O Salmo 137 é um lamento pungente que ecoa a dor e a saudade do povo de Israel durante o seu exílio na Babilônia. No versículo 4, a pergunta retórica: "Como entoaremos o cântico do Senhor em terra estranha?" יֵ֭ךְ נָ יִ֣ר אֶת־ יִֽר־יְהוָ֑ה עַ֝ל אֲדָמָ֣ה נֵכָֽרִ הָֽ) שכיּּׁׁ – keyk nashir et-shir-Yahweh ‘al ‘adamah nekhariyyah) encapsula a profunda crise de identidade e fé vivida pelos exilados. Para compreender a força e as implicações dessa interrogação, faz-se necessário uma análise hermenêutica que explore o contexto histórico, o significado das palavras e as possíveis interpretações teológicas e práticas.
Contexto Histórico e Literário:
O Salmo 137 situa-se no período posterior à destruição de Jerusalém e do Templo de Salomão pelos babilônios, por volta de 586 a.C. O povo de Judá foi deportado para a Babilônia, uma terra estrangeira em todos os sentidos: cultural, religiosa e geograficamente. O salmo expressa a profunda angústia dos exilados ao lembrarem-se de Sião (v. 1), o sofrimento infligido pelos seus captores (v. 3) e o juramento de jamais esquecer Jerusalém (vv. 5-6). O versículo 4 surge nesse contexto de perda e opressão, revelando a dificuldade de manter a identidade religiosa e a prática cúltica em um ambiente hostil.
Literariamente, o Salmo 137 é um lamento comunitário, permeado por sentimentos de tristeza, raiva e um forte senso de alienação. A pergunta do versículo 4 não é uma simples indagação, mas uma expressão de profunda impossibilidade. Ela carrega consigo a consciência da profanação, da inadequação e da dor que tornam o ato de cantar os louvores do Senhor em terra estrangeira algo quase impensável.
Análise Léxico-Gramatical
keyk: Advérbio interrogativo que significa "como?". Expressa a dificuldade, a perplexidade e, neste contexto, a quase impossibilidade da ação.
nashir: Verbo no qal imperfeito primeira pessoa do plural, significando "cantaremos". Refere-se à prática litúrgica e à expressão de louvor a Deus através do canto.
’et-shir-Yahweh: A partícula acusativa ’et introduz o objeto direto "o cântico do Senhor" (shir-Yahweh). A construção genitiva enfatiza a natureza sagrada e a pertença do cântico a Yahweh, o Deus de Israel.
’al: Preposição que pode significar "sobre", "em cima de", mas também "em relação a" ou "em". Neste contexto, indica o lugar ou a circunstância em que o cântico seria entoado.
’adamah: Substantivo feminino que significa "terra", "solo", mas também pode se referir ao território ou à nação.
nekhariyyah: Adjetivo feminino que significa "estrangeira", "alheia", "desconhecida". Qualifica a "terra" (’adamah), enfatizando seu caráter estranho e hostil para os exilados.
A combinação dessas palavras revela a profunda incompatibilidade sentida pelos exilados entre a natureza sagrada dos cânticos a Yahweh e a profanidade da terra estrangeira. A pergunta não busca uma resposta prática sobre a técnica de cantar, mas sim expressa uma crise teológica e identitária.
Interpretações Teológicas e Práticas:
A pergunta do Salmo 137:4 ressoa com diversas camadas de significado e oferece lições perenes:
1. A Perda da Centralidade do Culto: O Templo de Jerusalém era o local central para o culto a Yahweh. Sua destruição e a deportação para uma terra onde outros deuses eram cultuados geraram uma profunda sensação de deslocamento religioso. Cantar os cânticos do Senhor em um ambiente onde Ele não era reconhecido ou adorado parecia uma profanação, uma dissonância entre o sagrado e o profano. Isso nos lembra da importância dos espaços de culto e da dificuldade de manter a prática religiosa em contextos hostis.
2. A Crise de Identidade: Os cânticos do Senhor estavam intrinsecamente ligados à identidade do povo de Israel, à sua história e à sua relação com Deus. Em terra estrangeira, cantar esses cânticos poderia soar como uma lembrança dolorosa de um passado perdido, uma ferida aberta pela saudade e pela humilhação. A pergunta reflete a dificuldade de manter a identidade cultural e religiosa em um ambiente que busca assimilação.
3. O Silêncio como Protesto: Alguns intérpretes sugerem que a pergunta retórica implica uma recusa em cantar. O silêncio dos exilados poderia ser interpretado como um ato de protesto contra a opressão e a perda. Cantar os louvores do Senhor para seus captores seria uma concessão, uma aceitação da sua situação que eles não estavam dispostos a fazer. Isso nos ensina sobre a importância da resistência cultural e espiritual em face da injustiça.
4. A Natureza da Adoração: A pergunta também levanta questões sobre a natureza da verdadeira adoração. Seria a adoração dependente de um local específico? O cântico ao Senhor só poderia ser entoado em Sião? A experiência do exílio eventualmente levou a uma redefinição da prática religiosa, com o surgimento das sinagogas como centros de oração e estudo da Torá. Isso sugere que, embora a perda do Templo tenha sido traumática, a fé pôde se adaptar e encontrar novas formas de expressão em diferentes contextos.
5. A Saudade da Presença Divina: Em um nível mais profundo, a pergunta pode expressar a sensação de distanciamento da presença de Deus em terra estranha. A ausência do Templo e a opressão sofrida poderiam gerar a impressão de que Deus havia abandonado o seu povo. Cantar os seus louvores em tal contexto poderia parecer vazio ou até mesmo hipócrita. Isso nos lembra da importância de sentir a presença de Deus em todas as circunstâncias, mesmo nas mais difíceis.
Implicações para Hoje:
A pergunta do Salmo 137:4 continua relevante para os crentes em diferentes contextos:
- Minorias religiosas: Como expressar a fé em ambientes seculares ou dominados por outras crenças?
- Cristãos em contextos de perseguição: Como manter a adoração e o louvor em meio à opressão e ao sofrimento?
- Indivíduos em momentos de crise pessoal: Como encontrar palavras de louvor e gratidão em meio à dor e à dificuldade?
- A Igreja em um mundo globalizado: Como manter a identidade cristã e expressar o louvor a Deus em meio à diversidade cultural e religiosa?
A resposta à pergunta do Salmo 137:4 não é simples. A história do exílio e do posterior retorno a Jerusalém sugere que, embora a dor da perda e da alienação seja real, a fé pode encontrar novas formas de expressão e a presença de Deus pode ser experimentada mesmo em "terra estranha". O cântico ao Senhor pode ser entoado não apenas com a voz, mas também com a vida, através da fidelidade, da esperança e do testemunho, mesmo em meio às adversidades.
Em conclusão, a pergunta "Como entoaremos o cântico do Senhor em terra estranha?" é um grito de angústia que ecoa a profunda crise vivida pelos exilados na Babilônia. Através de uma análise hermenêutica, percebemos que essa interrogação revela a perda da centralidade do culto, a crise de identidade, a possibilidade do silêncio como protesto, a reflexão sobre a natureza da adoração e a saudade da presença divina.
As lições desse salmo continuam a desafiar e a inspirar os crentes hoje, lembrando-nos da importância de manter a fé e expressar o louvor a Deus, mesmo quando nos encontramos em terras estranhas e enfrentamos desafios que parecem impossíveis de superar.
Daniel Santos Ramos (@profdanielramos) é professor, possui Licenciatura em Letras Português-Inglês (UNICV, 2024) e bacharelado em Teologia (PUC MINAS, 2013). Pós-graduado em Docência em Letras e Práticas Pedagógicas (FACULESTE, 2023). Mestre em Teologia (FAJE, 2015). Atualmente é colunista do Portal Guia-me, professor de Língua Portuguesa no Ensino de Jovens e Adultos (EJA) e Ensino Médio e de Língua Inglesa no Ensino Fundamental (ll) da SEE-MG, professor de Teologia no IETEB e professor de Português Instrumental do IE São Camilo. Escreveu dois livros, "Curso de Teologia: Vida com Propósito" (AMOB, 2023) e "Novo Curso de Teologia: Vida com Propósito (IETEB, 2025). Além de possuir mais de 20 anos de experiência na ministração da Palavra. É membro da Assembleia de Deus em Belo Horizonte (desde sempre), congrega no Templo Central.
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