Um suicídio ao lado

Não se pode fechar os olhos como se não fosse com a gente. É preciso quebrar o tabu e conversar sobre o assunto.

Fonte: Guiame, Clarice EbertAtualizado: sexta-feira, 25 de setembro de 2020 às 17:22
(Foto: iStock)
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Não dá para negar, nem mesmo deixar de abordar o tema do suicídio, visto que está muito próximo, bem ao lado. A Organização Mundial da Saúde apresenta dados alarmantes, revelando que ocorre no mundo, um suicídio a cada quarenta segundos, dando um total aproximado de oitocentas mil mortes por ano. Não se pode fechar os olhos como se não fosse com a gente. É preciso quebrar o tabu e conversar sobre o assunto.

Para se tocar no assunto relativo ao suicídio é necessário ter sensibilidade, ética e particularidade. A sensibilidade favorece posturas de respeito, que se mostrarão por ausência de julgamentos e críticas. A ética postula um cuidado permeado de sinergia, benevolência, acolhimento e reconhecimento da dor latente, presente e real, em que se expressa uma amorosidade solidária. A particularidade permite tratar cada situação de forma singular, levando em consideração as peculiaridades envolvidas.

Um suicídio não é fácil de decifrar, pois quem poderia fornecer as melhores elucidações, já não está mais presente para contar da dimensão da dor que conduziu a esse trágico desfecho. As respostas ao por que desse ato podem ser muitas. Não há uma resposta única e simples, e não é possível explicar numa relação de causa e efeito. O suicídio é multifatorial e complexo.

Para além do dito comum, de que quem se suicida não quer se matar, mas quer matar a dor insuportável, poderia se dizer ainda que alguém que se suicida pode também querer matar a vida na configuração em que está, ou querer matar a pessoa na qual se tornou.

Apesar da depressão ser condição favorável para o suicídio, e ser até mesmo o carro chefe, nem sempre é ela a protagonista desse ato. Pode haver outros fatores que esgotam a vida, o sentido e a desesperança. Muitos desses fatores podem se encontrar fortalecidos, não somente por traumas do passado, mas também pelas contingências contemporâneas, que insistem em atualizar um modo de vida desgastado e mesmo insuportável.

Um suicídio tende a apresentar alguns sinais que podem ser identificados por alguém próximo ou por algum profissional qualificado. Dentre esses sinais podem ser listados: falta de interesse pelo próprio bem-estar; queda da produtividade nos estudos e no trabalho; mudança nos padrões alimentares e de sono; alterações no comportamento sexual; evidências ou agravamento de problemas de conduta ou manifestações verbais; preocupações em fazer repasses de vida; preocupação com a própria morte; demonstração de falta de esperança; expressão de ideias suicidas; manifestação de  intenção e planejamento suicida.

Quem for ajudar deve ter em mente de que julgamentos e críticas não promoverão ajuda. De igual modo não ajudará qualquer desprezo pela dor. Dizer para a pessoa que é frescura, drama, covardia, egoísmo, falta de Deus, falta de fé ou endemoninhamento, é um desserviço. E inferir o destino eterno, dizendo que irá para o inferno se cometer o ato suicida poderá até mesmo contribuir para a aceleração de sua consumação. Portanto, qualquer pessoa que for ajudar deve ter sensibilidade para demonstrar disposição em oferecer apoio e uma escuta empática, em um ambiente acolhedor para conversar sobre medos, angústias, anseios e problemas da pessoa em dor. Esse será o primeiro passo para ajudar. Na sequência a ajuda envolve acompanhamento, incentivo para a busca por ajuda profissional e promoção de proteção.

Ainda é importante lembrar que pessoas em situações suicidas podem necessitar de cuidado a longo prazo. Isso significa que não basta uma ajuda pontual. O contato continuará sendo importante, bem como o incentivo a uma elaboração da pessoa e um profissional, de um plano para situações de risco. Essas envolvem medidas protetivas, como evitar o acesso às práticas facilitadoras do suicídio. Mesmo assim, com todos os sinais em alerta e indicações de processos de ajuda, nem sempre é possível evitar um suicídio.

O ato consumado pode gerar uma gama de pensamentos e sentimentos negativos nos familiares e amigos, ao saberem que alguém tão próximo tirou a própria vida. A perplexidade pode ser a primeira sensação de mal estar vertiginoso. Como pode isso ter acontecido? Como foi que não percebi? Por que não fiz nada? Podem ser perguntas agonizantes. A perplexidade pode ser seguida de raiva, tristeza e muita culpa. Todos esses sentimentos são fardos, que podem ser insuportáveis, sendo muito pertinente focar uma atenção para que não ocorra algum suicídio em decurso.

Os suicídios estão entre as mortes mais difíceis de serem suportadas pelas famílias, pelo seu aspecto escancarado, brusco, repentino e invasivo. Quando ocorre, a raiva e a culpa podem tomar conta das relações familiares, especialmente quando os membros têm alguma culpa ou culpam a si mesmos pela morte. Ainda podem ocorrer transferência de culpa de um familiar para outro, podendo gerar uma série de conflitos. Transferências de culpas podem ser fomentadas por negação do próprio envolvimento na relação com o suicida, por ser algo extremamente doloroso. Por outro lado, alguém pode assumir culpabilizações até mesmo injustas, por consternação diante da perda do ente querido.

Unido à dor dos familiares afetados está o estigma social do suicídio que contribui para a vergonha da família e o encobrimento das circunstâncias. Isso favorece os segredos das peculiaridades da situação envolvida e pode distorcer a comunicação familiar, isolando a família do apoio social, gerando em seu interior um legado destrutivo para as suas relações. Por isso, as famílias afetadas pelo suicídio também precisam de assistência. Qualquer pessoa que se aventurar em ajudar deve também ter muita sensibilidade, ética e particularidade. Aproximar-se com um suposto saber poderá fazer com que os envolvidos tenham sua dor ainda mais exacerbada. Importante que sejam explicitadas as ligações ocultas com a situação traumática, seja mobilizado todo apoio familiar possível e que o luto seja elaborado. A família com seus sobreviventes terá que continuar a viver com essa marca terrível em seus corações e mentes. Talvez a dor não passe por completo, mas que seja confortada e amenizada em suas ressignificações.

A campanha do Setembro Amarelo pode abrir os olhos para perceber que um suicídio ao lado pode estar em curso. Caso não estiver ao lado, mas dentro de si, concentre-se em deixar a morte para outro dia. Hoje apenas busque por ajuda.

Por Clarice Ebert, Psicóloga (CRP0814038), Terapeuta Familiar, Mestre em Teologia, Professora, Palestrante, Escritora. Sócia do Instituto Phileo de Psicologia, onde atua como profissional da psicologia em atendimentos presenciais e online (individual, de casal e de família). Coordenadora e palestrante, em parceria com seu marido, do Ministério Vida Melhor (um ministério de cursos e palestras). Membro e docente de EIRENE do Brasil.

* O conteúdo do texto acima é uma colaboração voluntária, de total responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a opinião do Portal Guiame.

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