Uma resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) atropelou a Constituição Federal ao oferecer a uma única religião a possibilidade de funcionar em parceria com o Sistema Único de Saúde (SUS), reconhecendo casas de culto de matriz africana “como equipamentos promotores de saúde e cura complementares do SUS”.
Segundo o texto constitucional, que estabelece o princípio de Estado laico em diversos dispositivos (Artigos 1º, 5º, 19, 210 e 213), é vedado que ações de governo privilegiam determinada fé (ou religião), dando a esta exclusividade em políticas públicas ou oferecimento de qualquer benesse do Estado.
O termo "laico" refere-se ao Estado que não adota uma religião oficial e garante a liberdade de crença e culto a todos os cidadãos. A Constituição brasileira assegura o Estado laico.
Em resposta ao Guiame sobre sua opinião referente à exclusividade dada pelo CNS a uma determinada religião, a senadora Damares Alves destacou a laicidade do Estado brasileiro:
“No Brasil, o Estado é laico, o que significa que há uma separação administrativa entre o Estado e a Igreja, garantindo a liberdade e proteção das crenças religiosas”, diz e completa: “No entanto, a proposta apresentada pelo Conselho Nacional de Saúde parece contrariar o princípio da laicidade estabelecido em nossa Constituição”.
Apesar de o preâmbulo da Constituição invocar a “proteção de Deus”, não menciona uma religião específica, deixando claro que o Estado é neutro em relação a questões religiosas.
A senadora explica que, de acordo com a Constituição, “o Estado laico deve se abster de estabelecer relações econômicas, de incentivo ou de ensino com entidades religiosas”.
“Isso implica que o Estado não pode divulgar, estimular, subsidiar ou fornecer ajuda financeira a qualquer religião, a fim de manter a igualdade de tratamento entre todas as crenças e preservar o princípio republicano”, afirma.
Além da violação da laicidade, a Resolução Nº 715/2023, aprovada no âmbito do Ministério da Saúde, ainda fere o princípio da equidade, também conhecido como princípio da igualdade ou princípio da isonomia, que trata dos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos brasileiros.
Print Resolução Nº 715 de 20 de julho de 2023 do Conselho Nacional de Saúde. (Ministério da Saúde)
Ele estabelece que todos são iguais perante a lei, sem qualquer distinção de qualquer natureza. Esse princípio garante a igualdade de direitos e oportunidades a todos os cidadãos, independentemente de raça, cor, gênero, religião, opinião política e origem social.
‘Discrimina as demais religiões’
Para a advogada Patrícia Alonso, ao destacar uma religião em especial para ações de saúde pública, o Ministério da Saúde trata as demais com discriminação.
“[Essa resolução] é discriminatória em relação às outras religiões, porque as outras religiões também fazem as mesmas coisas, até com os mesmos objetivos que as religiões africanas, que é a recuperação das pessoas”, disse em entrevista exclusiva ao Guiame.
A opinião da advogada se baseia no item nº 46 da Resolução da CNS, que atribui às “Unidades Territoriais Tradicionais de Matriz Africana (terreiros, terreiras, barracões, casas de religião, etc.)” uma porta de entrada, com respaldo do SUS, para “curas complementares”.
Conforme noticiado pelo Guiame, a resolução do CNS, que também propõe terapia hormonal aos 14 anos e legalização do aborto e maconha, destaca as casas de culto de religiões de matriz africana como “equipamentos promotores de saúde e cura complementares do SUS, no processo de promoção da saúde e 1ª porta de entrada para os que mais precisavam e de espaço de cura para o desequilíbrio mental, psíquico, social, alimentar [...]”.
O CNS usa de discriminação religiosa ao proteger exclusivamente as religiões afro dizendo em sua resolução que, tais políticas de saúde pública visam o “combate ao racismo, à violação de direitos, à discriminação religiosa, dentre outras.”
Legislação e dinheiro público
A Constituição Federal de 1988 também é clara quando se trata de aplicação de verbas públicas em entidades religiosas, o que a resolução do CNS não esclarece se acontecerá.
Em seu artigo 19, inciso I, a CF estabelece uma proibição explícita quanto ao uso de recursos públicos em benefício de entidades religiosas. Dentre outros vetos, diz que o Estado não pode estabelecer cultos religiosos, subvencioná-los, bem como manter relações de dependência ou aliança que não seja na forma da lei.
A senadora Damares lembra que “sustentar as atividades desenvolvidas em templos religiosos deve ser responsabilidade dos fiéis e membros daquela fé específica, e não do dinheiro público. Isso se aplica a todas as religiões, com o objetivo de evitar qualquer tipo de favorecimento ou privilégio para uma determinada crença em detrimento de outras.”
Para que a resolução aprovada pelo Conselho Nacional de Saúde possa se aplicar legitimamente precisaria obedecer à Constituição.
“Dessa forma, a proposta apresentada carece de respaldo legal para sua implementação, uma vez que vai de encontro aos princípios da laicidade do Estado e da igualdade de tratamento entre as religiões. O cumprimento dessa proposta poderia representar uma violação dos preceitos constitucionais vigentes”.
Na mesma linha de raciocínio jurídico, Patrícia Alonso argumenta: “Essa decisão é completamente infundada e tem que ser refutada pelos políticos em Brasília”.
“Todas as religiões pregam as mesmas coisas, então eu acho que [esta resolução] é discriminatória também em relação às demais religiões.
“Ou o Ministério da Saúde reconhece todas as religiões dentro do âmbito da saúde, para que todos nós tenhamos os mesmos direitos, ou ninguém entra. Não existe só as religiões de matriz africana. Isso é preconceito e discriminação com as demais religiões”, conclui Patrícia, que também é colunista do Guiame.