A espiral do silêncio e as igrejas evangélicas: Questionar é proibido!

Na maioria das vezes, é melhor se calar para sobreviver.

Fonte: Guiame, Daniel RamosAtualizado: sexta-feira, 4 de julho de 2025 às 12:26
(Imagem ilustrativa gerada por IA)
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A “espiral do silêncio” é um conceito poderoso para entender dinâmicas de opinião pública, e sua aplicação no contexto das igrejas evangélicas revela nuances importantes sobre conformidade, liderança e a percepção de divergência.

A teoria da espiral do silêncio, proposta pela cientista política alemã Elisabeth Noelle-Neumann, descreve um fenômeno em que indivíduos com opiniões minoritárias tendem a permanecer em silêncio com medo do isolamento social, enquanto aqueles com opiniões majoritárias expressam suas visões com mais veemência.

Esse ciclo cria uma percepção de que a opinião majoritária é ainda mais dominante do que realmente é, silenciando progressivamente as vozes divergentes. Dentro do contexto das igrejas evangélicas, essa dinâmica se manifesta de forma particular, moldando o discurso, a doutrina e as práticas e, por vezes, inibindo debates cruciais.

Nas comunidades evangélicas, o medo do isolamento pode ser intensificado pela natureza do ambiente. A igreja, para muitos, não é apenas um local de culto, mas um centro de vida social, apoio emocional e identidade.

Ser “excomungado” socialmente, rotulado como “rebelde” ou “desviante” da fé, pode ter consequências profundas, afetando amizades, oportunidades de serviço e até mesmo a reputação familiar. Esse receio leva muitos membros a se autocensurar, evitando expressar dúvidas sobre certas doutrinas, práticas pastorais ou posicionamentos políticos da liderança, mesmo que discordem internamente.

A percepção de qual opinião é “dominante” ou “correta” dentro da igreja é frequentemente construída e reforçada pelas lideranças e pelos membros mais vocais. Púlpitos, grupos de estudo, redes sociais da igreja e até mesmo conversas informais contribuem para estabelecer uma “opinião pública” interna. Se um pastor expressa veementemente uma posição sobre um tema controverso, a congregação pode interpretar isso como a única visão aceitável, levando aqueles com opiniões diferentes a se calarem para não parecerem desrespeitosos ou “fora da fé”.

A doutrina, embora fundamental para a fé evangélica, pode se tornar um instrumento na espiral do silêncio. Quando certas interpretações teológicas são apresentadas como verdades absolutas e inquestionáveis, qualquer questionamento pode ser visto como uma afronta à própria Palavra de Deus. Isso é particularmente visível em temas como sexualidade, gênero, política e a infalibilidade da liderança. Um membro que nutre simpatias por pautas progressistas ou que questione a autoridade pastoral pode ser percebido como alguém que está "em pecado" ou que “se afastou da verdade”, reforçando a pressão para o silêncio.

Além disso, a ênfase em conceitos como “unidade da igreja” e “submissão à autoridade” pode ser mal interpretada e utilizada para sufocar o dissenso saudável. Embora a unidade seja um valor cristão, ela não deve ser confundida com a supressão do pensamento crítico ou da expressão legítima de diferentes perspectivas.

O silenciamento das vozes divergentes pode trazer consequências negativas para a vitalidade e a relevância das igrejas evangélicas:

Rigidez e estagnação: a falta de debate e questionamento pode levar a uma rigidez doutrinária e prática, dificultando a adaptação da igreja aos desafios e às realidades do mundo contemporâneo.

Perda de membros: pessoas que não se sentem representadas ou que se veem incapazes de expressar suas verdadeiras convicções podem acabar se afastando da comunidade, buscando ambientes onde se sintam mais livres para serem autênticas.

Decisões enviesadas: sem a diversidade de opiniões, as lideranças podem tomar decisões baseadas em uma percepção distorcida da realidade ou da vontade de seus membros, o que pode levar a crises e divisões.

Falta de reflexão crítica: temas complexos e delicados, como justiça social, saúde mental e abuso de poder, podem ser negligenciados ou abordados de forma superficial, impedindo a igreja de cumprir seu papel profético e de serviço à sociedade.

Apesar da força da espiral do silêncio, existem fatores que podem desafiá-la e até mesmo quebrá-la:

Emergência de vozes corajosas: indivíduos ou pequenos grupos que, a despeito do medo, se levantam e expressam suas opiniões, podem inspirar outros a fazer o mesmo, mostrando que não estão sozinhos.

Mídias sociais e redes alternativas: a internet e as redes sociais, embora com seus próprios riscos de polarização, podem oferecer plataformas para que vozes minoritárias se conectem e percebam que não estão isoladas, formando uma “contra-pública” que desafia a narrativa dominante da igreja local.

Lideranças abertas ao diálogo: pastores e líderes que genuinamente promovem um ambiente de escuta, respeito e abertura ao questionamento crítico podem criar espaços seguros para a expressão de diferentes pontos de vista.

Crises e escândalos: eventos traumáticos ou escândalos dentro da igreja podem forçar um rompimento do silêncio, levando a reavaliações profundas de doutrinas, práticas e lideranças.

A espiral do silêncio é uma lente analítica valiosa para compreender as dinâmicas de conformidade e dissidência dentro das igrejas evangélicas. Reconhecer sua existência é o primeiro passo para promover ambientes mais saudáveis, inclusivos e proféticos. O desafio para as comunidades evangélicas é transcender o medo do isolamento, fomentando um diálogo aberto e respeitoso, onde a diversidade de pensamento não seja vista como uma ameaça à fé, mas como um elemento enriquecedor para a busca da verdade e para o cumprimento da missão cristã.

 

Daniel Santos Ramos (@profdanielramos) é professor, possui Licenciatura em Letras Português-Inglês (UNICV, 2024) e bacharelado em Teologia (PUC MINAS, 2013). Pós-graduado em Docência em Letras e Práticas Pedagógicas (FACULESTE, 2023). Mestre em Teologia (FAJE, 2015). Atualmente é colunista do Portal Guia-me, professor de Língua Portuguesa no Ensino de Jovens e Adultos (EJA) e Ensino Médio e de Língua Inglesa no Ensino Fundamental (ll) da SEE-MG, professor de Teologia no IETEB e professor de Português Instrumental do IE São Camilo. Escreveu dois livros, "Curso de Teologia: Vida com Propósito" (AMOB, 2023) e "Novo Curso de Teologia: Vida com Propósito (IETEB, 2025). Além de possuir mais de 20 anos de experiência na ministração da Palavra. É membro da Assembleia de Deus em Belo Horizonte (desde sempre), congrega no Templo Central.

* O conteúdo do texto acima é uma colaboração voluntária, de total responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a opinião do Portal Guiame.

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