Cristão relata vida sob pressão do Estado Islâmico: "Eles são como monstros"

Segundo o jovem de nome fictício 'John', viver sob o domínio do Estado Islâmico exige um constante estado de alerta. O uso de palavras 'indevidas' para se dirigir aos combatentes, um corte de cabelo 'ocidental' ou até mesmo uma calça jeans pode levar as pessoas à morte nos territórios dominados pelo grupo terrorista.

Fonte: Guiame, com informações do Religion News ServiceAtualizado: sábado, 20 de fevereiro de 2016 às 18:30

Equanto os combatentes do Estado islâmico invadiam a cidade de Raqqa, com seus tanques e veículos militares, John ficou olhando para calçada. Ele fazia parte da multidão na primeira decapitação, e viu pela primeira vez sua mãe e irmã usarem vestes islâmicas. John e seu pai assinaram a 'jizya' - o compromisso de uma taxa anual paga ao Estado Islâmico - permitindo assim que eles, continuassem a viver como cristãos como cristãos no chamado "califado".
 
Aos 20 anos de idade, ele não pode dizer seu nome real, o que ele está estudand ou em que tipo de negócio seus pais estão gerenciando.
 
"A vida em Raqqa continua como de costume em muitas maneiras. Lojas e restaurantes estão abertos. Há comida, eletricidade e água. As pessoas são mais afortunados que as que vivem em uma cidade como Aleppo, por exemplo".
 
"Mas você está constantemente em alerta, nunca olha nos olhos de alguém quando anda na rua; está sempre ciente do que deve (ou não) dizer".
 
As tropas do Estado islâmico ganharam a batalha por Raqqa em janeiro de 2014. Após uma semana de intensos combates com outros grupos radicais, assumiram o controle e declararam que a capital agora passava a fazer parte de seu califado.
 
"Antes [do Estado Islâmico vencer a batalha] tivemos uma semana assustadora. Ficamos em nossa casas, porque todos que saíam às ruas se tornavam alvos de tiros".
 
John testemunhou as ruas próximas de sua casa, cheias de pessoas que gritavam "Allahu Akbar" (Alá é o maior).
 
"Eu não gritava aquilo - Eu sou um cristão. Mas quando um homem do Estado Islâmico me viu ficar em silêncio, ele parou o carro. Eu também tive que dizer 'Allahu Akbar", confessou.
 
"Muitos em Raqqa acabaram acolhendo o Estado Islâmico, mas todos eles agora se arrependem".
 
Logo as pessoas descobriram que as coisas tinham mudado radicalmente. O grupo terrorista começou a executar aqueles que eram suspeitos de apoiar o presidente da Síria ou de terem lutado com outros grupos rebeldes contra o Estado Islâmico.
 
Na mesma semana em que Estado Islâmico declarou a cidade de Raqqa como sua capital, eles destruíram o interior de três igrejas.
 
"Eles quebraram tudo dentro do templos - os ícones, o altar, tudo. Um edifício das igrejas agora servem como locais de reuniões para Estado Islâmico".
 
Ninguém foi explicitamente forçado a ficar no novo Califado e muitos partiram. Em alguns aspectos, a vida 'voltou ao normal', relatou John, mas logo ficou claro que a cidade estava sob o controle de Estado Islâmico. Eles mudaram os nomes dos edifícios públicos para o nome do do próprio grupo terrorista, que foi impresso em placas de carros e o grupo proibiu o uso de novas cédulas bancárias fossem impressas pelo governo sírio.
 
Logo depois de Raqqa ter sido declarada como capital do Estado Islâmico, os cristãos foram informados de que eles "poderiam viver sob uma regra".
 
"Poderíamos nos converter ao islamismo e viver uma vida normal em Raqqa; poderíamos sair da cidade; ou poderíamos ficar e pagar o imposto 'jizya'. No primeiro ano, o imposto era de 54.000 libras sírias [cerca de 300 dólares] por homem - mulheres e crianças não são 'tributadas'. Mas no ano passado a taxa subiu para 164.000 libras sírias por homem", informou.
 
O preço do ouro é usado para calcular a 'jizya'. Na tradição islâmica são cobrados anualmente de 16 a 18 gramas de ouro de cada homem [que não seja muçulmano].

Combatentes do Estado Islâmico participam de 'desfile militar' (Imagem: Reuters)

 
John aconselhou os pais a deixarem Raqqa, mas eles não queriam abandonar a sua casa, seus negócios e vendê-los era impossível. Mesmo que muitas das cerca de 1.500 famílias cristãs de Raqqa tenham partido, sua família decidiu ficar - que significou que, pelo menos, John poderia continuar seus estudos.
 
John logo testemunhou como são tratados aqueles que não obedecesse as regras do Estado Islâmico.
 
"Eu vi muita crueldade. Toda sexta-feira eles executavam pessoas. Eu estava lá quando eles decapitado o primeiro homem em público. Eles não conseguiram decapitá-lo com o primeiro golpe. Aquele homem sofreu muito, até que finalmente atiraram nele".
 
John descreveu como ele se sentiu mal quando o Estado Islâmico decapitou centenas de soldados da base do Exército Sírio de Raqqa e, em seguida, expuseram uma cabeça em cima do muro pelo qual ele passava diariamente, a caminho de seu trabalho. Ele olhava para os soldados do Estado Islâmico como verdadeiros monstros, que poderiam atacar a qualquer momento e por qualquer motivo.
 
"Quando falava com eles, eu tinha que saber o que dizer. Uma palavra errada poderia ofendê-los. Vendo todas essas atrocidades, eles não parecem pessoas, eles parecem monstros para mim, especialmente depois do que fizeram a esses soldados. Isso me traumatizou. Era demais", contou.
 
"O Estado Islâmico pendurava cruzes nas orelhas das cabeças que eles colocavam em cima do muro. O que me chocou muito foi que eu vi pessoas que tiravam selfies com aquelas cabeças. Eu pensava que aquilo que eles [terroristas] fazem isso para assustar as pessoas, para lhes mostrar o que acontece quando você faz algo errado".
 
Apesar dos horrores que testemunhou, John ficou em Raqqa porque ele queria trabalhar, continuar seus estudos e pagar a jizya, que lhe dava alguma "liberdade".
 
"Como nós pagávamos o imposto e tínhamos a declaração [confirmando que o imposto foi pago] sempre conosco, ninguém poderia nos prejudicar por sermos cristãos".
 
Esta "proteção" foi importante, porque John teve de lidar com os homens do Estado Islâmico todos os dias.
 
"Eu os encontrava no trabalho, nas lojas, até mesmo na academia", relatou.
 
Apenas 50 famílias cristãs permaneceram em Raqqa.
 
É notável o quanto John sorri, quando fala sobre a vida em sua cidade.
 
"Eu me acostumei com isso. Eu acho que tem algo a ver com a forma como nós crescemos como cristãos; somos pessoas fortes, isso nos ajudou a ficar. E, sim, você pode viver como um cristão no Estado islâmico. Ninguém te incomoda quando você paga o imposto".
 
No entanto, John está ciente que apenas 50 famílias cristãs permanecem em sua cidade. O único sacerdote que restava em Raqqa partiu assim que o Estado Islâmico tomou a cidade. Não há nenhuma igreja remanescente - os cristãos visitam uns aos outros para manter a comunhão.
 
"Nunca imaginei que isso pudesse acontecer. Os cristãos em Raqqa eram respeitados. Esta era uma cidade síria normal, sem nenhuma população islâmica radical. Na minha opinião, o que o Estado Islâmico está fazendo não é islamismo de verdade. Eu vivi com muçulmanos toda a minha vida; nós nos respeitamos uns aos outros e vivemos pacificamente juntos", disse.
 

Ex-cristãos
Surpreendentemente, parte dos combatentes que entram para o Estado Islâmico cresceram em famílias cristãs. John também teve a oportunidade de conversar com alguns deles.

"Eu pude falar com eles normalmente. Porém, quando eles descobriram que eu era um cristão, mudaram sua forma de agir. Uma vez, na academia, eu os ouvi contando piadas... todas eram sobre as cabeças que tinham sido cortadas. Em diferentes momentos tivemos conversas sobre o fato de eu ser um cristão. Eles me aconselharam a me converter ao islamismo", contou.

"Uma vez eu fiquei realmente chocado depois de conversar com dois deles. Eles eram armênios e me disseram que cresceram em famílias cristãs, mas ambos tinham se convertido do cristianismo para o islamismo. Suas barbas ainda não eram muito grandes, pois eles acabaram migrando muito novos para o Estado Islâmico. Mais tarde eu fiquei sabendo que um deles se explodiu como um homem-bomba".


 
"Um dia em um ônibus eu me encontrei um dos meus antigos colegas. Ele estava vestindo roupas do Estado Islâmico, tinha uma longa barba e carregava uma metralhadora. Ele estava convencido da escolha que fez, dizendo que ele queria 'lutar pelo islamismo e pelo Corão'. Duas semanas mais tarde, ele foi morto em batalha".
 
"Eu ouvi que eles enviam combatentes sírios para as linhas de frente; já os 'estrangeiros' têm posições de liderança. Uma semana mais tarde, o irmão deste colega também morreu lutando pelo Estado Islâmico. Eu sei de um outro amigo meu que se juntou ao EI, mas ainda não sei o que aconteceu com ele".

Militantes do Estado Islâmico executam jovens que foram considerados 'incrédulos' (Imagem: Daily Mail)

Corte de cabelo "ocidental" = problemas
Apesar da "proteção" que o pagamento do imposto dava a ele e sua família, houve momentos em que John esteve realmente com medo. Certa vez, um soldado do Estado Islâmico o deteve na rua e começou a gritar: "Por que você está cortando seu cabelo desta forma?". John mostrou-lhe o papel declarando que ele era um cristão e que ele tinha pago o imposto, e o soldado partiu.
 
Outro dia, ele foi forçado a entrar em um ônibus, porque um soldado do Estado Islâmico não gostou do jeans que John estava usando, nem de seu corte de cabelo.
 
"Nós fomos até um espaço subterrâneo, onde havia centenas de outros homens. Fomos todos divididos - primeiro os homens idosos foram separados dos mais novos, então eles se separaram homens jovens que usavam 'jeans skinny' dos outros. Em seguida, eles se separaram um grupo com base em seus cortes de cabelo. Eu estava nesse grupo", contou.
 
Depois que o grupo tinha sido reorganizado, um combatente tunisiano do Estado Islâmico fez um discurso inflamado para os homens.
 
"Ele disse: 'Vocês são a nova geração de jovens islâmicos. Vocês se parecem com os ocidentais e parece que vocês têm o estilo deles, mas eles não gostam de vocês. As pessoas do Ocidente nos odeiam. Os ocidentais estão sempre trabalhando para levar vocês para longe do Islã", citou.
 
"Aqueles que usavam 'jeans skinny', em seguida, tiveram de assinar um documento prometendo que não usariam mais aquele tipo de calças. Em seguida, nossos cabelos foi completamente raspados e nos disseram que não podíamos mais ostentar um penteado ocidental. Eu tentei explicar que eu era cristão, mas eles não prestaram atenção nisso".
 
As mudanças em Raqqa foram mais radicais para as mulheres. Todas as mulheres, muçulmanas ou não, tinham que cobrir-se completamente quando saíam de casa.
 
"Foi difícil para minha mãe e para minha irmã. Elas tiveram que comprar essas roupas, que, é claro, não tinham em casa", disse John.
 
As imagens publicitárias do Estado Islâmico também proibiam a exposição das mulheres que não estivessem totalmente cobertas. Frascos de xampu, por exemplo, que tinha imagens de mulheres impressas neles, tinham que estar fora da vista ou ter seus rótulos removidos completamente. Este controles eram feitos regularmente.
 
"Lembro-me de um incidente intrigante. Um comerciante tinha um balão vermelho com a forma de um coração na sua janela. O Estado Islâmico entrou em seus estabelecimento, gritando que aquilo era um pecado. O lojista disse que era apenas um balão. O combatente insistiu que aquilo era um pecado, porque aquela forma também podia ser vista como os seios de uma mulher. O lojista teve que estourar o balão". 

John aprendeu a "conversar com o Estado Islâmico"
Em seus relatos, o jovem se lembrou de outro fato que marcou mais um "embate" entre ele e um combatente do Estado Islâmico.

"Um dia um homem do Estado Islâmico ouviu o meu nome ser mencionado e imediatamente entendeu que eu era cristão. Eu vi a expressão em seu rosto mudar. 'Você é um incrédulo?', Ele me perguntou. Eu respondi: 'Você não conhece aquele verso do Corão que diz que qualquer pessoa que acredita em Deus, em anjos, nos livros e nos seus profetas, no bem e no mal e na vida eterna, é um crente?' Ele ficou chocado quando viu que eu conhecia que este verso do Alcorão e foi embora", relatou.
 

Fuga de Raqqa em meio à noite
Chegou um momento em que John não podia mais continuar seus estudos em Raqqa e ele finalmente deixou a cidade. Até onde ele sabe, não há outros jovens cristãos que tenham permanecido na cidade.
 
"É claro que eu me sinto melhor. Eu posso não ter água e electricidade todos os dias como eu tinha em Raqqa, mas eu me sinto mais seguro; me sinto em paz. Em Raqqa havia aquele medo constante e tínhamos que estar atentos. Onde estou vivendo agora, não tenho que ter medo das pessoas que encontro nas ruas".
 
Segundo John, ele e alguns outros jovens fugiram da cidade em sigilo.
 
"As pessoas poderiam deixar a cidade se tivessem uma justificativa. Elas poderiam sair para um tratamento médico que não estivesse disponível em Raqqa. Eu até ouvi dos cristãos que foram autorizados a ir para outra cidade para celebrar o Natal e Ano Novo. Mas eu não tinha uma razão, então eu tive que sair clandestinamente".
 
John partiu da cidade de Raqqa em um pequeno ônibus com 15 outros jovens.
 
"Eu estava com muito medo de ser parado em um posto de controle do Estado Islâmico, mas isso não aconteceu. Nós usamos pequenas estradas, evitando todos os postos de controle conhecidos", disse.
 
"Depois de quatro horas, chegamos a um posto de controle do exército sírio. Fomos bem recebidos e, em seguida, nos perguntaram por que estávamos tão pálidos. Nós realmente estávamos muito ansiosos. Eles checaram nossas identidades, e nos deram iogurte. Estava uma delícia".
 
John permanece em contato com as pessoas que ficaram no Raqqa. Não é fácil, mas "há maneiras de se fazer isso", disse ele.
 
Questionado sobre os atrativos que levam os jovens a se unirem ao Estado Islâmico, John disse que acredita que muitos combatentes do EI foram seduzidos pelos altos salários pagos no início.
 
"Eu ouvi falar sobre 1.200 dólares americanos pagos para um lutador estrangeiro. Se o combatente tivesse uma ou mais esposas, eles iriam receber mais 100 dólares por esposa e mais 50 dólares por criança. Eu os via em lojas, gastando muito dinheiro", contou.
 
"Eu acho que eles estão enganados. Eles realmente acreditam que o que eles fazem é certo. Eles se sentem felizes a cada vez que matam alguém. Você pode ver isso pela forma como eles falam sobre a execução de pessoas - a cada semana encontram uma nova forma, mesmo que seja por meio da crucificação".
 
Viver sob domínio do Estado Islâmico por um ano e meio meses não foi o suficiente para ajudar John a aceitar que o grupo terrorista precisava se estabelecer em um novo erritório.
 
"Eles já estavam vivendo em um país islâmico; na Síria a maioria dos cidadãos é sunita. Eles tinham suas terras, mas se eles queriam viver sob rigorosa lei islâmica, poderiam se mudaram para a Arábia Saudita", afirmou.
 
John disse que está disposto a servir no Exército Sírio e lutar contra o Estado Islâmico, depois de terminar seus estudos.
 
"Eu não quero fugir. Nós temos o direito de ter de volta para nossa terra. Este é o meu país, não deles. Estou disposto a lutar por isso", assegurou.

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