
Daniel Ramos é professor de teologia deste 2013 pela EBPS (Assembleia de Deus em Belo Horizonte). Graduado em Teologia pela PUC Minas (2013), pós-graduação em Gestão de Pessoas pela PUC Minas (2015), especialista em Docência em Letras e

Este artigo examina a teologia central do livro de Daniel, localizando-a na interseção entre a história humana e a soberania divina. Argumenta-se que o livro, composto em um contexto de crise cultural e religiosa (séc. II a.C., com raízes em tradições do exílio babilônico), oferece uma resposta teológica estruturada em dois eixos principais: a afirmação absoluta da soberania de Deus sobre a história e os impérios (teologia da soberania), e a revelação escatológica que culmina no estabelecimento definitivo do Reino de Deus (teologia escatológica).
A partir de uma análise narrativa e estrutural, explora-se como as figuras de Daniel e seus companheiros (Dn 1-6) e as visões apocalípticas (Dn 7-12) constroem uma identidade de resistência fiel, fundamentada na sabedoria divina, na observância da Torá e na esperança na intervenção final de Deus. Conclui-se que a teologia de Daniel não é mera especulação sobre o futuro, mas um chamado à fidelidade ética e à confiança no Mikvé-El ("Deus que ressuscita os mortos"), que mantém o controle último sobre o poder e o tempo.
1. Introdução: Contexto e Gênero como Chaves Teológicas
O livro de Daniel é um fenômeno literário e teológico singular no cânon hebraico. Tradicionalmente situado entre os "Escritos" (Ketuvim) e, nas versões cristãs, entre os livros proféticos, sua estrutura bipartida—narrativas didáticas (capítulos 1-6) e visões simbólicas (capítulos 7-12)—reflete uma síntese entre a tradição sapiencial, profética e o nascente gênero apocalíptico.
O consenso crítico majoritário data sua redação final no período dos Macabeus (c. 167-164 a.C.), durante a violenta perseguição de Antíoco IV Epifânio, que profanou o Templo de Jerusalém (a "abominação da desolação" - Dn 11:31). Esta situação de crise existencial para o judaísmo é o cadinho no qual a teologia do livro é forjada. A pergunta central que orienta este estudo é: como a teologia de Daniel responde à ameaça de assimilação cultural, perseguição religiosa e aparente colapso da aliança divina?
2. O Eixo da Soberania Divina: Deus como Governador da História (Dn 1-6)
As narrativas da corte, ambientadas na Babilônia e Pérsia, estabelecem o primeiro pilar teológico: Yahweh é o soberano supremo, que depõe reis e estabelece reis (Dn 2:21). Essa verdade é demonstrada de forma irônica e dramática.
Sabedoria como Dom Divino: Diferente da sabedoria meramente humana dos magos e astrólogos babilônicos, Daniel e seus amigos recebem "conhecimento, inteligência e sabedoria" diretamente de Deus (Dn 1:17; 2:19-23). A teologia aqui equipara fidelidade (recusa aos alimentos impuros - Dn 1) e oração (Dn 2) com o acesso ao conhecimento que governa a história.
A Estrutura Quaternária dos Impérios: A interpretação do sonho de Nabucodonosor (Dn 2) e, de forma ampliada, a visão de Dn 7, introduzem uma leitura teológica da história política. Os impérios sucessivos (Babilônia, Medo-Pérsia, Grécia, e o império selêucida/ou um último império) são representados por metais decrescentes em valor ou por feras híbridas e violentas. Esta simbologia denota uma avaliação teológica negativa do poder imperial: ele é instável, opressor e, em última instância, bestial. Contudo, ele existe sob a permissão e o controle divinos.
A Humilhação dos Soberanos e a Exaltação dos Fiéis: Os capítulos 3 (fornalha) e 6 (covil dos leões) são paradigmas de teodiceia. Deus não impede a perseguição, mas resgata e vindica os que permanecem fiéis, transformando os decretos reais em testemunhos de seu próprio poder (Dn 3:28-29; 6:26-27). O clímax é a humilhação do próprio Nabucodonosor (Dn 4), forçado a reconhecer que "o Céu domina" (Dn 4:26). A mensagem é clara: a fidelidade em meio à prova é o meio pelo qual a soberania de Deus é publicamente proclamada.
3. O Eixo da Revelação Escatológica: O Horizonte Defi
A segunda parte do livro desloca o foco da preservação no presente para a consumação no futuro. A linguagem torna-se propriamente apocalíptica: visões complexas, símbolos criptográficos, mediação angélica e um horizonte cósmico e transcendental.
A Figura do Filho do Homem vs. as Feras: A visão central de Dn 7 contrapõe as feras (os impérios) a "alguém como um filho de homem" que recebe do "Ancião de Dias" um reino eterno e indestrutível (Dn 7:13-14). Enquanto os impérios surgem do mar (o caos), o Filho do Homem vem "com as nuvens do céu". Este reino é depois identificado como dado ao "povo dos santos do Altíssimo" (Dn 7:27). A teologia aqui
é de transferência da soberania: o domínio, usurpado pelas bestas, será entregue a uma figura representativa e ao povo fiel que ela encarna.
A Abominação e o Tempo do Fim: As visões de Dn 8-12, cada vez mais detalhadas, historicizam a crise presente (Antíoco IV) dentro de um esquema preditivo. A "abominação desoladora" não é um mero evento histórico, mas a epítome da arrogância humana contra o divino (o "rei que faz segundo a sua própria vontade" (Dn 11:36). A teologia do tempo atinge seu ápice: os períodos são predeterminados (70 semanas, tempos e metade de um tempo), mostrando que a história tem um prazo de validade e avança para um clímax pré-ordenado.
A Ressurreição e o Juízo Final: A revelação atinge seu ponto mais radical em Dn 12:1-3. Pela primeira vez no Antigo Testamento, afirma-se claramente a ressurreição corporal individual, diferenciada e com consequências eternas: "uns para a vida eterna, e outros para a vergonha e horror eterno". Este é o fundamento teológico último para a fidelidade em meio ao martírio. A justiça de Deus não se limita à história, mas se consuma em um ato criativo definitivo que restaura a justiça e recompensa os fiéis, especialmente os mártires ("os que conduzem muitos à justiça, brilharão como as estrelas").
4. Síntese Teológica: Identidade, Ética e Esperança
A teologia de Daniel se apresenta como um sistema coerente de resistência e esperança.
Identidade como Resistência Fiel: O "povo dos santos" (hasidim) é definido não pelo poder político, mas pela sabedoria divina, pela observância corajosa da Torá (mesmo sob risco de morte) e pela confiança nas promessas escatológicas.
Ética da Fidelidade: A esperança escatológica não é passiva. Ela exige uma postura ética ativa de não-conformação (Dn 1), desobediência civil religiosa (Dn 3;6) e discernimento (Dn 9, 11:32-35). O sofrimento dos fiéis não é um sinal do fracasso de Deus, mas parte do conflito cósmico entre o reino de Deus e os poderes terrenos.
Esperança como Estrutura da Realidade: A escatologia não é um apêndice, mas o princípio hermenêutico que dá sentido ao sofrimento presente. O telos (fim) determina a leitura do presente. O Deus que revela os mistérios e determina os tempos é a âncora da esperança.
5. Conclusão: A Permanente Relevância da Teologia de Daniel
O livro de Daniel oferece um paradigma teológico poderoso para comunidades de fé em contextos de opressão, assimilação cultural ou crise de sentido. Sua mensagem central—o "Céu domina" (Dn 4:26)—desafia toda pretensão de autonomia totalitária do poder humano e conforta os que sofrem pela justiça com a certeza da vindicação final.
Mais do que um código para decifrar o fim do mundo, Daniel é um tratado sobre a fidelidade de Deus, que guarda seu povo na fornalha, fecha a boca dos leões e, no tempo por Ele determinado, inaugurará um reino de justiça que jamais passará. A teologia de Daniel, portanto, é uma teologia de resiliência fundamentada na soberania transcendente e na promessa da ressurreição.
Referências Bibliográficas:
COLLINS, John J. Daniel: A Commentary on the Book of Daniel. Hermeneia. Minneapolis: Fortress Press, 1993.
GOLDINGAY, John E. Daniel. Word Biblical Commentary. Dallas: Word Books, 1989.
LACOCQUE, André. The Book of Daniel. Londres: SPCK, 1979.
SÉRVIO, Paulo S. L. Daniel: Visões de Esperança em Tempos de Crise. São Paulo: Vida Nova, 2018.
SMITH-CHRISTOPHER, Daniel L. “The Book of Daniel.” In: The New Interpreter's Bible. Nashville: Abingdon Press, 1996. v. VII.
WALVOORD, John F. (Trad. adapt.). Comentário Bíblico Expoente. São Paulo: Editora Vida, 2017. (Para uma perspectiva dispensacionalista contrastante).
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Daniel Santos Ramos (@profdanielramos) é professor (Português/Inglês - SEE-MG, EJA/EM/EFII), colunista do Guia-me e professor de Teologia em diversos seminários. Possui Licenciatura em Letras (2024), Bacharelado/Mestrado em Teologia (2013/2015) e pós-graduação em Docência. Autor de 2 livros de Teologia, tem mais de 20 anos de experiência ministerial e é membro da Assembleia de Deus em BH.
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