“Sabendo, pois, Jesus todas as coisas que sobre ele haviam de vir, adiantou-se e perguntou-lhes: A quem buscais? Responderam-lhe: A Jesus, o Nazareno. Então, Jesus lhes disse: Sou eu. (...) Quando, pois, Jesus lhes disse: Sou eu, recuaram e caíram por terra.” João 18:4-6
Quando lemos esta bem conhecida passagem da Paixão do Senhor, somos levados à mesma indagação: O que teria feito seus captores recuarem e caírem diante de uma simples resposta? Teólogos, ao longo da história da Igreja, elaboraram longas digressões sobre essa passagem. Em geral, a maioria concorda que assim o foi por terem visto no Messias encarnado a glória de Deus, com o que concordo plenamente. Gostaria de acrescentar, porém, uma visão mais particular dentro do contexto de nossas raízes judaicas.
Essa não foi a primeira vez que o Senhor usou a expressão “Eu sou”. Jesus nunca apontou para si em público e disse abertamente: Eu sou o Messias. Isso porque, dentro do judaísmo de sua época, havia formas mais contundentes de fazê-lo, e isso se dava usando a Tanach (a Bíblia hebraica). Em vários outros sermões, Ele a emprega para se identificar com o Deus Todo-Poderoso. Por exemplo, no capítulo 8 de João, Yeshua usa três vezes a expressão “Eu sou” com esse propósito, porém, os presentes “não atinaram que lhes falava do Pai” (v.27). A qual passagem do Velho Testamento, no entanto, Ele se referia?
“Eu serei o que serei”
Quando Deus aparece a Moisés na sarça ardente e o envia para libertar Israel, ele pergunta seu nome. “Disse Deus a Moisés: Eu Sou o Que Sou. Disse mais: Assim dirás aos filhos de Israel: Eu Sou me enviou a vós outros.” (Êxodo 3:14). A revelação do real nome de Deus viria tempos mais tarde, quando Moisés já estaria peregrinando com o povo no Sinai, ocasião em que o Senhor lhe mostrou o tetragrama sagrado (יהוה) e impronunciável (Êxodo 34). Este nome somente poderia ser proferido pelo sumo sacerdote uma vez ao ano, ao adentrar o Santo dos Santos com o sacrifício de Yom Kippur.
Assim, ao se aproximar de seu povo no Egito, Moisés apresenta a famosa expressão “Eu sou” para se referir ao Deus de Abraão, Isaque e Jacó, aquele que os libertaria do jugo da servidão e os levaria à terra que mana leite e mel. No entanto, a expressão original usada por Deus em Êxodo 3:14 está no futuro: Ehiê asher Ehiê que literalmente é “Eu serei o que serei”. Algo mais profundo e revelador se encontra nessa frase.
O Deus de Israel não somente redimirá seu povo da opressão de faraó e de uma vida de escravidão, mas o conduzirá por quarenta anos em um deserto hostil e mortal, provendo todas as suas necessidades. Ele será o libertador de Israel do exército mais poderoso do mundo da época; será o operador de milagres; será o provedor do maná e da água; será o legislador e juiz; será o médico que cura; será o poderoso guerreiro contra seus inimigos no deserto; enfim, para toda e qualquer necessidade, Ele seria a resposta para supri-la. Esse é o significado de “Eu serei o que serei”.
O Grande Eu Sou
A expressão “Eu sou” está em toda parte da Torá e dos profetas como em Deuteronômio 32:39 e Isaías 43:10, por exemplo. Não é de admirar que Yeshua tenha usado a expressão “Eu Sou” em vários sermões para demonstrar que Ele e o Pai eram um (Jo. 10:30). Isso bastava para mostrar aos judeus que bem a conheciam da Tanach que Ele se fazia igual a Deus (Jo. 5:18), embora nunca tenha usurpado o ser igual a Deus (Fp.2:6).
Entretanto, se Ele usou essa mesma expressão em outros momentos de seu ministério, sem despertar a mesma reação de seus captores na noite em que foi preso, a indagação feita no início se torna ainda mais enfática. Por que recuaram e caíram? A hipótese de teólogos notáveis ao longo dos séculos faz sentido: eles teriam visto a glória de Deus em seu Filho ao ouvirem de sua boca que Ele mesmo era Deus, o que lhes trouxe um temor momentâneo. O mesmo se deu com Saulo e seus acompanhantes no caminho de Damasco, ao verem uma luz do céu que excedia o esplendor do sol. Caíram diante da glória de Deus (Atos 26:14).
Outra possibilidade, supostamente omitida do original, pode ter sido que Ele tenha pronunciado o tetragrama sagrado, precedido ou não do “Eu sou”. Ambas as expressões apontam para o mesmo Deus onipotente, porém, o tetragrama somente podia ser pronunciado pelo sumo sacerdote e uma vez ao ano. A pronúncia do nome sagrado e proibido pelo único homem puro e santo que personificava toda a divindade teria sido por si só a manifestação da glória do Pai, o que teria causado de igual modo certo alvoroço e medo, acarretando o recuo e a queda de seus captores, todos eles judeus. Esse evento foi o cumprimento literal — como ocorre com praticamente todas as profecias messiânicas — do Salmo 27:2: “Quando os malvados, meus adversários e meus inimigos, avançam contra mim, para comerem as minhas carnes, tropeçam e caem”.
A quem buscais? Ele continua a fazer a mesma pergunta hoje. E, se o buscarmos, Ele se manifestará com a mesma glória do unigênito do Pai. Ele continua sendo “O Grande Eu Sou” ou será aquilo que precisarmos que Ele seja em todos os momentos de nossa jornada no deserto dessa vida, bons ou maus, de risos ou de lágrimas.
E quando se manifestar em sua volta, reconhecendo ou não sua majestade, assim como no Getsêmani, nenhum homem ficará de pé diante dele. Pois ao seu nome se dobrará todo joelho dos que estão nos céus, na Terra e debaixo da Terra, e toda língua confessará que Yeshua, o Messias, é o Senhor, para glória de Deus Pai (Isaías 45:23 e Filipenses 2:10-11).
Getúlio Cidade é escritor, tradutor e hebraísta, autor do livro A Oliveira Natural: As Raízes Judaicas do Cristianismo e do blog www.aoliveiranatural.com.br
* O conteúdo do texto acima é de total responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a opinião do Portal Guiame.
Leia o artigo anterior: A Grande Tribulação e as Dores de Parto do Messias