A dor cega

A dor cega

Fonte: Atualizado: sábado, 31 de maio de 2014 às 09:06
olhos vendadosMinha mãe tinha uma unha encravada no dedão do pé. Dessas que ficam feias, horrorosas, e que tinha todo o agravo que uma unha encravada que se preze pode ter – vermelhidão, inchaço, secreção e etc. A coisa tava bem séria.
 
Isso foi há muito tempo. Na época, meu irmão mais novo tinha por volta de cinco anos e era um pimentinha. Lembro dele estar “travessurando” pra lá e pra cá, quando veio correndo em direção a ela para pedir alguma coisa e, descuidadamente, pisou em cheio justamente na… adivinha!
 
Aaaaaaaaiiiiii!!! Dá vontade de gritar, só de imaginar aquela dor. Lembro como se tivesse sido ontem, e até posso reprisar a cena em slow motion na minha mente enquanto descrevo: o “pezinho” de João (meu irmãozinho) calçado no seu tênis escolar esmagando a unha latejante da minha mãe, a face dela desfigurada pela dor, o grito de um milhão de decibéis seguido de um safanão tão violento, que estatelou a criança na vitrine da loja.
 
Por um milagre divino, a vidraça continuou inteira. Minha mãe, contudo, ficou lá quebrada, agarrada com o dedo, urrando como uma louca, enquanto corríamos para acalentar meu irmão que, coitado, olhinhos arregalados e confusos, nem sequer imaginava o que havia feito de errado.
 
Provavelmente você não conhece a minha mãe, mas ela é do tipo superprotetora, daquelas que se você tropeçar no cadarço e cair, é capaz de te levar ao hospital pra tirar raio X até da cabeça pra conferir se não teve fratura craniana. Sua política materna de prevenção a riscos era tão severa, que ela “esparadrapou” todas as quinas dos móveis da casa na nossa infância, e removeu todos os cristais e objetos miúdos dos arredores. Ela “nunca jamais” jogaria meu irmão contra uma lâmina de vidro se estivesse consciente e tivesse algum domínio de si mesma.
 
De fato, assim que recobrou alguma lucidez, veio correndo em direção a ele, cheia de remorso, repetindo, com lágrimas nos olhos, “perdão, filho, a dor me cegou”.
 
Nunca esqueci. Do episódio e da expressão. Todas as vezes que ela relatava o fato a alguém, em diferentes épocas das nossas vidas, sempre recorria à mesma: “a dor me cegou”, “fiquei cega de dor”, ou algum equivalente. Eu guardei aquilo, mas só vim entender o que significava muito depois.
 
Seja de uma grande frustração, seja de um coração partido, seja proveniente de um abandono ou humilhação, separação, vergonha ou sentimento análogo, a dor tem o poder de nos cegar. Fica impossível ver o futuro, fica difícil ver o presente ou a um palmo adiante do nariz. Tudo o que conseguimos é gritar, gemer e chorar.
 
Acontece exatamente assim. O reflexo de alguém que sente uma dor profunda é o de fechar os olhos. Quando ela tem proporções oceânicas, ainda que de olhos abertos, não conseguimos enxergar o que está ao redor, o que está adiante, o que está no futuro próximo… (Que futuro mesmo?!)
 
Quando a alma está inflamada, supurando, tudo o que conseguimos fazer é sentir. A dor é a protagonista e rouba a cena impiedosamente. Ela nos consome e se torna o centro, a força que nos apanha o autocontrole e nos faz reagir ferozmente, machucando até os inocentes que, desavisados, se aproximam de nós.
 
A dor cega.
 
A dor da frustração nos impede de avistar os horizontes dos recomeços cheios de novas oportunidades. Eu sei, ninguém gosta de recomeçar, é unânime. Cansa. Dá uma sensação de desengano, de fracasso, impotência. Mas às vezes é necessário, e outras vezes, imperativo.
 
A dor do coração partido faz a gente desiludir de corações inteiros, honestos, sinceros. Não conseguimos vê-los. Faz a gente não querer mais coração nenhum além do nosso. Dá a impressão de que vamos levar a vida toda recolhendo nossos cacos espalhados pela avenida dos relacionamentos, e que precisaríamos de outra vida para colá-los. Mas é só impressão…
 
A dor da humilhação rouba-nos a visão do valor que há na pessoa refletida no espelho. Vai por mim, não tente se ver pelos olhos dos outros, não é a imagem real. Se preciso, nem se veja com os seus próprios. Existe um olhar mais generoso e sábio, cheio de esperança e fé no que podemos ser. De vez em sempre, é bom pegar as lentes DELE emprestadas.
 
A dor do abandono e do desprezo ofuscam a nossa visão para o remanescente que permanece ao nosso lado no pós crise. Os que ficam, no fim das contas, são os que realmente interessam, pois os que vão embora, na verdade só estavam de “corpo presente” na nossa história – suas almas já iam há milhas e milhas das nossas.
 
A dor, seja qual for, tem o poder de nos roubar os vislumbres divinos do amanhã de paz que o Espírito da Verdade lampeja dentro de nós. A esperança e o futuro que ansiamos são pintados numa linda tela, dentro do nosso coração, com cores belas que olhos marejados não conseguem distinguir.
 
Eu sei, são dores que não passam na mesma hora. A gente precisa chorar e gemer um pouco, até ir embora. A gente precisa gritar e esperar passar. Precisa medicar, enfaixar e proteger pra que ninguém pise lá de novo, até sarar de verdade e não doer mais. Às vezes é preciso horas, outras vezes dias, quem sabe algumas semanas…
 
Mas uma hora é preciso abrir os olhos. Chega um momento em que é preciso parar de achar que a vida toda está inflamada e reconhecer que era só um pedacinho dela, e que, depois de tudo, vai passar, vai mudar, vai ficar tudo bem de novo e só restar a cicatriz. Ficar arrancando a casca da ferida não é uma medida inteligente. Deixar exposta também não. Mas há um ponto em que deixa de ser dor e vira “manha” com pitadas de autocomiseração, e aí não dá.
 
É preciso abrir os olhos e enxergar tudo o que está em volta e adiante com a lucidez da sanidade e com otimismo deliberado. Com a fé de quem aprendeu a confiar que os desígnios do alto não se estatelam no chão das nossas desilusões, mas permanecem firmes como rocha, esperando nos recompormos e os reencontrarmos.
 
Uma hora é preciso ver as cores de dentro e de fora. E de dentro pra fora também. É necessário ver a graça do presente e a esperança do porvir. Ver a paz e a alegria acenando para nós, felizes da vida, como amigas íntimas fazem.
 
De repente, num dia aí qualquer a gente também se pega contando para alguém, com ares de experiência, como foi o tal acontecido e dizendo, “É, fiquei cega de dor, mas, sabe como é… passou!”.
 
 
- Luciana Honorata

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