Daniel Ramos é professor de teologia deste 2013 pela EBPS (Assembleia de Deus em Belo Horizonte). Graduado em Teologia pela PUC Minas (2013), pós-graduação em Gestão de Pessoas pela PUC Minas (2015), especialista em Docência em Letras e
A interpretação das epístolas de Paulo de Tarso foi, por séculos, dominada pela lente da Reforma Protestante, que via na doutrina da justificação pela fé a antítese absoluta entre a graça divina e a salvação por obras humanas. No final do século XX, esse paradigma foi desafiado por um conjunto de estudiosos que ficou conhecido como a "Nova Perspectiva sobre Paulo". Dentre eles, James D. G. Dunn emerge como uma voz pivotal, não apenas por cunhar o termo que definiria o debate, mas por desenvolver uma reinterpretação coerente e influente da teologia paulina, centrada no conceito de "obras da lei" e na inclusão dos gentios. A análise de sua obra revela uma contribuição seminal que, embora não isenta de críticas válidas, “recontextualizou” profundamente o entendimento do judaísmo do Segundo Templo e do evangelho de Paulo.
A tese central de Dunn, desenvolvida em obras monumentais como A Teologia do Apóstolo Paulo, repousa na redefinição do que Paulo criticava quando condenava as "obras da lei". Para a teologia tradicional, influenciada por Lutero, "obras da lei" significavam qualquer tentativa humana de ganhar o favor de Deus através de esforços meritórios, um sistema de salvação por mérito que Paulo teria rejeitado. Dunn argumenta que essa é uma leitura anacrônica, projetando a crise de consciência de Lutero no século I. Em vez disso, baseando-se em estudos sobre o judaísmo palestiniano (como os de E. P. Sanders), Dunn propõe que o judaísmo do tempo de Paulo não era uma religião legalista de salvação por obras, mas uma religião de "graça e pacto", onde a observância da Lei era a resposta à eleição divina, não sua causa.
Nesse contexto, a crítica paulina não era contra o esforço moral em si, mas contra o uso da Lei – especificamente de seus "marcadores de identidade" étnicos, como a circuncisão, as leis dietéticas e o sábado – para erigir barreiras que excluíam os gentios do povo de Deus. As "obras da lei" eram, portanto, os boundary markers que separavam judeus de não-judeus. A justificação pela fé, então, não é primariamente sobre como um indivíduo é salvo, mas sobre qual base gentios e judeus são integrados no povo de Deus. A resposta de Paulo é que a fé em Jesus Cristo é o grande equalizador, o novo critério de pertença que transcende e invalida os antigos marcadores étnicos. Dessa forma, Dunn desloca o foco da justificação de uma doutrina soteriológica individualista para uma doutrina eclesiológica e comunitária sobre a unidade do corpo de Cristo.
Essa reinterpretação é brilhantemente consequente. Ela oferece uma explicação mais histórica e contextual para a veemência de Paulo em Gálatas, por exemplo, onde a questão da circuncisão é central. A ira do apóstolo não é contra a moralidade judaica, mas contra o exclusivismo étnico que negava a eficácia universal da cruz. Além disso, Dunn evita a caricatura do judaísmo como uma religião árida e legalista, apresentando-o em seus próprios termos. Sua teologia ressalta a continuidade entre o Israel da Antiga Aliança e a Igreja, enfatizando que Paulo não estava fundando uma nova religião, mas proclamando o cumprimento das promessas feitas a Abraão – promessas que, desde o início, eram para "todas as famílias da terra" (Gênesis 12:3). A fé, nesse sentido, é a que Abraão já possuía, tornando-se ele o pai de todos os que creem, judeus ou gentios.
No entanto, a teologia paulina de James Dunn não está imune a objeções sérias. Críticos como Stephen Westerholm e John Piper argumentam que, ao reduzir a "justiça pelas obras" a um problema de nacionalismo judaico, Dunn negligencia a dimensão vertical e trans-histórica do problema do pecado. Eles sustentam que a Lei, para Paulo, realmente confronta o ser humano com sua incapacidade de cumpri-la perfeitamente (Romanos 7), revelando assim o pecado e a necessidade de um salvador. A crítica de Paulo, portanto, seria não apenas contra o uso exclusivista da Lei, mas contra a própria impossibilidade de qualquer ser humano, judeu ou gentio, alcançar a justiça diante de Deus através de performance legal. Dunn é acusado de ter "achatado" a profundidade antropológica e soteriológica da doutrina paulina para favorecer uma leitura sociológica.
Em conclusão, a contribuição de James D. G. Dunn para os estudos paulinos é inegavelmente revolucionária e corretiva. Ele forçou uma reavaliação necessária do pano de fundo judaico de Paulo, combatendo séculos de má interpretação antissemita e oferecendo uma leitura que faz mais sentido histórico-literário dentro do conflito específico das igrejas primitivas. Sua ênfase na inclusão dos gentios como cerne do evangelho é um legado duradouro. Contudo, é possível argumentar que a visão mais equilibrada reside numa síntese: Dunn acertou ao identificar nos "marcadores de identidade" o alvo imediato da crítica paulina, mas seus críticos talvez tenham razão ao afirmar que isso não esgota a função da Lei em Paulo. A teologia do apóstolo opera em múltiplos níveis – horizontal (comunitário) e vertical (existencial/divino). A grandeza de Dunn reside em ter recuperado com vigor o primeiro, sem necessariamente anular a validade do segundo. Sua obra permanece como um marco indispensável, um convite permanente para se ler Paulo não contra o judaísmo, mas a partir dele, enxergando no evangelho a explosiva e inclusiva conclusão da narrativa da aliança abraâmica.
Daniel Santos Ramos (@profdanielramos) é professor (Português/Inglês - SEE-MG, EJA/EM/EFII), colunista do Guia-me e professor de Teologia em diversos seminários. Possui Licenciatura em Letras (2024), Bacharelado/Mestrado em Teologia (2013/2015) e pós-graduação em Docência. Autor de 2 livros de Teologia, tem mais de 20 anos de experiência ministerial e é membro da Assembleia de Deus em BH.
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