Daniel Ramos

Daniel Ramos

Daniel Ramos é professor de teologia deste 2013 pela EBPS (Assembleia de Deus em Belo Horizonte). Graduado em Teologia pela PUC Minas (2013), pós-graduação em Gestão de Pessoas pela PUC Minas (2015), especialista em Docência em Letras e

O Reino de Deus não é uma democracia

O Reino de Deus é apresentado nas Escrituras como uma monarquia absoluta.

Fonte: Guiame, Daniel RamosAtualizado: quinta-feira, 21 de agosto de 2025 às 17:33
(Foto: Unsplash/Robert Koorenny)
(Foto: Unsplash/Robert Koorenny)

Este artigo busca analisar a afirmação "O Reino de Deus não é uma democracia" a partir de uma perspectiva teológico-exegética cristã. Partindo de uma definição mínima de democracia como governo do povo, por meio da representação e do voto majoritário, contrastamos este modelo político com a estrutura ontológica do Reino de Deus conforme apresentado no corpus neotestamentário. Argumenta-se que a natureza do Reino é fundamentalmente teocêntrica, caracterizada pela soberania absoluta de Deus (Cristocêntrica), pela adesão voluntária mas não autônoma dos súditos, e por um princípio de autoridade derivada e não delegada. A metodologia consiste em análise bibliográfica de textos bíblicos-chave e da literatura teológica relevante. Conclui-se que, embora o Reino valorize a comunhão (koinonia) e a responsabilidade humana, seu fundamento é monárquico-divino, operando por graça e revelação, e não por mecanismos de consenso ou vontade popular.

A interface entre teologia e política é um campo fértil e complexo, frequentemente marcado por apropriações e analogias nem sempre precisas. No discurso religioso contemporâneo, é comum encontrar tentativas de projetar valores democráticos modernos – como autonomia individual, igualitarismo absoluto e governança por consenso – sobre conceitos teológicos centrais. Uma das mais significativas é a projeção da democracia como modelo para o Reino de Deus.

Este artigo defende a tese de que tal projeção é hermeneuticamente inadequada. A afirmação "O Reino de Deus não é uma democracia" serve como um corretivo necessário, reafirmando a singularidade da governança divina. O objetivo é elucidar as estruturas fundamentais que diferenciam radicalmente o Reino de Deus de qualquer sistema político humano, inclusive a democracia. Para tanto, analisaremos três pilares: 1) a soberania monocrática de Deus; 2) o princípio de autoridade e submissão; e 3) o modo de ingresso e participação no Reino.

1. A Soberania Monocrática: O Governo do Único Kyrios

A democracia, em sua essência, dispersa o poder. A kratos (força, governo) reside no demos (povo). A vontade coletiva, expressa através de eleições e debates, é a fonte última da lei e da direção política.

Em contraste radical, o Reino de Deus é apresentado nas Escrituras como uma monarquia absoluta. A fonte de toda autoridade e o centro de toda soberania é uma Pessoa: Deus, revelado em Jesus Cristo. O anúncio de Jesus em Marcos 1.15 – "O tempo é chegado, e o Reino de Deus está próximo. Arrependei-vos e crede nas boas novas!" – é uma proclamação, não uma proposta sujeita a referendum. O verbo "está próximo" (engiken) indica a irrupção de uma realidade objetiva e soberana no mundo, independente da opinião ou desejo humanos.

A cristologia do Novo Testamento é inextricavelmente ligada à ideia de Reino. Jesus é o "Filho do Homem" que recebeu "autoridade, glória e o reino" de Deus (Daniel 7.13-14; cf. Mateus 28.18). A declaração de que "Jesus é o Senhor" (Kyrios Iesous) era uma afirmação profundamente política no mundo romano, onde o título Kyrios era reservado ao imperador. Afirmar Jesus como Kyrios era afirmar que a soberania última não reside no Senado ou no povo romano, mas no Cristo ressurreto (Filipenses 2.9-11).

Portanto, o fundamento do Reino não é a vontade popular, mas a vontade soberana do Rei. Como afirmou Jesus, "não seja feito o que eu quero, mas o que tu queres" (Marcos 14.36), estabelecendo a vontade do Pai como parâmetro absoluto. Neste sentido, o Reino é uma teocracia no sentido mais estrito e puro do termo.

2. O Princípio de Autoridade: Submissão versus Autonomia

Um segundo ponto de divergência crucial reside no conceito de autoridade. Nas democracias modernas, a autoridade é delegada de baixo para cima. O povo, detentor original do poder, concede autoridade temporária e limitada a seus representantes por meio do voto. Esta autoridade é sempre revogável e questionável.

No Reino de Deus, a autoridade é derivada de cima para baixo. Ela não é delegada pelo povo, mas conferida por Deus aos seus representantes. Os discípulos são enviados com autoridade (exousia) que lhes foi dada por Cristo (Mateus 10.1; Lucas 10.19), não por uma assembleia. A estrutura de liderança na Igreja primitiva, ainda que envolvendo a comunidade (Atos 6.3-5), era entendida como uma nomeação divina através do Espírito Santo (Atos 20.28).

A virtude cardinal em uma democracia é a autonomia e o exercício crítico do direito de escolha. No Reino, a virtude fundamental é a submissão (hypotassein) obedientemente à autoridade de Deus e aos seus delegados (Romanos 13.1-2; Hebreus 13.17). Esta submissão não é coerciva – Deus convida, não escraviza – mas é uma resposta necessária ao reconhecimento da soberania e da benevolência do Rei. A obediência de Cristo, mesmo até à morte (Filipenses 2.8), é o modelo paradigmático.

Aqui, a noção de "igualdade" também é distinta. Enquanto a democracia aspira a uma igualdade de status e poder político (uma pessoa, um voto), o Reino proclama uma igualdade de valor e dignidade perante Deus (Gálatas 3.28), mas dentro de uma estrutura hierárquica de autoridade e serviço. A hierarquia do Reino, no entanto, é invertida em relação aos padrões mundanos: "quem quiser ser o primeiro, seja o servo de todos" (Marcos 9.35).

3. Modo de Ingresso e Participação: Graça versus Mérito

O terceiro ponto de contraste diz respeito à cidadania. Em uma democracia, a cidadania é um direito de nascença ou conquistado por processos legais. Em geral, é um status inerente ao indivíduo dentro de um território.

A cidadania no Reino de Deus, no entanto, não é um direito, mas um dom. É concedida por graça (charis), mediante a fé (Efésios 2.8-9). Ninguém vota para entrar no Reino; é necessário "nascer de novo" (João 3.3), um ato soberano do Espírito Santo. A porta de entrada é estreita (Mateus 7.13-14) e o critério não é a popularidade, a riqueza ou o mérito pessoal, mas a aceitação do senhorio de Cristo.

Uma vez dentro do Reino, a participação do crente não se dá através de mecanismos de deliberação majoritária sobre os decretos divinos. A Lei do Reino já está estabelecida na pessoa e nos ensinamentos de Cristo. O papel do súdito é discernir e obedecer à vontade do Rei, já revelada, através do estudo das Escrituras, da oração e da guidance do Espírito Santo (João 16.13). A comunidade (a Igreja) é o espaço onde essa vontade é discernida e praticada em comunhão, mas não é o espaço onde ela é criada ou votada.

Conclusão

A afirmação "O Reino de Deus não é uma democracia" não é um juízo de valor sobre a democracia como sistema político humano, que possui seus méritos em contextos de sociedades plurais e falíveis. Em vez disso, é uma declaração teológica precisa sobre a natureza única do governo de Deus.

Conclui-se que o Reino é, em sua essência, uma monarquia teocêntrica absoluta, fundamentada na soberania incontestável de Deus Pai, exercida através de Cristo, o Kyrios. Sua estrutura de autoridade é vertical e derivada, demandando submissão voluntária e amorosa, e não autonomia crítica. Finalmente, a cidadania é um ato de graça soberana, recebida pela fé, e a participação se dá na obediência à vontade já revelada do Rei.

Confundir o Reino com uma democracia é minimizar a soberania de Deus, inflar a autonomia humana e secularizar um conceito escatológico central da fé cristã. Compreender esta distinção é crucial para uma eclesiologia e uma práxis cristãs que busquem refletir, não os ideais políticos de uma era, mas a realidade eterna e transformadora do governo de Deus.

Referências Bibliográficas

BÍBLIA SAGRADA. Almeida Revista e Atualizada. Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.

LADD, George Eldon. Teologia do Novo Testamento. Editora Hagnos, 2003.

WRIGHT, N. T. Simplesmente Cristão. Editora Ultimato, 2010.

SCHMITT, Carl. Teologia Política. Del Rey, 2006. (Para um contraponto filosófico secular).

OLSON, Roger. História da Teologia Cristã. Vida, 2001.

VOLF, Miroslav. Exclusão e Abraço: Uma reflexão teológica sobre identidade, alteridade e reconciliação. Editora Sinodal, 2020. (Para uma discussão sobre comunidade e alteridade no contexto do Reino).

AUGUSTINUS, Aurelius. A Cidade de Deus. Editora Vozes, 2012. (Fonte clássica para a distinção entre a cidade terrena e a cidade de Deus).

 

Daniel Santos Ramos (@profdanielramos) é professor, possui Licenciatura em Letras Português-Inglês (UNICV, 2024) e bacharelado em Teologia (PUC MINAS, 2013). Pós-graduado em Docência em Letras e Práticas Pedagógicas (FACULESTE, 2023). Mestre em Teologia (FAJE, 2015). Atualmente é colunista do Portal Guia-me, professor de Língua Portuguesa no Ensino de Jovens e Adultos (EJA) e Ensino Médio e de Língua Inglesa no Ensino Fundamental (ll) da SEE-MG, professor de Teologia no IETEB e professor de Português Instrumental do IE São Camilo. Escreveu dois livros, "Curso de Teologia: Vida com Propósito" (AMOB, 2023) e "Novo Curso de Teologia: Vida com Propósito (IETEB, 2025). Além de possuir mais de 20 anos de experiência na ministração da Palavra. É membro da Assembleia de Deus em Belo Horizonte (desde sempre), congrega no Templo Central.

* O conteúdo do texto acima é uma colaboração voluntária, de total responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a opinião do Portal Guiame.

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