Hoje chega às salas de exibição de todo o Brasil a versão cinematográfica de “Cinquenta tons de cinza", romance erótico de autoria da inglesa Erika Leonard James publicado em 2011. O primeiro livro da trilogia que é fenômeno entre as mulheres vendeu mais de dez milhões de exemplares nas seis primeiras semanas, apesar de ser um gênero que sempre foi voltado para o público masculino. O livro é um dos maiores bestsellers dos últimos anos.
O título é um trocadilho com o nome de um dos seus protagonistas, Christian Grey. Interessante que se traduzirmos ambos, nome e sobrenome, encontramos “Cristão Cinza”.
O romance tem como personagem principal uma jovem de 21 anos chamada Anastasia Steele. Após entrevistar Christian Grey para o jornal da faculdade, passa a ter um relacionamento com o magnata. Em meio ao luxo, ele a introduz num mundo de sadomasoquismo, tornando-a sua escrava sexual.
Em vez do colorido comum aos romances literários, eles se envolvem numa relação em que o sexo casual e sádico se revela em tons melancólicos, porém, envolventes.
Tenho a impressão de que o livro tente disseminar fantasias masculinas no coração de mulheres, como se isso fosse próprio de sua natureza. Imagino o mal que literaturas deste tipo podem fazer a médio e longo prazo, criando expectativas sobre-humanas entre parceiros, descolorindo o que por si só é tão belo e sedutor.
Estou longe de ser pudico ou moralista. Porém, acredito que a relação sexual deva ser encarada como algo sagrado, e que nosso parceiro não pode ser coisificado, como se existisse só em função de nosso prazer.
O que apimenta qualquer relação é o amor, o romantismo, e não chicotes, palavrões, brinquedos eróticos e outros fetiches.
Ora, se Paulo toma a relação conjugal como alegoria do relacionamento entre Cristo e Sua Igreja, que tal tomarmos esta obra literária como analogia de nossa condição espiritual? Pergunto: Até que ponto temos vivido uma espiritualidade sadomasoquista? Por que razão temos aceitado como belo o que antes considerávamos repugnante e depreciável? Não estaríamos cultivando uma religiosidade fetichista?
Cinza é a cor do que sobra daquilo que foi devorado pelo fogo. Tomando a simbologia bíblica, cinza representa tristeza, luto, melancolia, e por vezes, arrependimento. São estes os tons de cinza apresentados nas Escrituras.
Davi, por exemplo, no auge de sua crise depressiva, escreveu:
“O meu coração está ferido e seco como a erva, por isso me esqueço de comer o meu pão. Por causa da voz do meu gemido os meus ossos se apegam à minha pele (...) Pois tenho comido cinza como pão, e misturado com lágrimas a minha bebida.” Salmos 102:4-5,9
Comer cinza é uma expressão usada para denotar uma depressão profunda que o levava a perder o apetite. Quando o indivíduo se via neste estado, ele podia expressá-lo através do uso de cinzas literais, derramando-a sobre a cabeça ou assentando-se sobre elas. Lemos que “Jó tomou um caco para se raspar com ele; e estava assentado no meio da cinza.” (Jó 2:8). Seu estado era tão lastimável, que sua própria mulher sugeriu-lhe o suicídio.
A chama apagou. O colorido da vida desbotou. Só sobraram cinzas em seus vários e melancólicos tons.
Outro tom de cinza encontrado nas páginas das Escrituras é o do arrependimento. Para demonstrar que estavam arrependidas, as pessoas se vestiam de saco e derramavam cinzas sobre suas cabeças.
Jesus diz que se os milagres que Ele fizera em algumas das cidades que percorrera houvessem sido feitos em cidades que tiveram fins trágicos, seus destinos teriam sido bem diferentes, pois seus moradores certamente teriam se arrependido “com saco e com cinza” (Mt.11:21-24). Até Sodoma teria se convertido caso houvesse sido cenário dos milagres feitos em Cafarnaum. Neste caso, as cinzas, bem como as roupas de saco, eram usadas para exteriorizar seu estado de espírito e seu arrependimento.
Alguns usavam as cinzas, juntamente com o jejum, em protesto diante de Deus e dos homens. Achavam que isso os fazia merecedores de uma atenção especial da parte de Deus, resultando em resposta às suas orações. Para eles, o jejum havia se tornado numa poderosa arma para pressionar a Deus a atendê-los. Uma espécie de greve de fome. Deus, porém, parece rejeitar tal demonstração de espiritualidade, afirmando que o jejum que o agradava não era que o homem afligisse a sua alma, e estendesse debaixo de si saco e cinza, e sim, que soltasse as algemas da impiedade, despedaçasse todo jugo, deixando livres os oprimidos, repartindo seu pão com o faminto, recolhendo em casa os pobres abandonados e cobrindo os nus (Is.58:5-7). Em vez de privar-se de um pão inteiro por algumas horas, o que Deus esperava era que se privassem de metade deste mesmo mão para sempre, partilhando-o com o que nada tinha. Em vez de privação, partilha. Em vez de flagelo, compaixão. Em vez de dever, prazer.
Jesus denunciou aquela prática equivocada de jejum, e disse que tentar agregá-la ao evangelho é o mesmo que pôr remendo novo em panos velhos, ou vinho novo em odres velhos. A espiritualidade proposta pelo Evangelho não tem nada de cinza; em vez disso, é repleta de cores, tanto quanto a túnica com a qual Jacó presenteou a José, seu filho. Talvez por isso Paulo tenha se referido à “multiforme sabedoria de Deus” que se manifesta através da igreja. O termo traduzido por “multiforme” significa “multicolorida” (Ef.3:10). Ele chega a dizer que os principados e potestades, assistem boquiabertos à esta manifestação gloriosa numa espécie de voyeurismo angelical. Pedro também toma emprestada a mesma palavra para referir-se à multiforme graça de Deus revelada nos múltiplos dons conferidos à igreja (1 Pe. 4:10). Quem está equipado da sabedoria e da graça multicoloridas de Deus não precisa recorrer aos fetiches cinzentos oferecidos por uma religiosidade medíocre e utilitária.
Deus não tem qualquer prazer em nos ver afligir nosso corpo ou nossa alma, numa espécie de exercício de espiritualidade masoquista. Acreditar nisso é o mesmo que chamá-lo de sádico.
É lamentável testemunhar o que alguns cristãos fazem com seus corpos, submetendo-se a sessões de tortura e autoflagelação. Nas Filipinas eles chegam a se crucificar. No Brasil, sobem escadarias de joelhos. E não precisa ser católico fervoroso para fazer algo semelhante. Presenciei crentes subindo ao monte de joelhos na zona oeste do Rio. Fui tachado de incrédulo por recusar-me a tal sacrifício de tolo.
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Veja o que diz Isaías, no texto usado por Jesus em Sua primeira aparição pública:
“O Espírito do Senhor DEUS está sobre mim; porque o SENHOR me ungiu, para pregar boas novas aos pobres; enviou-me a restaurar os contritos de coração, a proclamar liberdade aos cativos, e a abertura de prisão aos presos; a apregoar o ano aceitável do SENHOR e o dia da vingança do nosso Deus; a consolar todos os tristes. A ordenar acerca dos tristes de Sião que se lhes dê uma coroa em vez de cinza, óleo de alegria em vez de tristeza, vestes de louvor em vez de espírito angustiado; a fim de que se chamem árvores de justiça, plantações do SENHOR, para que ele seja glorificado. E edificarão os lugares antigamente assolados, e restaurarão os anteriormente destruídos, e renovarão as cidades assoladas, destruídas de geração em geração.” Isaías 61:1-4
É necessário que as cinzas sejam removidas para dar lugar à coroa de glória e ao “óleo de alegria”. Os resquícios de nossa velha vida devem ser varridos, removidos de nossas cabeças, para que estejamos aptos a receber aquilo que é a fonte de nossa força, a alegria do Senhor. Em vez de fantasias, vestes de louvor. Em vez de alienação, um choque de realidade, somado à certeza de que Deus tem todas as coisas em Seu controle.
Remover as cinzas é romper com o que ficou para trás, a fim de avançarmos para o que se insinua diante de nós. É fazer uma faxina em nossa alma, espanando de uma vez por todas o pó que acumulou-se nos recantos do ser.
Comparando a alegria proporcionada pelo mundo à alegria vinda de Deus, podemos dizer que a primeira sempre termina em cinzas. Começa bem, termina mal. Mas a segunda toma o caminho inverso. Ela é como a fênix que emerge das cinzas com suas exuberantes asas.
Repare no que disse Jesus sobre isso:
“Na verdade, na verdade vos digo que vós chorareis e vos lamentareis, e o mundo se alegrará, e vós estareis tristes, mas a vossa tristeza se converterá em alegria. A mulher, quando está para dar à luz, sente tristeza, porque é chegada a sua hora; mas, depois de ter dado à luz a criança, já não se lembra da aflição, pelo prazer de haver nascido um homem no mundo. Assim também vós agora, na verdade, tendes tristeza; mas outra vez vos verei, e o vosso coração se alegrará, e a vossa alegria ninguém vo-la tirará.” João 16:20-22
A alegria do mundo é fugaz. Por mais lugar comum que isso possa parecer, trata-se de um fato verificável. Toda alegria oferecida pelo mundo não passa de entretenimento com prazo de validade pré-estabelecido. Quando expira, só sobram cinzas. Já a alegria proposta pelo evangelho nasce das cinzas e para lá jamais retorna, pois é eterna.
Há que se fazer aqui uma pequena digressão. Como conciliar o que Jesus disse com a orientação dada por Paulo para que nos alegrássemos com os que se alegram, e chorássemos com os que choram (Rm.12:15)? Ora, se Jesus afirmou que enquanto mundo se alegrasse, nós nos entristeceríamos, como, então, poderíamos celebrar sua alegria?
O fato é que a alegria do mundo não é genuína. Entristecemo-nos, não por inveja de sua alegria, mas por perceber o quão falsa e passageira ela é. Entristecemo-nos por saber que sua alegria resultará em culpa, tristeza e vazio.
A genuína alegria independe de circunstâncias, de dias festivos, de fetiches, de fantasias. Ela decorre, sobretudo, da certeza que temos de que Ele está conosco. Sua presença é tão real que ofusca qualquer adversidade. Seu amor seduz nossa alma, e nos faz atingir patamares inimagináveis de satisfação. Sua graça é-nos mais que suficiente. Não carecemos de fazer do mundo nosso amante, posto que Ele corresponda a todos os anseios de nossa alma.
Ele não nos usa, como Christian Grey faz à jovem Anastasia. Ele simplesmente nos ama, e faz questão de que sintamos todo o Seu amor a nos envolver. Após render-nos aos Seus galanteios, sentimo-nos realizados, e não culpados, usados, machucados, sujos e vazios.
Caso não tenha se rendido ainda, experimente, aprecie sem moderação, pois Seu amor não tem contraindicação.