Autocomiseração versus autocompaixão

As autocomiserações são tóxicas porque corroem a alma tecendo um desgosto pela vida.

Fonte: Guiame, Clarice EbertAtualizado: sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020 às 17:16
(Foto: Shutterstock)
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A forma de acolher e processar o fel, encontrado na interação da própria dor, difere significativamente, se adotamos a autocomiseração ou a autocompaixão.

É fato que, de um jeito ou de outro, nos ocupamos com nossas dores, sejam elas grandes ou pequenas, reais ou imaginárias. Situações adversas podem nos visitar em algum momento da vida. Elas podem se constituir em:

  • Um desamor que desalma.
  • Um desafeto que desumaniza.
  • Um assédio que ofende.
  • Um abuso que agride.
  • Uma ofensa que magoa.
  • Uma dependência que aprisiona.
  • Uma subserviência que escraviza.
  • Uma exposição que humilha.
  • Uma traição que desola.
  • Uma desonra que desgraça.
  • Um julgamento que condena.
  • Uma arrogância que aliena.
  • Um autoritarismo que intimida.
  • Uma decepção que entristece.
  • Uma expectativa que frustra.
  • Um desdém que desvaloriza.
  • Uma desigualdade que empobrece.
  • Um desrespeito que desmoraliza.
  • Um desamparo que abandona.
  • Uma negligência que descuida.
  • Uma mentira que desabona.
  • Uma calúnia que difama.
  • Uma fofoca que macula.
  • Uma inveja que devasta.
  • Uma perversão que corrompe.
  • Um terror que aflige.
  • Uma injustiça que defrauda.
  • Um dano que lesiona.
  • Uma hostilidade que afugenta.
  • Uma perda que prejudica.
  • Um roubo que solapa.
  • Um luto que consterna.
  • A morte que destrói.
  • Um fracasso que desqualifica.
  • Um materialismo que coisifica.
  • Uma ausência que distancia.
  • Uma rejeição que desabriga.
  • Um repúdio que descarta.
  • Uma inflexibilidade que rotula.
  • Uma intolerância que cega.
  • Um desprezo que repudia.
  • Uma incompreensão que ignora.
  • Uma diferença que incomoda.
  • Uma indiferença que dessensibiliza.
  • Uma exclusão que elimina.
  • Um preconceito que discrimina.
  • Um desinteresse que descarta.
  • Uma deficiência que confina.
  • Uma doença que limita.

As situações variadas e adversas da vida podem, por um lado, instaurar angústias, num sentimento de corrosão da alma e do sentido da vida. Ou, por outro lado, podem servir de húmus, como num afofar da terra para que, ficando boa, forte, saudável e nutritiva, possa receber sementes que brotem em nova manifestação de vida. Boa parte da experiência nessas situações depende de como mergulhamos em nossas dores, se pela autocomiseração ou pela autocompaixão.

A AUTOCOMISERAÇÃO

A autocomiseração é um mergulho nas dores pessoais, num contínuo mimo próprio, narcísico, em que egoicamente vai-se assumindo o lugar do injustiçado ou do inadequado.

O autocomiserado passa, narcisicamente, a se paparicar, bajular, desculpar, desresponsabilizar, ou então, a se punir severamente com críticas e culpabilizações. Na autocomiseração, quando assumimos que o lugar da culpa é do lado de fora do “eu”, achamos que o socorro também deveria vir dali. Assim ficamos a esperar e a expectar por algo que venha de fora e que nos salve. No entanto, o tempo poderá passar e o socorro talvez não venha e, igualmente, o perdão também poderá não vir. Em algumas situações, nem mesmo importa o quanto se rasteje esperançosamente pela absolvição, pois é possível que o “outro algoz” não tenha a capacidade de manifestar uma ressonância espiritual para pedir perdão ou nem mesmo para perdoar algo que lhe foi feito. Outras vezes pode ser o “eu algoz”, sem essa capacidade e que assume o papel do vingador que não absolve, nem o outro, nem a si próprio. Na condição de autocomiserado, podemos seguir nos punindo por expectativas não alcançadas ou por erros cometidos e considerados irreparáveis.

Na autocomiseração a pena de si cresce numa nutrição de sentimentos tóxicos, que contaminam e envenenam todo o ser, afetando a nossa capacidade de amar, trabalhar e transcender, ao mesmo tempo em que embaça a nossa visão de mundo, do outro, de nós mesmos e de Deus.

As autocomiserações são tóxicas porque corroem a alma tecendo um desgosto pela vida.

Cada vez mais, num sentimento de injustiçado, o autocomiserado formata uma postura interna de vitimização de tudo e todos. Circula pela vida legitimando sua cobrança do não recebido outrora. Seja dos pais, irmãos, cônjuge, filhos, amigos, colegas e de todos. Cobra nos relacionamentos atuais as lacunas deixadas pelos anteriores. O injustiçado transforma-se numa insaciável sanguessuga que carrega como lema principal “me dá, me dá, me dá”.

O autocomiserado, numa autoestima fragilizada, nunca terá o suficiente de amor, atenção e reconhecimento. E assim, autocomiseradamente segue refém das mazelas sofridas ao longo da vida. A autocomiseração vai, sorrateiramente, se alojando como solda, que integra as dores à alma, fazendo com que façam parte de quem se é e de como se posiciona no mundo. Gradativamente esgotam-se as energias e imperam as queixas: “coitadinho de mim, culpado ou vítima que sou, sem saída, sem ajuda, sem compreensão”. Virar o jogo e seguir em frente? Parece impossível.

A autocomiseração estabelece uma miséria que zera a ação para a vida.

O autocomiserado se aprofunda numa vida auto boicotada, desperdiçada, sem graça, sem alegrias e sem sentido de ser. Dessa forma, autocomiserar é se perder, é afundar na areia movediça de uma alma machucada na qual se sufoca todo potencial para se articular os necessários processos de mudança. O autocomiserado apenas permanece estagnado, narcisicamente, massageando o próprio umbigo machucado e injustiçado, acarinhando suas dores, sem se dar conta de que vai perdendo a vida numa espera em que nada acontece, nem se resolve ou nunca muda. Autocomiserando mergulha em um processo que faz aumentar as frustrações, raivas, irritações, desejos de vingança e, como resultado principal, mergulha ainda mais em autocomiseração. No seu extremo patológico, a autocomiseração pode apresentar sintomas em que sofrer gera até mesmo certo “prazer”. Sentar-se, lamuriar-se, culpar-se, ou culpar alguém, se torna um vício. É quando a expressão “curtir a fossa” se torna a metáfora principal da vida.

A AUTOCOMPAIXÃO

Na autocompaixão o processo é outro. No acolhimento da própria dor, diferente da autocomiseração narcísica que gira em torno do próprio umbigo e ali estagna numa sofreguidão sem fim, a autocompaixão mobiliza um processo de cura. É quando visitamos nossas dores não para massageá-las narcisicamente, mas para regá-las com a graça que salva e liberta. Nesse processo, reconhecer, aceitar e acolher a dor, não é o mesmo que bajular a vítima, como na autocomiseração que prende e boicota a vida.

A autocompaixão é um mecanismo em que direcionamos para nós a compaixão, a misericórdia, a graça, o amor e o perdão, para gerar nova vida.

Segundo a doutora Kristin Neff (1), para nos sentirmos bem e não cairmos na armadilha do narcisismo, e da auto reprovação, é necessário desenvolver a autocompaixão. Torna-se um recurso eficaz para quando estivermos no topo do mundo ou no fundo do poço. Para a autora, na medida em que nos envolvemos com um sentido de bondade, conectividade e equilíbrio emocional, desenvolvemos uma habilidade para nos sentirmos bem, não porque somos especiais ou superdotados, mas porque carregamos em nós uma humanidade intrínseca, carente de respeito e dignidade.

A necessidade de respeito e dignidade está correlacionada ao fato de carregarmos em nós a imagem e semelhança do Criador. Por isso podemos reconhecer o nosso interior também como uma espécie de solo sagrado que não merece ser desrespeitado e envenenado por ninguém, nem mesmo por nós.

A doutora Kristin enfatiza que para nos darmos compaixão, é requisito básico reconhecer que estamos sofrendo. Isso porque, simplesmente, não é possível curar o que não sentimos. Portanto, negar o sofrimento, ou simplesmente "deixar pra lá", ou "colocar uma pedra em cima", pode não ser um bom caminho. Seria andar na contramão da dissipação dos sofrimentos.

A autocompaixão é uma compreensão de nosso estado emocional que sintoniza com um desejo de aliviar ou abrandar o sofrimento. Na restauração da esperança de que é possível dar a volta por cima, se instala um espírito emotivo positivo. Ao invés de nos punirmos com severas autocríticas, podemos nos envolver com abraços simbólicos repletos de gentileza e misericórdia. É se tratar como se trata de um amigo que sofre. Dessa forma, é possível diagnosticar uma injustiça sofrida e aplicar o bálsamo certo para sarar a ferida.

A autocompaixão facilita a percepção das situações sofridas, de forma mais clara, sem transformá-la num drama exagerado para além do seu tamanho e significado. Meditar auto compassivamente faz com que nos percebamos, não mais como vítimas estagnadas, mas responsáveis na mobilização de recursos para o enfrentamento do que faz sofrer. Na autocompaixão assumimos a responsabilidade de tirar os entulhos que intoxicam a alma. Olhamos para tudo aquilo, reconhecemos a dor e a tratamos com um bálsamo que cura.

A autocompaixão nos renova para novas possibilidades e experiências. Ao invés de envenenar a alma com nossas mágoas, levamos a ela o bálsamo da graça, do amor, do perdão e da absolvição.

E se houver um “outro algoz”? Podemos deixá-lo ir, demiti-lo de seu posto, deixar de carregar a bagagem do malfeitor e do mal feito a nós. Aquilo não nos pertence mais. E se houver restado um “eu algoz”? Estaremos livres para substituir o inquilino por um mais gracioso e benevolente.

Na autocompaixão nos vemos alvos do amor e da graça e não mais da subserviência ao sofrido. Com o recurso da autocompaixão podemos desapegar da expectativa de que um algoz de outrora, em algum dia, venha arrependido reparar o dano feito e nos sarar a ferida. Da mesma forma podemos desapegar da expectativa de que alguém ferido por nós, após nos rastejarmos por anos clamando misericórdia e perdão, enfim nos perdoe e absolva. Seguimos sem mais perder a vida esperando por isso.

Pela autocompaixão percebemos a importância de sermos responsáveis no processo de superação das dores. Responsabilizar-se pelo processo pode significar uma conexão consigo numa redescoberta de quem somos, de nosso potencial e de nosso lugar no mundo. É quando conectamos a parte saudável, que carrega a imagem e semelhança do Criador, com o potencial divino para a experiência da liberdade e felicidade.

Pela compaixão compreende-se a necessidade da graça, que é divina. A partir de uma contemplação da fonte da graça maior, o autocompassivo aprende a olhar-se com os olhos de quem sabe amar e perdoar.

A autocompaixão envolve aprender a olhar-se com os olhos de Cristo, cuja compaixão aguça o seu olhar cada vez que encontra alguém que sofre. Ele, o maior compassivo de todos, nos ensina a termos compaixão. Ele nos ensina uma compaixão que renova a fé, a esperança, a paz, a alegria e restaura a alma para a vida. Somente por esse olhar é possível absolver, curar, salvar e libertar. O amor e o perdão são remédios para as dores mais profundas. Quando somos banhados pela graça compassiva, renascem novas formas de visualizar e ressignificar a dor sentida.

Meditar autocompassivamente é colocar uma atenção plena em pensamentos de bondade em relação a si mesmo, o que também potencializa nossa capacidade de sermos benevolentes com nosso próximo.

“Ao retornarmos para nós mesmos, ao contemplarmos a compaixão de Jesus e compreendermos que ‘se refere a mim’, posicionando-nos debaixo da misericórdia, ficamos prontos para sermos classificados como ‘bem-aventurados’. Ao insistir conosco que cuidemos de forma compassiva das pessoas, Jesus nos convida a ter compaixão de nós também. A medida da nossa compaixão pelos outros é proporcional à nossa capacidade de autoaceitação e autoafirmação. Quando a compaixão de Cristo é interiorizada e é apropriada pelo eu, ocorre aquela transformação radical que nos leva a viver também pelo outro. Na contramão daquelas situações impossíveis (...), o caminho do cuidado compassivo pelas pessoas traz cura para nós mesmos, e o cuidado compassivo com nós mesmos traz cura para as pessoas.” (Manning, 2008, p. 25) (2)

Pela compaixão reconhecemos as nossas imperfeições e as dos outros com mais generosidade, pois descobrimos e aceitamos que a condição humana é imperfeita. Aprendemos a lidar melhor quando não atendemos às nossas expectativas e quando falhamos. Da mesma forma aprendemos a olhar para as expectativas e erros dos outros. E assim, ao sofrermos, sintonizamos e empatizamos com os outros, sem nos isolarmos num mundo enclausurado à parte. Conscientizamo-nos de que não somos melhores e nem piores que ninguém. O contato com as nossas dores, pela autocompaixão, nos permite compreender melhor as dores de outros.

No reconhecimento e cuidado saudável do próprio sofrimento, nos habilitamos para reconhecer e cuidar melhor do sofrimento alheio.

Tendo em vista que a vida é uma peregrinação, extrair das vivências difíceis os aprendizados necessários, e a partir disso evoluirmos em sabedoria e graça, pode significar que tenhamos visitado os pontos relevantes de nossa trajetória. Caso contrário teremos apenas sofrido e desperdiçado a vida.

Por Clarice Ebert, Psicóloga (CRP0814038), Terapeuta Familiar, Mestre em Teologia, Professora, Palestrante, Escritora. Sócia do Instituto Phileo de Psicologia, onde atua como profissional da psicologia em atendimentos presenciais e online (individual, de casal e de família). Coordenadora e palestrante, em parceria com seu marido, do Ministério Vida Melhor (um ministério de cursos e palestras). Membro e docente de EIRENE do Brasil.

* O conteúdo do texto acima é uma colaboração voluntária, de total responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a opinião do Portal Guiame.

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Referências

  1. Neff, K. Self-Compassion. Editor: Hodder & Stoughton General Division, 2011.
  2. Manning, B. Meditações para Maltrapilhos. São Paulo: Mundo Cristão, 2008.

Leia o artigo anterior: O IDEAL nunca está no REAL!

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