Uma reportagem exibida em 26 de setembro pela emissora estatal France 2 sobre os evangélicos provocou forte reação de organizações e líderes cristãos, que acusam o programa de promover estigmatização e distorcer a fé.
O documentário de 52 minutos, intitulado “Evangélicos: um sucesso nem tão angelical?”, apresenta uma abordagem crítica sobre o crescimento e a atuação das igrejas evangélicas na França.
Em uma extensa reportagem no horário nobre, a emissora pública francesa acusou os evangélicos de usarem “técnicas de controle”, “marketing para converter pessoas em massa”, “promessas de cura divina” e até doutrinas consideradas homofóbicas.
Segundo o programa Envoyé Spécial (Enviado Especial), o objetivo foi “revelar o que acontece nos bastidores” das igrejas evangélicas do país.
De acordo com o site Franceinfo, os evangélicos pregam o “cristianismo rigoroso” numa tentativa de imitar as megaigrejas americanas.
Retrato crítico e crescimento evangélico
Partindo de um culto de batismo na Igreja Martin Luther King (MLK), uma das maiores igrejas evangélicas da França, localizada em Créteil, ao sul de Paris, uma equipe de sete jornalistas traça um retrato crítico do movimento evangélico no país.
O documentário apresenta as igrejas como “ultraconservadoras”, e as acusa de promover doutrinas homofóbicas e práticas controversas, como as chamadas “terapias de conversão”.
Em 2022, a França contava com cerca de 745 mil evangélicos. Estimativas mais recentes indicam que esse número já ultrapassa 1 milhão.
A reportagem da emissora pública francesa associa o declínio da frequência à Igreja Católica ao crescimento das igrejas evangélicas e adota uma postura fortemente crítica, acusando essas comunidades de utilizar “técnicas” para “atrair” e “controlar” novos convertidos.
Segundo o relatório, um dos fatores que explicam o crescimento das igrejas evangélicas seria a realização de “shows verdadeiramente espetaculares criados pelo pastor”, que muitas vezes assume o papel de “treinador pessoal” diante da congregação.
Batismo evangélico na França, mostrado em reportagem da France 2. (Captura de tela/Franceinfo)
A primeira parte do documentário acompanha uma nova convertida, mostrando sua rotina de oração e participação em um culto após viajar da Bélgica. O jornalista questiona suas crenças sobre possessão demoníaca e classifica como “fundamentalista” a revista cristã que ela lê, por se posicionar contra o aborto.
Um dos entrevistados é um influenciador cristão com mais de 700 mil seguidores no TikTok. De acordo com a reportagem, ele compartilha conteúdos classificados como “cristianismo radical” nas redes sociais, nos quais afirma que muçulmanos e casais que não são casados estariam condenados ao inferno.
A reportagem faz uma crítica ao comportamento de um fisioterapeuta particular que faz orações pela recuperação de seus pacientes. Também afirma que, para os evangélicos, "fenômenos paranormais são uma presença constante".
Em entrevista com um ex-evangélico que preferiu não se identificar, o programa Envoyé Spécial relata práticas descritas como “orações de autoflagelação” realizadas como forma de penitência por pecados, incluindo a homossexualidade.
O entrevistado afirma que seu psicólogo o aconselhou a “abandonar a seita para não acabar em um hospital psiquiátrico”.
Por fim, utilizando uma câmera escondida, uma repórter se apresenta como lésbica interessada em conhecer o Evangelho e solicita uma conversa privada com um pastor da igreja associada a Martin Luther King.
Reportagem da France 2 utiliza câmera escondida durante aconselhamento pastoral, sem o conhecimento do pastor. (Captura de tela/Franceinfo)
A única declaração considerada polêmica registrada pela câmera é a orientação do pastor para que ela leve uma vida celibatária, valorizando o relacionamento com Deus e com outros amigos cristãos.
No minuto final, o programa aborda a chamada “pressão financeira” enfrentada por frequentadores de igrejas evangélicas.
A reportagem encerra destacando o trabalho da Miviludes, órgão estatal francês responsável por monitorar e combater possíveis “desvios de caráter sectário” no país.
‘Generalizações preconceituosas’
Após a exibição do programa, as duas principais entidades representativas do protestantismo na França decidiram solicitar esclarecimentos à France Télévisions (empresa pública de televisão), classificando a abordagem jornalística como “estigmatizante” e “infundada”.
O presidente da Federação Protestante Francesa (FPF), Christian Krieger, fez uma reunião de urgência com o secretário-geral da France Télévisions na sede do grupo de mídia.
No dia seguinte, manifestou publicamente sua “profunda preocupação com os métodos jornalísticos questionáveis”.
Segundo declarações de Krieger publicadas pela revista Réforme, tanto a Igreja MLK, que integra FPF, quanto outras comunidades evangélicas, compartilham um “compromisso com o diálogo, a abertura e a participação ativa na vida social e eclesial”.
A FPF disse que “lamenta o fato de este relatório ter optado por apresentar as igrejas evangélicas pelo prisma redutor dos excessos de alguns, sem nuances ou expertise real. Essa abordagem truncada obscurece a riqueza e a vitalidade de uma igreja evangélica”.
E acrescentou: “A investigação jornalística é legítima quando revela a verdade. Mas não pode pretender fazê-lo à custa de generalizações preconceituosas sobre indivíduos ou instituições”.
“Um ataque aos evangélicos e cristãos como um todo”
O Conselho Nacional dos Evangélicos da França (CNEF), representante da Aliança Evangélica Europeia e Mundial, também manifestou seu “choque” diante do conteúdo jornalístico, classificando-o como “um ataque direto ao protestantismo evangélico e à fé cristã como um todo”.
Culto evangélico na França, mostrado em reportagem da France 2. (Captura de tela/Franceinfo)
Em comunicado assinado por seu presidente, Erwan Cloarec, e pelos demais membros do conselho de administração, o CNEF afirma que “comparar o evangelicalismo a um movimento ‘ultraconservador’ e homofóbico, e retratá-lo de forma tendenciosa, representa uma estigmatização dos 1,2 milhão de protestantes evangélicos na França e, de maneira mais ampla, de todos os cristãos franceses”.
A CNEF, que já desenvolveu iniciativas para combater abusos sexuais e outras formas de violência nas igrejas, além de colaborar com a Miviludes na identificação de práticas ilegais no meio evangélico francês, expressou sua decepção com os “métodos jornalísticos questionáveis” utilizados.
Entre as críticas, destacou o uso de perguntas tendenciosas, edições que sugerem culpabilidade sem consulta a especialistas, simplificações excessivas e generalizações.
“Esses métodos criam suspeitas e alimentam preconceitos infundados; eles fornecem terreno fértil para discriminação e estigmatização”, afirmam.
Diante de todos esses pontos, a CNEF entrou em contato com o ministro do Interior da França e está preparando uma denúncia formal à ARCOM, órgão regulador do setor audiovisual no país.
Secularismo agressivo e liberdade religiosa
Após a exibição do programa, diversos pastores e missionários franceses também manifestaram sua decepção com a abordagem adotada pela televisão pública.
Alguns, no entanto, acrescentaram uma perspectiva mais crítica, reconhecendo que certas igrejas podem ensinar doutrinas que extrapolam os limites do que é tradicionalmente entendido como fé evangélica.
A França é um dos países europeus com uma tradição estatal fortemente marcada pela laicidade.
Os evangélicos, que têm registrado um crescimento expressivo no número de locais de culto nos últimos anos, alegam que autoridades políticas e algumas plataformas de mídia frequentemente ultrapassam certos limites, o que, segundo eles, compromete a liberdade religiosa dos cidadãos.
Nos últimos anos, iniciativas promovidas por comunidades evangélicas têm reforçado a importância dos direitos fundamentais das pessoas que professam uma fé religiosa, especialmente em ambientes como escolas e locais de trabalho.