobre as possíveis mordidas dos filhos aos seus pais, na medida em que crescem.
As mordidas das sucções
Na dependência neonatal, as inábeis sucções se mostram em vorazes mordidas pela necessidade de sobrevivência. O filho aos poucos vai percebendo e aprendendo que a mãe aguenta as suas mordidas, e ela as suporta pelo amor incondicional que tem por ele. Mesmo em dor ela o amamenta e o nutre até que sacie sua fome, seja de alimento ou de afeto. O pai também será incluído como alvo de suas mordidas, na medida em que, gradativamente, os filhos não mais as direcionam somente ao bico do seio materno. Ou seja, na caminhada de seu desenvolvimento, eles direcionarão suas mordidas para ambos, pai e mãe.
As mordidas das limitações
No narcisismo infantil, as birras e voluntariedades são as mordidas dos filhos que comunicam as insuficiências e limitações dos pais. “Me dá, me dá, me dá ...” é a demanda constante para os pais que são vistos como heróis, e como tais são percebidos como aqueles que tudo superam, enfrentam, resolvem e suprem. Como insaciáveis sanguessugas de seus heróis, filhos podem exigir sempre por mais atenção, colo, afeto, leite, comida, brinquedo, tempo, e o que mais estiver na ordem das necessidades e dos desejos. As mordidas geram as dores do cansaço, mas resilientes os pais as suportam, não desistem, mas amam acolhendo, aceitando e cuidando. Os pais assim o fazem por um amor incondicional por seus filhos.
As mordidas das desqualificações
No desencanto adolescente, as mordidas aos pais se mostram vorazes em contestações. Agora, com o pensamento abstrato cada vez mais evoluído, adquire novas capacidades de avaliação das relações e do mundo. Diante da percepção do mundo como injusto surgem angústias, dentre elas especialmente a angústia pela desilusão de que os pais não os protegerão das injustiças e penúrias para sempre. Os pais passam a ser vistos como incapazes, incautos, incultos e impotentes, e recebem as mordidas das desqualificações. Mesmo assim, apesar da dor, os pais aguentam as mordidas e continuam amando incondicionalmente, também em meio às turbulentas definições da identidade do período adolescente de seus filhos.
As mordidas das culpabilizações
Na independência adulta, as mordidas são como ácido corrosivo gotejado por culpabilizações. As escolhas erradas são transferidas aos pais. Sim, somente as erradas, porque as escolhas bem sucedidas são proclamadas como conquistas pessoais ou pela interferência de outras pessoas, que não os pais. Essa transferência de culpa, pelos desacertos, é a maior das mordidas, quase insuportável para muitos pais. Uma mordida que abocanha não mais o bico do seio na amamentação, mas que corrói as entranhas da alma dos pais na meia idade, como também em sua velhice. E os filhos que erraram o passo sabem, mesmo que inconscientemente, que os pais aguentam a dor das culpabilizações por seus erros. Até mesmo sabem que os pais ao serem apontados como culpados refletirão sobre suas culpas e falhas parentais. A transferência da culpa pode, ilusoriamente, aliviar os filhos mordedores de suas responsabilidades no processo de crescimento. No entanto, os pais, mesmo que suportem as mordidas e sigam amando incondicionalmente, em seu íntimo sentirão a dor, e muita dor.
OS FILHOS SOMENTE ENTENDERÃO A AMPLITUDE DA DOR INFRINGIDA AOS SEUS PAIS, POR SUAS MORDIDAS, AO SE TORNAREM PAIS E ALVOS DAS MORDIDAS DE SEUS PRÓPRIOS FILHOS.
Os filhos, ao se tornarem pais, também descobrirão em sua trajetória parental, o quanto são capazes de aguentar por amor, e há de se ter esperança de que consigam reconhecer o quão vorazes mordedores foram, ou ainda são em sua condição de filhos. Ao ressignificarem as limitações, as desqualificações e as culpabilizações direcionadas aos pais, poderão abrir as janelas da alma para enxergar o quanto foram amados incondicionalmente. Dessa forma, apesar das imperfeições dos pais, em suas faltas e falhas, será possível retribuir em amor, gratidão e honra, àqueles chamados de pai e mãe, e assim, quem sabe, aliviá-los das dores de novas mordidas.
As Escrituras Sagradas destacam a honra como uma postura requerida dos filhos em relação aos seus pais. “Honra teu pai e tua mãe” - este é o primeiro mandamento com promessa – “para que tudo te corra bem e tenhas longa vida sobre a terra" (Efésios 6.2-3 - NVI). A honra requerida nesse texto, diz respeito a todos, pois todos são filhos de alguém que os amou, cuidou, proveu e educou para a vida. No entanto, será somente na fase adulta dos filhos que a honra se apresentará em seu sentido mais pleno. Nessa fase, já se descobriu que os pais não são os deuses da fase neonatal, nem os heróis da infância, nem os anti-heróis da adolescência. A grande descoberta dos filhos em relação aos seus pais na fase adulta é que são apenas humanos imperfeitos. Na aquisição dessa nova ótica será possível perdoar, amar e respeitar os seus pais. Os filhos adultos, ao terem o insight de que seus pais são humanos imperfeitos, percebem que eles, em suas limitações, deram de si o que podiam. Alguns pais foram sábios e outros, infelizmente, extremamente insanos.
A percepção dos pais como humanos imperfeitos abre uma nova possibilidade de fazer as pazes com as suas misérias, deficiências, penúrias e insanidades. Dessa forma, será possível evoluir e sair dos estágios das mordidas da dependência neonatal, das mordidas das limitações do narcisismo infantil, das mordidas das desqualificações do desencanto adolescente e das mordidas das culpabilizações de uma adultez deficitariamente assumida. Infelizmente, alguns filhos, mesmo em idade adulta, podem ficar reféns de uma dessas fases e seguirem como vorazes mordedores de seus pais, o que poderá conduzi-los a experiências de adoecimento emocional e relacional.
Os filhos que conseguirem evoluir ao ponto de perceberem os seus pais como humanos imperfeitos, trocarão suas mordidas por mais beijos. Esses que figurativamente podem se mostrar por meio de expressões de gratidão, amor e respeito. Assim sendo, será possível honrar com o real sentido que impregna a palavra honra. O valor de nobreza contido na honra infere que é uma das posturas mais elevadas que se pode assumir como conduta, e uma nobre maneira de se expressar para alguém que consideramos importante.
Portanto, honrar os pais envolve adotar um princípio de conduta pessoal de dignidade, numa postura que doa respeito, amor, perdão, consideração e reconhecimento pela posição importante que eles ocupam. Ao final, a condição de honrar aos pais, revela mais do filho que honra do que dos pais que a recebem. A questão não é o quanto de honra os pais merecem, mas o quanto os filhos superaram das intervenções de seus pais, tenham sido sábias ou insanas. Dessa forma, os filhos ao se espelharem na humanidade imperfeita de seus pais, seguirão mais equipados para a superação de suas penúrias e se constituirão melhores pais ao receberem as mordidas de seus próprios filhos.
Por Clarice Ebert, Psicóloga (CRP0814038), Terapeuta Familiar, Mestre em Teologia, Professora, Palestrante, Escritora. Sócia do Instituto Phileo de Psicologia, onde atua como profissional da psicologia em atendimentos presenciais e online (individual, de casal e de família). Coordenadora e palestrante, em parceria com seu marido, do Ministério Vida Melhor (um ministério de cursos e palestras). Membro e docente de EIRENE do Brasil.
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