Poder e Misericórdia

Poder e Misericórdia

Fonte: Atualizado: sábado, 29 de março de 2014 às 03:32

Ultimamente venho acompanhando um querido irmão que me é muito próximo, em um processo de cura interior (para proteger sua identidade altero alguns dados). Nesse processo, Deus me deu a oportunidade de visitar e conhecer várias igrejas e comunidades na região de São Paulo. Essa peregrinação foi inicialmente motivada por uma experiência com o Espírito Santo, e por isso a grande maioria das igrejas que visitei são avivadas, carismáticas. Pela situação desse irmão, procuramos freqüentemente a ministração do pastor ou de algum líder após o culto, buscando alguma palavra do Senhor, uma unção do Espírito, uma oração ou o próprio batismo do Espírito Santo, sempre numa tentativa de pôr fim ao sofrimento daquele irmão, que já se prolongava por alguns meses.

O contato com tantos cultos em igrejas diferentes e com tantos servos do Senhor trouxe experiências diversas. Algumas, graças a Deus, muito edificantes. Outras, indiferentes; e ainda outras, em especial durante os cultos - falo como as senti -, destrutivas e que só pioraram a situação, e é desse aprendizado que pretendo compartilhar aqui.

O que mais me impressionou é que parece existir uma oposição entre poder e misericórdia. A oposição não pode ser inerente, pois Deus claramente deseja que exercitemos ambos, mas... como é difícil encontrar quem saiba lidar com o poder de Deus sem perder a misericórdia! O Senhor diz que "não esmagará a cana quebrada", e que como Pastor Ele "cuidará da ovelha ferida".

Mas nos cultos, muitos líderes infelizmente agem assim: "Tudo é possível ao que crê", gritam nos microfones. "Se você crê que pode ser curado você será curado agora, neste lugar. Se você quer ser batizado pelo Espírito, será agora. Se você quer ser libertado, seja agora".  No máximo, se houver um pouquinho de misericórdia, quando a pessoa é perguntada se a dor já passou e tem a coragem de responder que não, eles dirão: "vamos orar por você ao final do culto". Mas não pode passar daquela noite. Parece que os pastores não agüentam a situação de um problema não ser resolvido, pela palavra ou oração deles, ali e naquele momento. É um cristianismo de "vitórias" que parece não querer saber de conviver com dificuldades, com demoras, com dores, com angústias, enfim, com o que para eles seriam "derrotas" (provavelmente para essa frase alguns irmãos queridos diriam: "está amarrado em nome de Jesus").

E o que fazer com os irmãos e irmãs que não saem curados? Jogar a culpa neles (pode até às vezes ser o caso, mas assim automaticamente?)? Várias vezes assisti àquele irmão sair da reunião em prantos, porque sua angústia não fora removida; não lhe faltava a fé para ser liberto de seu problema; seu desejo por uma atuação do Espírito era sincero; sua disposição em confessar os pecados que Deus viesse a revelar também (aliás, esse é outro "recurso" utilizado). Com o tempo, finalmente entendi que deveria "proteger" esse irmão de cultos assim, o que é uma contradição enorme. Era como se o Deus que ele estava buscando só lhe fizesse mal, ou fosse sádico, querendo vê-lo sofrer, enquanto todos os demais, liderados pelo pregador da noite, estavam cantando e falando de vitórias nas batalhas ("como vinagre sobre as feridas, assim é o que entoa canções junto ao coração aflito" - Pv 25.20).

Felizmente houve uma ou duas exceções entre todos aqueles servos do Senhor que procuramos (que isso fique bem claro: considero-os todos como irmãos, servos do Senhor). Uma missionária teve a coragem de destoar dos demais, e disse: "tenho presenciado operações de cura milagrosa e outras intervenções sobrenaturais de Deus; mas quando a questão é de cura da alma, de feridas interiores, psicológicas e emocionais, o que mais tenho visto é Deus atuar através de processos, geralmente longos, que às vezes continuam por anos e anos".  

Enfim uma palavra que não colocava a "culpa" naquele meu irmão sofredor; não estava faltando a fé para ocorrer a cura interior, nem estava faltando alguma confissão de pecados, ou a ministração de algum obreiro mais ungido. A vontade de Deus, depois de ter acontecido a ministração espiritual (libertando de opressões que havia), e de ter havido uma dramática reaproximação com o Senhor, com a intensificação de leitura bíblica, participação em cultos, oração, compartilhar com irmãos, era de que esse irmão, por algum motivo que só o Senhor conhece, deveria passar por um longo período de "reaprender a viver".

Esse longo período ainda está em sua primeira fase, e confesso que os altos e baixos emocionais fazem a situação realmente difícil de conciliar com a idéia de um Deus Todo-Poderoso e vitorioso. O progresso emocional dele se dá de forma bem irregular, com melhoras e pioras, assistido por remédios psiquiátricos, dos quais a princípio julgávamos que o Senhor, quando trouxe uma promessa de cura - e Ele efetivamente o fez - já o tivesse libertado. Esse irmão também tem necessitado de consolo espiritual, de leitura da Bíblia, de muita intercessão, de psicoterapia, enfim, de vários esforços que devem se prolongar talvez por muitos meses, ou mesmo anos.

Eu arriscaria dizer que muitos pastores, profetas, missionários/as e evangelistas hoje em dia não agüentam a idéia de um esforço tão demorado. Eu realmente não os condeno; quem está acostumado a conviver com manifestações sobrenaturais do poder de Deus a cada dia (para mim elas não tem sido tão freqüentes) parece ter dificuldades em aceitar que para algumas pessoas o caminho de Deus não seja a libertação imediata de todas as suas angústias. Escrevo isso com temor e tremor, me perguntando e perguntando a Deus se essa minha compreensão não estaria errada, e se na verdade Deus não queria ter libertado esse irmão instantaneamente e ele (ou eu, que estava com ele) o impediu. Caiamos nas mãos do Senhor, pois muitas são as suas misericórdias!

O que me parece, porém, é que a situação desse meu irmão não é única, nem muito rara, e que muitas ovelhas têm-se atribulado em sofrimentos cada vez maiores porque seus pastores ou irmãos não têm sabido cuidar de uma "pata quebrada" pelo tempo que isso necessita, enfaixando, medicando, dando o alimento, carregando. Só admitem testemunhos de "vitórias", só privilegiam os milagres e sinais de poder instantâneos, na sua imensa maioria sobre problemas físicos, e tudo o que não se concretiza dessa forma é visto como falta de fé ou de santidade da pessoa sofredora. Agindo dessa forma, esses ministros e irmãos estão repetindo o que disseram os amigos de Jó, que mesmo não sendo perfeito, não estava sofrendo por culpa direta sua.

Irmãos, pastores como eu, ou líderes em geral: na hora da ministração de curas não se esqueçam da cana que já está quebrada, não a esmaguem com mais exigências! Até nas curas físicas, quando o Senhor curou o homem que jazia havia 38 anos junto ao Tanque de Betesda, havia mais cinco pátios cobertos cheios de doentes, que Ele não curou; e Ele nem perguntou àquele homem se este tinha fé em Seu poder...

O Senhor sabia usar de poder sem esquecer da misericórdia. Uma das mensagens nesse sentido que ouvi falava da cura por Jesus de um menino epiléptico (Marcos 9:14-29) em que os discípulos não puderam expulsar o demônio, enquanto Jesus estava no monte da Transfiguração. O pregador retratou fielmente a indignação de Jesus com a limitação e a incredulidade daquela geração; retratou fielmente a correção de Jesus para o pai do menino, que dissera: "se podes fazer alguma coisa, tem compaixão de nós e ajuda-nos". Ao que Jesus respondeu: "se podes! Tudo é possível ao que crê". Mas aí o pregador não foi adiante no texto, e ficou "martelando" a máxima: "tudo é possível ao que crê" (que é verdadeira, claro), e ficou nisso. Sendo que no versículo seguinte Marcos retrata a angústia do pai do menino, que clamou: "Creio - ajuda a Minha incredulidade!". O pregador não abriu espaço para a compaixão de Jesus para com a dificuldade daquele pai em crer (e para o fato verdadeiro de que Jesus efetuou a cura mesmo assim, também por causa da multidão).

E mesmo assim, esses casos tratavam de manifestações e curas físicas; não há relato de Jesus operando milagrosa e instantaneamente com problemas emocionais, psicológicos (embora isso claramente seja possível). Por isso, nos lembremos sempre de aliar misericórdia, toda vez que lidarmos com o poder de Deus.

Karl Heinz Kepler é pastor, psicólogo clínico, editor de revista e atual presidente do CPPC (Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos - www.cppc.org.br)

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