O Salmo 23 é provavelmente o mais conhecido de todos os cristãos, o mais lido e declarado, mais até que o glorioso Salmo 91. Suas palavras reconfortantes servem como oásis num deserto, nos momentos mais difíceis de luta e sofrimento. É o salmo mais lido em sepultamentos e a razão para isso é que as “veredas da justiça” são perenes, por onde serão conduzidos os remidos do Senhor por toda a eternidade.
“O Senhor é o meu pastor; nada me faltará”. Essa expressão inicial, usada por Davi, abrange um significado maior do que nossas traduções podem alcançar. Deus é retratado por toda a Bíblia como Rei, Juiz, Salvador, Guerreiro, porém, aqui Ele é o Pastor que cuida zelosamente de suas ovelhas. Há poucas passagens que se referem a Deus como Pastor. No original, são apenas duas palavras (Adonai Roí) que sintetizam muita coisa a respeito desse cuidado.
O verbo faltar (chaser no original) não se refere apenas à provisão material ou emocional. Segundo sua raiz primitiva, significa falhar, ser abatido, ser diminuído ou reduzido, e até mesmo enlutado. De modo mais amplo, pode-se dizer que o Senhor é o meu Pastor; nada me faltará materialmente ou emocionalmente; não falharei nos meus desafios; não serei abatido diante de meus inimigos; não serei envergonhado; e não viverei enlutado. É uma promessa grandiosa demais que cabe em uma só expressão.
“A tua vara e o teu cajado me consolam”
Davi afirma que, ainda que andasse pelo vale da sombra da morte, nada temeria, pois “a tua vara e o teu cajado me consolam”. Qual a diferença entre a vara e o cajado de um pastor? A palavra para vara se refere a um instrumento de correção e punição, a mesma usada em Provérbios 13:24 para correção de filhos. Sem dúvida, o pastor verdadeiro corrigirá suas ovelhas a fim de que não se desviem da trilha e o percam de vista. A vara também serve de punição contra os lobos que investem contra as ovelhas. Um pastor atento jamais permite que lobos ou quaisquer outros animais ataquem seu rebanho. Davi que matou um leão e um urso para proteger suas ovelhas sabia muito bem o que estava escrevendo.
A palavra para cajado aqui (mishenet) é diferente da mais comum usada nas Escrituras, como a que se refere ao cajado de Moisés ou Arão. Essa palavra significa apoio, sustento. É como uma bengala em que se apoia para caminhar. A ideia é de que nunca caminhamos sozinhos. Temos um Pastor que está sempre ao nosso lado, que nos sustenta, que é nosso auxílio e socorro nos momentos mais difíceis, mesmo quando parece que não nos resta força para prosseguir. É também o instrumento que conduz as ovelhas para os pastos onde encontrarão alimento. Portanto, a vara significa correção e proteção, enquanto o cajado significa auxílio e provisão.
O verso 5 contém uma valiosa promessa. O mesmo Pastor que nos conduz em segurança e auxiliadora companhia nos farta diante de nossos adversários (“preparas uma mesa perante mim na presença de meus inimigos”). A unção com óleo aponta para a autoridade e a presença do Espírito Santo sobre seus filhos. O cálice transbordante aponta para a alegria contínua, pois é assim que se bebe o vinho nas cerimônias e Festas bíblicas em Israel, com o cálice transbordando — um sinal de júbilo. Seremos cheios de seu Espírito e transbordaremos de alegria perante nossos inimigos.
O Bom Pastor
O Pastor do Salmo 23 é também uma figura messiânica dos Profetas, especificamente no capítulo 34 de Ezequiel. Ali o Senhor expõe dois tipos de pastores: o mau e o bom. O mau é aquele que usurpa as ovelhas e apascenta a si mesmo; que não fortalece a fraca nem cura a doente; que sobre elas domina com rigor e dureza, permitindo que se dispersem e se percam. O bom pastor é aquele que busca as ovelhas perdidas; que cura suas feridas e as fortalece; que as apascenta em pastos de fartura (os mesmos “pastos verdejantes”), junto às correntes das águas (ou às “águas tranquilas”); que lhes dá repouso (“refrigera a minha alma”). O modelo do bom pastor está na figura do Messias de Israel, na promessa de que o Senhor levantará “sobre elas um só pastor, o meu servo Davi, e ele as apascentará” (v.23).
No capítulo 10 do Evangelho de João, Yeshua expõe esses dois modelos de pastor usados por Ezequiel e se autoidentifica como sendo essa figura messiânica. O mau pastor é o ladrão que vem para roubar, matar e destruir. Ele — o Bom Pastor — veio trazer vida abundante e dá sua vida pelas ovelhas. O mau pastor não tem vara nem cajado; não protege as ovelhas nem as guia. Também é mercenário, usa-as apenas para obter ganhos próprios e, quando vê vir o lobo, abandona-as e foge covardemente. Ele assim o faz porque não tem cuidado com as ovelhas, apenas consigo mesmo, exatamente como afirma Ezequiel. O Bom Pastor conhece suas ovelhas e delas é conhecido.
Ao se identificar como o Bom Pastor, Yeshua estava afirmando a seus ouvintes que era o Messias esperado pela casa de Israel. Ele dá sua vida pelas ovelhas e, por isso, o Pai o ama. Uma das atribuições do Messias é agregar todas as ovelhas dispersas, reunindo-as sob seu cajado, de modo que haja um só rebanho e um só Pastor — “meu servo Davi” — que as apascentará. É exatamente em referência a esse papel messiânico que Yeshua afirma que “o Filho do Homem veio buscar e salvar o que se havia perdido” (Lucas 19:10). Ele tem feito isso desde sua ascensão à direita do Pai e prosseguirá fazendo até sua volta.
Ele continua trazendo refrigério às almas cansadas e guiando-as em segurança, ainda que tenham de atravessar o vale da sombra da morte. Ele é o Bom Pastor profetizado por Ezequiel e o Pastor do Salmo 23 descrito por seu antepassado Davi. Ele promete nunca nos abandonar e faz com que sua bondade e seu amor nos sigam todos os dias de nossas vidas, a fim de habitarmos na casa do Senhor para sempre.
Getúlio Cidade é escritor, tradutor e hebraísta, autor do livro A Oliveira Natural: As Raízes Judaicas do Cristianismo e do blog www.aoliveiranatural.com.br
* O conteúdo do texto acima é de total responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a opinião do Portal Guiame.
Leia o artigo anterior: A Guerra Permanente entre Esaú e Jacó