Getúlio Cidade

Getúlio Cidade

Getúlio Cidade é escritor, tradutor e hebraísta, autor do livro A Oliveira Natural: As Raízes Judaicas do Cristianismo e do blog de mesmo nome onde publica estudos bíblicos com ênfase na história, língua e cultura judaicas relacionadas ao cristianismo.

A divisão do lar e a tradição oral

A divisão está à nossa volta e começa dentro de nossos lares, literalmente ao redor de nossas mesas, com as pessoas mais íntimas de nosso convívio.

Fonte: Guiame, Getúlio CidadeAtualizado: quarta-feira, 12 de novembro de 2025 às 18:02
(Imagem ilustrativa gerada por IA)
(Imagem ilustrativa gerada por IA)

Em um de seus discursos mais contundentes, Jesus proferiu palavras que promoveram um autêntico choque de realidade sobre o que se esperava do Messias de Israel: trazer paz e unidade. Ele afirma o contrário ao dizer que veio promover a divisão dentro dos próprios lares.

“Não penseis que vim trazer paz à Terra. Não vim trazer paz, mas espada. Pois eu vim trazer divisão entre o homem e seu pai, entre a filha e sua mãe, entre a nora e sua sogra. Assim, os inimigos do homem serão os seus próprios familiares” (Mateus 10:34-36).

Essa é a profecia predita pelo Messias que mais tem sido cumprida, desde seu ministério terreno, em sua primeira vinda; tem se cumprido por todos esses séculos, até nossos dias; e se cumprirá até o dia de sua volta, de modo mais intenso. Não é difícil imaginar a causa dessa divisão dentro da própria casa. O Evangelho é a Palavra de Deus, a espada de dois gumes capaz de separar a alma do espírito, e apta para discernir os pensamentos e intenções do coração (Hb. 4:12).

Não há como receber as Boas Novas do Reino de Deus e permanecer no mesmo estilo de vida do velho homem. Por outro lado, a iniquidade natural do ser humano e sua recusa em abandonar o pecado, mesmo diante da oferta de tão grande salvação, é o motivo dessa hostilidade ao Evangelho. A divisão está à nossa volta e começa dentro de nossos lares, literalmente ao redor de nossas mesas, com as pessoas mais íntimas de nosso convívio. Há um número incontável de famílias que experimentam essa divisão ou essa espada — conforme destacou o Senhor — diariamente em suas casas.

Uma guerra invisível

O termo espada parece ter sido cuidadosamente escolhido por Yeshua para se referir ao ambiente a que realmente somos submetidos — o de uma verdadeira guerra, uma guerra espiritual, invisível, cujo campo de batalha se dá nas mentes e nos corações. É uma disputa entre carne e espírito, travada pelo Espírito Santo e pelos inimigos de Deus e de seu Evangelho, capaz de definir o destino eterno de todos os homens.

Essa batalha aludida pelo Senhor, no entanto, não era nada nova para os judeus que o ouviram falar. Na verdade, Yeshua fez uma citação direta dos Profetas, semelhante a muitos de seus discursos. Essas conexões, infelizmente, são perdidas pelo desconhecimento ou falta de interesse que muitos cristãos gentios têm pela Tanach — o cânon sagrado que ficou conhecido por Antigo Testamento.

Oito séculos antes do Messias, Miquéias já alertava sobre o perigo de se confiar nas pessoas mais íntimas, usando um hebraísmo para isso, ao escrever: “Não creiais no amigo; não confieis no companheiro. Daquela que repousa no teu seio, guarda as portas da tua boca.” (Mq. 7:5). Em seguida, usa as palavras que foram citadas diretamente por Yeshua em seu discurso: “Pois o filho despreza o pai, a filha se levanta contra sua mãe, a nora contra sua sogra; os inimigos do homem são os da sua própria casa” (v.6).

A mesma guerra invisível, travada no campo de batalha da mente, já era conhecida dos judeus há séculos e envolve também o antigo pecado de traição ressaltado por Miquéias. É sobre esse mesmo perigo de traição que Davi escreveu, em um de seus salmos, a respeito de sua casa e profeticamente a respeito do Messias: “Até o meu próprio amigo íntimo, em quem eu confiava, que comia do meu pão, levantou contra mim o seu calcanhar” (Sl. 41:9).

Essa é uma expressão idiomática para traição. Ela virá não de estranhos, mas das pessoas mais chegadas, que dividem conosco a mesma refeição. Essa foi a prova mais difícil para Davi: sofrer traição de seu próprio filho Absalão. Essa foi uma das maiores provas de Yeshua, ser traído por um dos discípulos de seu círculo mais íntimo. Na maioria das vezes, essa também será a grande prova daqueles que buscam segui-lo de todo coração. Fomos advertidos de antemão pelo Senhor.

Yeshua e a Mishnah

Nesse capítulo de Mateus, um pouco antes, Yeshua aborda esse mesmo assunto ao dizer: “Um irmão entregará à morte outro irmão, e o pai ao filho; e os filhos se levantarão contra os pais e os matarão” (v.21). A citação de Miquéias, um pouco mais adiante, no entanto, não é um eco isolado. Yeshua faz menção também à tradição oral (Mishnah), existente desde o tempo de Moisés e passada de pai para filho, de geração a geração.

O trecho a que me refiro está registrado no Talmude, mas é baseado na tradição oral anterior a Yeshua, possuía contexto messiânico e também faz referência a Miquéias. Ele diz que, nos últimos dias que precederão a vinda do Messias, haverá um colapso moral tão grande que causará ruptura no núcleo familiar:

“As pessoas que têm temor em pecar serão tidas como repulsivas e a verdade estará ausente. Os jovens envergonharão os anciãos (...). As relações familiares normais serão arruinadas: Um filho será desgraça para o pai; uma filha se levantará contra a mãe, uma nora contra a sogra. Os inimigos do homem serão os membros de sua casa. A cara dessa geração será como a cara de um cão. Um filho não mais se envergonhará diante do pai. E o que sobra para nós confiarmos? Somente nosso Pai no céu” (Sotah 49b).

As palavras de Yeshua, em Mateus, guardam um paralelo perfeito com esse texto da tradição oral. E esse é apenas um exemplo de como a formação rabínica do Senhor foi moldada e influenciada não somente pela Tanach, mas pela tradição oral que recebeu de seus pais, conforme determinado por Moisés na Torá.

A espada mencionada por Yeshua continua a dividir uma infinitude de lares hoje, mas devemos prosseguir olhando para Ele sobretudo, como nos ensinou nesse mesmo discurso: “Quem ama o pai ou a mãe mais do que a mim, não é digno de mim; quem ama o filho ou a filha mais do que a mim, não é digno de mim” (v.37). E Miquéias, após falar dessa guerra dentro de nossos lares, finaliza exatamente como esse trecho da Mishnah: “Eu, porém, confiarei no Senhor, esperarei no Deus da minha salvação; o meu Deus me ouvirá” (Mq. 7:7).

 

Getúlio Cidade é escritor, tradutor e hebraísta, autor de A Oliveira Natural: As Raízes Judaicas do Cristianismo e do blog www.aoliveiranatural.com.br.

* O conteúdo do texto acima é uma colaboração voluntária, de total responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a opinião do Portal Guiame.

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