A palavra poesia é de raiz latina, mas tem sua origem no grego e transmite a ideia de criar, de fazer ou construir algo. O poeta é aquele faz belas criações com o uso das palavras. No caso de Deus, Ele não somente trabalha com as palavras para formar poesia — a Bíblia é repleta de poesia do início ao fim —, mas sendo Ele mesmo a Palavra, em última instância, usa-a para criar todas as coisas.
“No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez.” João 1:1-3 O Verbo é o Filho, a própria Palavra de Deus em ação, expressão maior de sua poesia por toda a obra da criação.
Como o amor de águia
Logo no início da história da criação em Gênesis (B’reshit), antes de Deus abrir a cortina do tempo e colocar sua Palavra criadora em ação, seu Espírito “pairava sobre a face das águas” (Gn. 1:2). Há algo importante sobre o verbo traduzido por “pairava” que se perde na tradução.
Este verbo é merachefet e ocorre apenas duas vezes em toda a Torá. Surge aqui, no início de Gênesis, para reaparecer somente no fim da Torá, em Deuteronômio 32:11, numa outra variante, no cântico de Moisés, composto imediatamente antes de sua morte. Ao falar do cuidado de Deus para com Israel ao tirá-lo do Egito e conduzi-lo pelo deserto por quarenta anos, diz: “Ele o protegeu e dele cuidou; guardou-o como a menina dos seus olhos, como a águia que desperta a sua ninhada, paira sobre os seus filhotes, e depois estende as asas para apanhá-los, levando-os sobre elas” Deuteronômio 32:10,11. A ideia é comparar o cuidado de Deus para com seu povo com o mesmo zelo e amor de uma águia para com seus filhotes, estendendo as asas delicadamente para lhes trazer proteção, ou carregando-os sobre suas asas quando necessário.
Não é por acaso que, em Gênesis, o verbo pairar está no gênero feminino (como no hebraico moderno), pois a ideia transmitida é a mesma. No início, o Espírito de Deus pairava com suas asas sobre as águas, representando toda sua Criação ainda sem forma, do mesmo modo que a águia fêmea faz com seus filhotinhos, abraçando-os, demonstrando carinho e afeição. Isso demonstra o amor que, desde o princípio, Ele devota à sua Criação. O fato desse verbo aparecer apenas no início e no fim da Torá se reveste de um profundo significado: o Pai estende suas asas protetoras sobre suas criaturas que nele confiam desde o início até o fim de suas vidas.
A Terra está cheia de sua glória
Jesus empregou elementos bem conhecidos na natureza para ensinar verdades sobre o Reino de Deus. Em seus sermões, chamou a atenção para um mísero grão de mostarda a fim de mostrar a importância das pequenas coisas para se chegar às enormes conquistas. Encorajou-nos a apreciar os lírios dos campos e sua formosura inigualável. E nos mandou aprender com a simplicidade de como vivem os pardais em sua completa dependência de Deus para seu sustento diário.
Isaías declara que toda a Terra está cheia da glória de Deus (Is. 6:3). Uma das formas de interpretar este verso é reconhecer sua poesia expressa milhões de vezes em cada espécie e em cada aspecto de sua Criação. Como não se deslumbrar com a beleza no mosaico das asas de uma borboleta ou com a engenhosidade de um joão-de-barro ao vê-lo construindo sua casa em uma árvore? E o que dizer sobre o maravilhoso milagre da gestação de um bebê? Da sensação de insignificância que nos toma perante o céu estrelado e seu infinito número de galáxias? Do esplendor da lua cheia e dos matizes de um pôr-do-sol, um espetáculo gratuito que se repete todos os dias em todas as partes do mundo, como uma pintura a óleo de Van Gogh ao vivo e em cores?
Os versos da salvação
De toda a Criação, certamente o que mais agradou a Deus foi o homem, pois Ele o fez à sua semelhança. E, por mais que este o tenha decepcionado, Ele o amou desde o princípio. E, desde o princípio, sabia que a única maneira de o resgatar seria por meio do Verbo Vivo, aquele que era a Palavra com a qual criou o universo e todas as coisas. Mesmo assim, não poupou esforço em sua criatividade, sabedoria e poder para formar o homem do pó da terra e soprar sobre ele seu Espírito, tornando-o alma vivente (nefesh haiah).
No momento certo, então, enviou o Filho, seu único Filho, que, tomando sobre si nossos pecados, derramou sua vida na dolorosa cruz por expiação. Ali mesmo, escrito com dor, suor, lágrimas e sangue, o Verbo de Deus foi conjugado no passado, presente e futuro simultaneamente para compor a mais bela de todas as poesias, uma poesia extraordinária de amor. Esta é a poesia de Deus para a salvação da humanidade, cuja beleza me emociona profundamente até o mais íntimo de meu ser. Definitivamente, Deus é o maior de todos os poetas.
Getúlio Cidade é escritor, tradutor e hebraísta, autor do livro A Oliveira Natural: As Raízes Judaicas do Cristianismo e do blog www.aoliveiranatural.com.br
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