Registra as minhas aflições; põe as minhas lágrimas no teu odre — não estão elas no teu livro? (Salmo 56:8)
As lágrimas ocupam um lugar especial junto a Deus. Nenhum sofrimento passa despercebido dele, embora sua origem seja fruto da rebeldia do homem contra seu Criador. Por mais distante que pareça, Deus se compadece da raça humana e se identifica com qualquer tipo de sofrimento. Não é por acaso que um dos nomes para o Messias é Homem de Dores, segundo o profeta Isaías. Ele conheceu todo tipo de dor e não há sofrimento que lhe seja estranho.
Davi, como antepassado e figura messiânica, experimentou muitas angústias em sua vida inteira, antes e depois de ser rei. Essas experiências o levaram a escrever grande parte de seus salmos, compostos sob forte efeito emotivo causado pelas agruras por que atravessou. No salmo 56, ele registra uma delas, quando foi perseguido e atacado por seus inimigos. Ele suplica que Deus marque suas fugas e peregrinações, e deposite suas lágrimas em seu odre.
Embora soe como uma bela metáfora, o que não deixa de ser, o odre — uma garrafa ou cantil feito de couro animal — representa aqui um depositário das lágrimas, algo que realmente existia em algumas civilizações antigas. Era uma alusão ao ato de se coletar lágrimas em tempos de angústia e calamidade, preservando-as em um “lacrimatório” como memorial do tempo de aflição. Muitos desses lacrimatórios foram encontrados em escavações de túmulos romanos. Se os homens na antiguidade eram capazes de captar as lágrimas para preservar lembranças de tempos difíceis, quanto mais Deus que tudo vê e conhece.
Livros especiais
No céu há muitos livros e as Escrituras mencionam alguns deles. O mais conhecido é, sem dúvida, o Livro da Vida, muito abordado nas orações de Selichot (pedidos de perdão), feitas diariamente nos dias que precedem as Festas do Outono, que apontam para a chegada do Messias e o destino dos homens, para vida ou para a morte. Pela menção nos Evangelhos e em Apocalipse, esse também é o livro do céu mais conhecido entre os cristãos.
Por ser o lugar do Trono de Deus e um lugar mais que especial, o céu contém muitos outros livros especiais e um livro pouco conhecido é o Livro das Lágrimas, o mesmo mencionado por Davi nesse salmo. Sua pergunta soa menos como dúvida do que uma assertiva declaração de fé: “Não estão elas (lágrimas) no teu livro?”. Davi, como Yeshua — seu descendente natural e herdeiro eterno do trono de Israel — sabia bem o que era o Livro das Lágrimas do Senhor, usado para registrar todo tipo de sofrimento da humanidade, desde Adão por todas as gerações posteriores.
As portas das lágrimas
O Talmude Babilônico diz que, de acordo com a interpretação de Lamentações 3:8, desde a destruição do Templo, as portas da oração tradicional feita naquele lugar foram fechadas. A despeito desse fato, as portas das lágrimas não foram fechadas, e quem clama a Deus pode estar seguro de que suas orações serão respondidas, de acordo com o Salmo 39:12: Ouve, ó Senhor, a minha oração, e inclina os teus ouvidos ao meu clamor; não te cales perante as minhas lágrimas” (Berachot 32b). Não importa o tamanho do sofrimento, as portas das lágrimas sempre estarão abertas para se acessar o coração de Deus.
Nessa mesma linha, inspirada no Salmo 6, também de autoria de Davi e que fala sobre sua profunda agonia física e de alma, a tradição rabínica transmite a ideia de que a lágrima abre portões que a oração não consegue abrir. “O Senhor ouviu a voz do meu choro” (v.8). As lágrimas têm voz e são ouvidas por Deus. Essa é uma das maiores afirmações sobre a força espiritual das lágrimas em relação a uma oração articulada. Uma lágrima silenciosa, derramada por um coração aflito, pode falar mais alto que muitas palavras e definitivamente será escrita no livro de Deus.
O poder das lágrimas
Nenhuma figura bíblica mais do que Davi, exceto o próprio Messias, experimentou repetidas vezes o poder esmagador do sofrimento, seja como filho ou como pai, seja como irmão ou como amigo, seja como súdito ou como rei. Ele prefigurava seu descendente maior, o Messias, “homem de dores e experimentado no sofrimento” (Is. 53:3).
Embora os Evangelhos registrem apenas duas vezes que o Messias chorou, podemos imaginar quantas vezes Ele derramou suas lágrimas puras em clamor e intercessão pelas ovelhas perdidas de Israel, bem como durante as dores que lhe atravessaram o corpo e a alma antes e durante sua Paixão. Como seu antepassado Davi, Yeshua conhecia o poder das lágrimas e que nenhuma delas seria esquecida por Deus, mas guardadas em seu odre e registradas no Livro das Lágrimas, usado por santo memorial perante o Pai.
As lágrimas sinceras têm a capacidade de tocar o coração de Deus de forma única e servem como catalisador de resposta a muitas orações. Ao serem transportadas para as páginas do Livro das Lágrimas, se converterão em relatos e histórias indeléveis, acariciadas por Deus por toda a eternidade.
Getúlio Cidade é escritor, tradutor e hebraísta, autor de A Oliveira Natural: As Raízes Judaicas do Cristianismo e do blog www.aoliveiranatural.com.br.
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