A pandemia mundial, causada pelo novo coronavírus, está alterando o modo de vida em sociedade, nas suas mais variadas dimensões. Muitas têm sido as orientações para minimizar os impactos. Especialistas e autoridades do mundo inteiro são enfáticos em suas orientações quanto aos cuidados com a higiene e o isolamento social, para evitar a disseminação desenfreada do letal vírus. A mais imperativa das orientações para todos, tem sido: “fique em casa, se puder”.
A nova ordem: isolamento social
A nova ordem para todos é o isolamento social, seja esse em formato horizontal ou vertical, que é defendido como “inteligente”. Várias medidas restritivas foram estabelecidas, dentre elas o impedimento das aglomerações sociais. Os ambientes que reúnem pessoas, como escolas, universidades, shoppings, boa parte do comércio, museus, teatros, cinemas e estádios receberam recomendações, quando não decretos, de fecharem suas portas. Da mesma forma, as igrejas e templos receberam orientações de suspenderem suas reuniões públicas.
O mercado religioso diante da suspensão das reuniões nos templos
Surge a questão: como manter a igreja funcionando diante da suspensão das reuniões nos templos? Rapidamente surgem os discursos espiritualizados de que a igreja não seria uma estrutura física, mas que são as pessoas. Por essa ótica, a igreja, composta e configurada por pessoas, seguiria firme e forte, mesmo com a suspensão das reuniões nos templos. Isso significaria, em tese, que “igrejas-pessoas” se reúnem em qualquer lugar, nas mais variadas formas, que independem de reuniões públicas. No entanto, nos bastidores institucionais esse discurso, mesmo que teologicamente correto, pode estar mediado por verdadeiras angústias. Estando cientes ou não, o fato é que existe um mercado religioso altamente competitivo, nem sempre tão visível e assumido, como é o mercado corporativo e empresarial.
Quem está inserido no mercado religioso?
Para advogar a não inserção no mercado religioso, não basta simplesmente vociferar que isso é coisa do inferno, do Diabo, e que a verdadeira Igreja de Cristo não pode coabitar com tal perspectiva. Muitos alienadamente utilizam esse discurso assumindo-se como diferentes e nem percebem o quanto estão competitivamente inseridos no mercado religioso. É como se quisessem convencer os fiéis de que eles são um diferencial mais confiável a ser seguido em relação aos demais. É como se dissessem “o meu produto é melhor do que o da barraca vizinha”. Um dos filtros, entre muitos outros, para se perceber se está ou não inserido no mercado religioso, é a avaliação dos discursos e das intencionalidades, do que se proclama e do que se pretende como instituição eclesiástica, ou mesmo como liderança de um grupo. Por exemplo, se o programa evangelístico faz parte das estratégias de crescimento da igreja, possivelmente está inserido no mercado religioso, mesmo que o discurso seja espiritualmente pautado em levar as Boas Novas do Evangelho para as pessoas. Nesse caso, o discurso é apenas o argumento utilizado para se alcançar a intencionalidade, que é o crescimento da igreja. Boa parte dessas intencionalidades está amparada em ideologias do empreendedorismo cristão, fartamente difundidas em literaturas e cursos para líderes cristãos, importados do contexto empresarial. Importou-se uma melhor organização eclesiástica, mas também a ideologia da produtividade do mercado, pautada pelo sucesso numérico de suas instituições. De alguma forma, esse viés intencional infiltrou-se nos contextos eclesiásticos das mais diversas orientações denominacionais, sejam históricas, conservadoras, reformadas, pentecostais, neopentecostais ou mesmo as comunidades independentes.
As pautas competitivas do mercado religioso
O mercado religioso se mostra nas espiritualizações das teologias próprias de cada contexto, numa competição entre as denominações ou grupos, em que as pautas competitivas incluem: quem tem a melhor teologia, quem é mais fiel à Bíblia, quem é mais espiritual, quem é mais empático, quem tem mais unção, quem tem mais discernimento, quem tem uma oração mais poderosa e mais milagrosa, quem tem as melhores estratégias de crescimento, quem tem a melhor e maior voz profética para o tempo presente, quem faz mais milagres, quem oferece mais ajuda às pessoas, quem é mais alinhado com Deus, e por aí vai. No cenário atual, na ocorrência da suspenção de reuniões públicas, eclode ainda outra pauta do mercado religioso, que se mostra em competições acirradas entre quem tem melhores performances virtuais e quem tem mais visibilidade nas vitrines da internet. Essas pautas competitivas do mercado religioso comumente se estruturam pelo entendimento de que a experiência com Deus é alcançada por algo produzido a partir do palco. Dessa forma, além de boa parte das instituições eclesiásticas se mostrarem inseridas na competividade do mercado religioso, também se mostram adaptadas e conformadas com a sociedade do espetáculo. Aliás, essa adaptação é requisito indispensável do mercado religioso.
A sociedade do espetáculo
A sociedade do espetáculo se nutre de representações da realidade. A realidade, por parecer cada vez mais difícil de ser vivida, é apenas representada e visualizada em espetáculos. Dessa forma, se coreografa de tudo, até mesmo a espiritualidade, a liberdade, a paz, a esperança e a felicidade. Na sociedade atual, a vida feliz e tranquila em Deus e na relação de uns com os outros, é uma realidade desejável, mas dificilmente alcançada na vida do dia a dia, seja no casamento, na família, no trabalho, nas igrejas ou nas relações de amizade. Por isso, as pessoas se tornam dependentes de espetaculosas representações da realidade idealizada. Assim se entretém nas distrações dos espetáculos teatralizados do que gostariam de vivenciar na vida real. Esse aspecto se mostra no contexto eclesiástico quando os cultos se estabelecem num formato de palco e plateia, onde uns representam e outros assistem. Esse cenário, facilmente se configura em performances discursivas, musicadas, cantadas e coreografadas da relação com Deus, que raramente se estabelecem após o espetáculo, como realidade na vida prática de cada dia.
As reinvenções de culto para atender a sociedade do espetáculo
Diante da suspenção das reuniões públicas, o viés espetaculoso das coreografias de realidades espirituais pouco vividas no círculo da vida privada, mas amplamente coreografadas nos palcos altamente elaborados para cada culto, precisaria ser reinventado. Pessoas instigadas e acostumadas a “assistir ao culto”, ao invés de “prestar um culto”, se mostram dependentes das sensações que experimentam ao assistir o espetáculo. Como fazer agora que não se pode mais ajuntar essa gente para nutrir as sensações espirituais produzidas a partir do palco? Como manter essa gente fiel ao espetáculo dessas sensações? A resposta parece que surgiu de imediato: o culto seria virtual. Não somente os cultos, mas as reuniões de forma geral seriam em formato virtual, mesmo as reuniões de oração, restauração e libertação. E as devocionais de cada dia? Essas adquiriram uma performática especial. Ao invés de se aproveitar da ausência do palco, para se redescobrir a solitude no secreto do quarto, numa relação pessoal com Deus, até mesmo as meditações diárias se apresentam numa farta gama de espetáculos para assistir. Ao invés de orar, assiste-se alguém orando, ao invés de realizar uma devocional num encontro pessoal com Deus, assiste-se alguém meditando. E o espectador? Facilmente assiste aos cultos, reuniões, orações e devocionais com posturas críticas similares às que assume ao assistir a um programa de notícias, um show, uma série ou um musical. O espectador em frente à tela assiste ao espetáculo, com um prato de comida numa mão e na outra o smartphone interagindo com grupos em redes sociais. E se o produzido na tela não provocar as sensações espirituais desejadas, facilmente troca-se de canal. Afinal, há um cardápio farto disponível para as escolhas de consumo, promovido pelos atores virtuais.
Os atores virtuais
Obviamente que dentre os assistidos, há pessoas bem intencionadas, do bem, do estudo, da oração, do embasamento teológico consistente e da vida prática autêntica. Mas, dentre esses há também uma gama de atores virtuais com paupérrima base teológica e científica, e uma vida pessoal destoante de seus rebuscados discursos. Com a facilidade de emitir opiniões em meio virtual, muitos viraram escritores, comentaristas, críticos, esclarecedores, influenciadores e pregadores. Há muitos “pitaqueiros” de plantão com posturas de "especialistas", passando suas perspectivas polarizadas, teologizadas, espiritualizadas, psicologizadas, medicalizadas e politizadas. Muitas de suas percepções têm a insígnia de “discernimento/revelação espiritual” ou de “conhecimento bíblico teológico”. Mas, muitas vezes, não passam de percepções baseadas em devaneios, alucinações, alienações, sonhos, ideologias culturais que não passam da amplitude do poço do próprio umbigo, entre impressões e intuições pessoais avaliadas como o sopro de Deus em seus santos ouvidos, além de experiências pessoais pouco processadas e emitidas como caminhos resolutivos para outros. E antes que os dedos apontem para outros, sempre cabe perguntar e avaliar: "serei eu Senhor?".
Os potenciais seguidores
Diante desse cenário, garantir a assistência da plateia ao espetáculo parece ser o mais importante, obviamente que não assumido dessa forma no discurso. O que parece importar é a frequência da plateia, agora no espaço virtual, o número de inscritos no canal e de curtidas/likes nas lives e nos vídeos postados. A cada novo culto, reunião ou oração envia-se links para um mar de gente, não importa se é desse ou daquele grupo, se é da sua igreja ou de outra. Afinal todos viraram potenciais seguidores. Ou seja, as reinvenções dos cultos continuam na manutenção do mesmo, da aceleração, do ativismo, das intencionalidades distorcidas e das dependências do que provêm de fora para a nutrição espiritual. Se antes as sensações espirituais provinham do palco, agora se espera que provenham da tela.
Nova exigência para pastores: “ser um comunicador virtual”
Muitos já estavam estruturalmente bem organizados virtualmente, bem antes da quarentena. Esses se mostraram saindo na linha de frente na largada dessa acirrada competição do mercado religioso. Outros, com pouca estrutura e habilidade, ou nenhuma, se viram forçados a se renderem às ferramentas virtuais, mesmo que antes fossem resistentes até mesmo para utilizar um aplicativo da Bíblia em seu smartphone. Pastores e líderes que não tinham perfil em rede social alguma, agora se rendem a postagens de vídeos motivacionais, adequando suas falas espirituais ao cenário da epidemia mundial. Nesse cenário, muitos pastores e líderes eclesiásticos se veem diante de uma nova exigência de suas Instituições e seus membros: exercer a performance de um comunicador virtual. E que seja dos bons, senão pode se tornar alvo de um bombardeio de críticas, que podem se apresentar como assédios morais adoecedores. “O meu trabalho como pastor aumentou em três vezes”, confessa um ministro. Outros, tristemente compartilham que os conflitos nas equipes ministeriais afloraram em discussões a respeito de performances e habilidades virtuais. Diante disso, o mercado religioso se reinventa de uma forma assustadora em suas competições, agora exponencialmente no ambiente virtual.
A saúde pastoral e as novas exigências performáticas
Como manter a saúde sendo um ministro religioso em meio às novas exigências performáticas? Como se manter saudável espiritualmente diante das exigências de tantas reuniões virtuais impostas? Antes, com as reuniões públicas, o formato palco e plateia requeria a performance de líderes carismáticos e inspiradores. Sua competência era avaliada por sua capacidade em promover imensas aglomerações públicas. Atualmente, com a ordem da suspensão das reuniões públicas, o desempenho esperado dos líderes se mede pelo número de curtidas e likes dos “assistentes” virtuais. Alguns arriscam chamar isso de avivamento. No entanto, pastores e líderes em igrejas, altamente exigidos para esse novo papel, sabem muito bem que avivamento seria bem outra coisa. Certamente, avivamento não é essa proposta utilitarista, em que uns poucos são selecionados para performancear o cuidado, a nutrição e a condução espiritual a partir de um palco ou de uma tela, e uma grande maioria apenas assume posturas críticas e passivas de assistentes e consumidores interessados em favorecimentos de sensações espirituais produzidas por algo que vem de fora.
O isolamento social força ao recolhimento e a reflexão
O recolhimento forçado nos faz refletir sobre o ativismo na sociedade e também deveria nos levar a reflexão sobre o ativismo que se faz presente no contexto eclesiástico. O tempo de isolamento social deveria ser também uma excelente oportunidade para uma reflexão sobre como anda a vida com Deus, tanto dos fazedores dos cultos como de seus fieis frequentadores, sejam esses presenciais ou virtuais. O recolhimento forçado poderia nos levar ao redescobrimento do proposto no texto de Mateus 6.6: “Mas quando você orar, vá para seu quarto, feche a porta e ore a seu Pai, que está em secreto. Então seu Pai, que vê no secreto, o recompensará”. Pelo texto podemos compreender que a experiência de um relacionamento íntimo com Deus não é algo produzido a partir do palco ou de uma tela. É nutrida no silêncio e solitude do quarto. Talvez, quando essa pandemia do novo coronavírus passar, tenhamos aprendido algo sobre a intimidade com Deus que independe de uma liderança mítica e de sua performance de palco ou tela. Assim, a reinvenção por parte das Instituições eclesiásticas e de seus líderes, em meio ao período de suspensão das reuniões públicas, não seria sobre qual a melhor performance que se pode obter para alcançar o maior número possível de pessoas por vias virtuais. Mas, seria a redescoberta de que a experiência com Deus é algo que acontece numa relação íntima com ele, produzida a partir do recolhimento, não somente em nossa casa, mas na solitude no reservado do nosso quarto. A saúde eclesiástica e pastoral tem muito a ver com o retorno a essa solitude.
Um convite para um retiro espiritual
Com essas reflexões não se está afirmando que as reinvenções em cultos virtuais deveriam ser combatidas. Certamente que o ambiente virtual e as tecnologias digitais chegaram para ficar e podem ser recursos fantásticos, com muitos benefícios, sendo ferramentas de muitas bênçãos, que podem alcançar pessoas próximas e/ou distantes. Portanto, o que se pretende propor para reflexão não é afirmar que os cultos, reuniões, orações e meditações virtuais sejam equivocadas, mas propor uma reflexão sobre as intencionalidades do que se faz como igreja no ambiente virtual. Mais do que performances nutridoras de estruturas eclesiásticas constituídas pelo conceito palco e plateia, numa nutrição da sociedade do espetáculo, estimula-se a redescoberta da prática da solitude na proximidade relacional com Deus. Um cardápio exagerado de reuniões pode causar um fastio de tanta falação. O recolhimento social poderia ser um convite para um retiro espiritual, para um reaprendizado da conexão com Deus, pela via transcendente, um caminho que não pode ser produzido nem no palco e nem na tela.
Por Clarice Ebert, Psicóloga (CRP0814038), Terapeuta Familiar, Mestre em Teologia, Professora, Palestrante, Escritora. Sócia do Instituto Phileo de Psicologia, onde atua como profissional da psicologia em atendimentos presenciais e online (individual, de casal e de família). Coordenadora e palestrante, em parceria com seu marido, do Ministério Vida Melhor (um ministério de cursos e palestras). Membro e docente de EIRENE do Brasil.
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