O médico Augusto Cury analisou algumas condições apresentadas pelas pessoas durante a quarentena obrigatória devido à pandemia de coronavírus. Em entrevista concedida ao Globo, o psiquiatra disse que enxerga o momento atual como oportunidade para repensar determinados valores da sociedade.
A agenda de Augusto Cury tem espera de cinco anos até que aceite um convite para uma conferência. “Falo isso com humildade, mas minha secretária diz que demora até mais tempo”, ele afirma.
Um dos psiquiatras mais lidos no mundo e autor de 55 títulos publicados em mais de 70 países, o pesquisador e escritor tem sido ainda mais solicitado durante a pandemia do novo coronavírus — seu livro “Ansiedade - Como enfrentar o mal do século” inclusive voltou à lista de best-sellers no Brasil.
Além de palestras em empresas e escolas, ele ministra aulas para instituições governamentais. Desde abril, por exemplo, a Polícia Federal disponibiliza para cerca de 15 mil funcionários um curso on-line, criado pelo autor, com técnicas de controle da ansiedade.
Nesta entrevista, Cury comenta os temas que vem estudando há mais de duas décadas, alerta para os problemas provocados pelo uso excessivo de mídias digitais (“estamos na era dos mendigos emocionais”, lamenta) e se defende do rótulo de “autoajuda” que acompanha seus livros e programas motivacionais:
“Esse conceito é diminuto. Não tenho nada a ver com autoajuda. Democratização do acesso a informação é o que todo cientista deveria cultivar. As pessoas não podem se fechar nas suas redomas, nas suas salas de aula e nos seus centros de pesquisa.
Qual a primeira constatação que você faz deste momento atual?
Toda vez que se comprime um ser humano, aumenta-se o nível de estresse cerebral. Por isso, neste momento, as pessoas acabam entrando em contato com janelas traumáticas que financiam autocobrança, autopunição e necessidade neurótica de apontar falhas nos outros, além de intolerância a contrariedade e asco ao tédio.
Tédio tem sido motivo de muita reclamação por quem está em isolamento social.
Sim, mas o tédio é um fator importantíssimo para as pessoas se reinventarem. É uma experiência emocional que pode gerar angústia e ansiedade, com nó na garganta, dor de cabeça e aperto no peito. Mas também pode motivar um impulsionamento da criatividade, com produção de ideias e vontade de planejar o futuro. Infelizmente, porém, o ser humano não sabe mais lidar com o tédio e a solidão, porque está intoxicado digitalmente. Gasta-se tanto tempo com as mídias sociais desde que Steve Jobs lançou o primeiro smartphone, em 2007, que as pessoas não conseguem mais se interiorizar.
Esse comportamento está mais claro agora?
Estamos na era dos mendigos emocionais, com crianças e adultos que precisam de muitos estímulos para sentir migalhas de prazer. E isso se exacerbou na quarentena. As pessoas não estão preparadas para lidar com o ensimesmamento. O que ocorre não é apenas a mudança de um estilo de vida. A síndrome de intoxicação digital faz com que as pessoas sintam um vazio existencial se não estiverem conectadas. É uma atitude autodestrutiva, pois o mundo real pulsa fora dos aparelhos digitais.
Esse problema traz à tona uma questão citada em seus livros, sobre o valor do tempo presente. Mas o confinamento inevitavelmente nos leva a pensar sobre o passado ou o futuro.
Sim, você tem toda a razão. A mente humana tem essa tendência de ruminar perdas, mágoas e frustrações do passado e antecipar sofrimentos, asfixiando-se pelo futuro. Todos nós infectamos o presente, único momento em que é possível ser relaxado, realizado e totalmente feliz. É por isso que estamos na era da ansiedade. As pessoas desaprenderam a viver. Não sabemos ter um caso de amor com a nossa saúde mental. Mas vivemos agora uma grande oportunidade para pensarmos em como nos reinventar.
As pessoas estão preparadas para essa reinvenção?
Infelizmente não, porque a educação mundial está doente, formando pessoas doentes para uma sociedade doente. Do ensino fundamental às universidades, a educação cartesiana é excessivamente exteriorizante. Ela ejeta as pessoas para fora, mas não as ensina a gerir suas emoções.
A educação está mais preocupada em formar consumidores?
Exatamente, a educação cartesiana nos tornou um número de identidade, de passaporte e de cartão de crédito e um consumidor em potencial. E é por isso que os índices de suicídio estão aumentando… Quanto pior a qualidade da educação, mais importante é o papel da psicologia e da psiquiatria, e elas nunca foram tão importantes quanto hoje. Na China e em outras nações orientais, os pais já percebem que os filhos também precisam de educação socioemocional. A educação racionalista é um risco para a saúde mental.
Mas como mudar essa realidade?
A educação precisa sair da “era da informação” e ir para a “era do ‘eu’ como gestor da mente humana”. Deixaremos assim a “era do apontamento de falhas” para entrar na “era da celebração dos acertos”. Alguns comportamentos deveriam ocorrer sistematicamente nesta quarentena: pais deveriam celebrar os acertos dos filhos; casais deveriam elogiar comportamentos um do outro, como atitudes afetivas, silenciosas e emotivas. Se nós não aprendermos a aplaudir uns aos outros, nosso córtex cerebral não abrirá janelas saudáveis para neutralizar traumas.
Essa é a sua maior recomendação para quem está em confinamento social?
O ser humano tem uma tendência atroz de ser o seu pior inimigo. Ele desenha os seus cascos mentais e se aprisiona dentro deles. Por isso, é fundamental gerir a emoção nestes tempos atuais. Infelizmente, durante a quarentena, as pessoas fazem a higiene física mas esquecem a higiene mental. Não podemos ser escravos das nossas mazelas. Até o último suspiro existencial, todo mundo deveria fazer diariamente a técnica do DCD (duvidar, criticar, determinar).
Como funciona essa prática que você propõe em seus cursos?
Há algumas técnicas: 1) não ser apontador de falhas, pois quem faz isso está apto a consertar máquinas, mas não a construir belas histórias de amor; 2) aprender a aplaudir os acertos, todos os dias, de quem amamos; 3) quando for falar de um erro ou falha alheia, exaltar, antes, um acerto dessa pessoa; 4) baixar o tom de voz quando alguém elevá-la, tendo em meta conquistar o coração e não a necessidade neurótica de ganhar a discussão; 5) aprender a se colocar no lugar dos outros para enxergar o que as palavras não disseram, pois por trás de uma pessoa que erra ou fere há uma pessoa ferida; 6) não se tornar uma pessoa repetitiva, para não virar alguém insuportável; 7) não sofrer por antecipação, para não realizar velórios antes do tempo.
E agora? As perspectivas para o futuro podem ser piores?
Quando escrevi "Holocausto nunca mais", fui às lágrimas. Ali, falo das técnicas que os nazistas usaram e das realidades dramáticas dos campos de concentração, e também por que outros Hitlers podem aparecer por aí caso não aprendamos a ter um caso de amor com a espécie humana. Se a Alemanha de Kant, Hegel e Schopenhauer produziu um homem tão radical e violento, no futuro, talvez nas próximas décadas, se houver um estresse derivado de escassez e insegurança alimentar, além de outros fatores sociais, podemos ver uma radicalização excessiva da sociedade. Mas não estou falando que isso acontecerá agora. Só acho que, nas próximas décadas, teremos que tomar muito cuidado.