Daniel Ramos

Daniel Ramos

Daniel Ramos é professor de teologia deste 2013 pela EBPS (Assembleia de Deus em Belo Horizonte). Graduado em Teologia pela PUC Minas (2013), pós-graduação em Gestão de Pessoas pela PUC Minas (2015), especialista em Docência em Letras e

A Teologia do Credo de Nicéia: História, política e fundamentações doutrinárias

Na interseção entre a reflexão da Igreja e a agenda de Constantino, o Credo de Nicéia emergiu como o alicerce doutrinário que equilibrou a filosofia grega com a revelação bíblica para afirmar a divindade plena de Cristo.

Fonte: Guiame, Daniel RamosAtualizado: quinta-feira, 6 de novembro de 2025 às 18:08
(Foto: Wikipedia)
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Introdução

O século IV da Era Cristã foi um período de profunda transformação e turbulência para a Igreja. Saindo da clandestinidade e da perseguição após o Édito de Milão (313 d.C.), a comunidade cristã deparou-se com um novo desafio: a unidade interna. A ausência de uma perseguição externa comum permitiu que divergências teológicas, até então contidas, viessem à tona com intensidade. A questão central que dominou o século foi a natureza de Jesus Cristo: quem era Ele em relação a Deus Pai? Foi neste contexto que a controvérsia ariana eclodiu, exigindo uma resposta clara e universal da Igreja. O Credo de Niceia foi essa resposta, um documento que não apenas encerrou um debate, mas estabeleceu os alicerces para toda a teologia cristã subsequente. Esta dissertação explorará as múltiplas dimensões do Credo, demonstrando como ele é um produto de seu tempo, mas com um conteúdo teológico de validade perene.

1. Contexto Histórico e a Gênese da Controvérsia: A Questão Ariana

Para compreender o Credo de Niceia, é imperative entender a crise que ele buscou resolver. A controvérsia teve início em Alexandria, um dos principais centros intelectuais do Império, por volta de 318 d.C., envolvendo Ário, um presbítero carismático e rigorista, e seu bispo, Alexandre de Alexandria.

1.1. A Teologia de Ário Ário, influenciado por uma leitura particular da filosofia neoplatônica, que enfatizava a absoluta transcendência e singularidade de Deus (o Monarca), propunha uma cristologia subordinacionista. Para ele, Deus Pai era ingênito, eterno e imutável. Se o Filho fosse verdadeiramente gerado pelo Pai, então houve um tempo em que o Filho não existia. A famosa expressão atribuída a Ário era: "Houve um tempo quando o Filho não era" (ν ποτε τε οκ ν). O Filho, portanto, era uma criatura (ktisma ou poiema), a primeira e mais perfeita de todas as criaturas, através de quem Deus criou o mundo. No entanto, por ser criatura, o Filho era mutável e, embora pudesse ser chamado de "Deus" por participação na graça divina, não era Deus por natureza. Ele era de uma substância (ousia) diferente da do Pai – heteroousios. Esta visão preservava o monoteísmo estrito, mas ao custo de relegar Jesus Cristo a uma posição intermediária, nem totalmente Deus nem totalmente homem, mas um semi-deus.

1.2. A Resposta de Alexandre e Atanásio O Bispo Alexandre percebeu as implicações soteriológicas devastadoras da posição ariana. Se Cristo não é verdadeiramente Deus, então a salvação humana não é efetivada, pois apenas Deus pode salvar. Se Cristo é uma criatura, a sua morte na cruz não teria valor infinito para redimir a humanidade. Alexandre e seu principal diácono e sucessor, Atanásio, defenderam a eternidade e divindade plena do Filho. Eles argumentavam que a geração do Filho pelo Pai não era um evento temporal, mas um processo eterno e inefável, tão antigo quanto o próprio Pai. A salvaguarda da salvação dependia da plena divindade de Cristo.

A disputa rapidamente se espalhou por todo o Império, ameaçando causar um cisma generalizado. A igreja dividiu-se em facções: os arianos radicais, os semi-arianos (que preferiam o termo homoiousios, "de substância semelhante"), e os defensores da divindade plena do Filho, liderados por Atanásio.

2. A Questão Política: O Imperador Constantino e a Busca pela Pax Romana

A dimensão política do Concílio de Niceia é inegável e crucial. O Imperador Constantino, após consolidar seu poder, viu no Cristianismo uma força unificadora potencial para um Império fragmentado. No entanto, a controvérsia ariana representava uma ameaça direta à sua agenda de unidade, a Pax Romana.

2.1. Constantino como "Pontífice Máximo" Constantino via a si mesmo não apenas como um imperador secular, mas como o responsável pelo bem-estar religioso do Império, um papel herdado do título de Pontifex Maximus. A discórdia dentro da principal religião em ascensão era, para ele, um problema de estado. Seu objetivo não era primordialmente teológico, mas pragmático: restaurar a paz e a unidade eclesial. Ele convocou o concílio, providenciou o local (Niceia, próxima à capital imperial, Nicomédia), e presidiu as sessões, atuando como um mediador acima das partes.

2.2. O Concílio como Instrumento Imperial O Primeiro Concílio de Niceia (325 d.C.) foi o primeiro "concílio ecumênico" (universal) precisely porque foi convocado e supervisionado pelo imperador, que tinha a autoridade para reunir bispos de todas as províncias. Estima-se que entre 250 e 318 bispos tenham

participado. Constantino deixou claro que esperava um consenso. A princípio, a maioria dos bispos era simpática à posição de Alexandre e Atanásio, mas relutante em adotar terminologia não-bíblica. Foi a insistência imperial, combinada com a habilidade política de partidários como Osório de Córdoba, que levou à adoção da palavra-chave homoousios.

2.3. A Imposição da Ortodoxia e as Consequências Após a aprovação do Credo, Constantino usou seu poder para impor a decisão. Bispos que se recusaram a assinar, incluindo Ário e dois bispos egípcios, foram exilados. No entanto, a unidade alcançada foi frágil. Nos decades seguintes, a disputa continuou, com imperadores subsequentes (como Constâncio II) simpatizando com o arianismo ou semi-arianismo. Atanásio foi exilado cinco vezes por sua defesa intransigente do Credo de Niceia. A política imperial, portanto, não resolveu a questão de forma definitiva em 325, mas criou um padrão: a ortodoxia seria, dali em diante, definida em concílios ecumênicos com participação imperial. A versão final e definitiva do que hoje chamamos de "Credo Niceno" só surgiria no Concílio de Constantinopla (381 d.C.), sob o Imperador Teodósio I, que solidificou a ortodoxia nicena como a fé oficial do Império.

3. As Fundamentações Teológicas do Credo

O conteúdo do Credo de Niceia-Constantinopla é uma obra-prima de precisão teológica. Cada frase foi elaborada para refutar uma heresia específica e afirmar uma verdade bíblica fundamental.

3.1. A Estrutura e suas Afirmações Centrais O Credo é estruturado de acordo com a fórmula batismal trinitária (Pai, Filho e Espírito Santo), mas com um foco cristológico profundamente desenvolvido.

- Sobre o Pai: A afirmação "Creio em um só Deus, Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis" estabelece o monoteísmo e a soberania de Deus, contra qualquer forma de politeísmo ou dualismo.

- Sobre o Filho: Esta é a seção mais elaborada, diretamente voltada contra o arianismo. ○ "Gerado, não criado" (gennethenta, ou poiethenta): Esta distinção é crucial. "Criar" é um ato da vontade divina que produz algo externo a Deus (o mundo). "Gerar" é um ato da natureza divina, que pressupõe uma comunhão de substância. O Filho não é uma obra feita por Deus, mas sim o Filho de Deus.

- "Consubstancial ao Pai" (homoousion to Patri): Este é o termo técnico e não-bíblico que se tornou o coração do Credo. Homoousios significa "da mesma substância" ou "da mesma essência". Afirma que o Pai e o Filho partilham da mesma natureza divina única. Eles não são dois deuses, mas um só Deus em distintas pessoas. Este termo exclui tanto o arianismo (heteroousios) quanto o semi-arianismo (homoiousios – de substância semelhante).

- "Desceu do céu... e se encarnou... e se fez homem": O Credo afirma enfaticamente a encarnação real. O Verbo eterno e divino assumiu uma natureza humana completa, incluindo corpo e alma. Isso é direcionado contra o docetismo, que negava a humanidade verdadeira de Cristo.

- "Padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado": A historicidade e a realidade do sofrimento e da morte de Jesus são afirmadas, reforçando sua humanidade genuína.

- "Ressuscitou ao terceiro dia": A vitória sobre a morte é proclamada, fundamento da esperança cristã.

- Sobre o Espírito Santo: O Concílio de Constantinopla expandiu esta seção para combater os pneumatomacos ("combatedores do Espírito"), que negavam a divindade do Espírito Santo. O Espírito é confessado como "Senhor e fonte de vida", que "com o Pai e o Filho é adorado e glorificado", afirmando sua plena divindade e lugar na Trindade.

3.2. Fundamentações Bíblicas e Filosóficas Embora o termo homoousios não seja bíblico, a ideia que ele expressa está profundamente enraizada na Sagrada Escritura. Os Padres da Igreja, particularmente Atanásio, basearam-se em passagens como:

- João 1:1: "No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus." A identificação do Verbo (Logos) com o próprio Deus é clara.

- João 10:30: "Eu e o Pai somos um." A unidade substantiva é afirmada por Jesus.

- Colossenses 2:9: "Pois nele habita corporalmente toda a plenitude da Divindade."

- Filipenses 2:6: "Que, sendo em forma de Deus, não considerou o ser igual a Deus coisa a que se devia aferrar."

Filosoficamente, o uso de termos como ousia (substância) e hypostasis (pessoa) representou uma helenização do evangelho, mas de uma forma necessária. A Igreja apropriou-se da linguagem filosófica grega para definir e proteger as verdades da revelação bíblica de modo preciso e logicamente coerente, respondendo aos desafios intelectuais de sua época.

Conclusão

O Credo de Niceia-Constantinopla é muito mais do que um texto litúrgico recitado nas igrejas. Ele é o testemunho histórico de um momento decisivo em que a Igreja, sob a pressão de uma crise doutrinária profunda e da influência do poder político imperial, foi compelida a articular sua fé de maneira definitiva. Sua história revela a complexa relação entre teologia e política, mostrando como a busca pela unidade imperial influenciou o processo, mas não determinou o conteúdo final, que foi fruto de uma longa e árdua reflexão teológica.

As fundamentações do Credo, embora tenham empregado vocabulário filosófico, estão solidamente ancoradas na narrativa bíblica e nas exigências da doutrina da salvação. A defesa da consubstancialidade do Filho com o Pai, resumida no termo homoousios, foi uma conquista doutrinária monumental que preservou o cerne da fé cristã: que em Jesus Cristo, Deus mesmo entrou na história humana para redimi-la. Por isso, mesmo após séculos, o Credo de Niceia permanece como um pilar da ortodoxia cristã, um farol doutrinário que continua a guiar e unir os cristãos em torno da confissão de um só Senhor, Jesus Cristo, "verdadeiro Deus de verdadeiro Deus".

Bibliografia Sugerida

AYRES, Lewis. Nicaea and its Legacy: An Approach to Fourth-Century Trinitarian Theology. Oxford: Oxford University Press, 2004.

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KELLY, J. N. D. Early Christian Creeds. 3rd ed. London: Continuum, 2006.

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RUBENSTEIN, Richard E. When Jesus Became God: The Epic Fight over Christ's Divinity in the Last Days of Rome. New York: Harcourt, 1999.

WILLIAMS, Rowan. Arius: Heresy and Tradition. Revised Edition. London: SCM Press, 2001.

 

Daniel Santos Ramos (@profdanielramos) é professor (Português/Inglês - SEE-MG, EJA/EM/EFII), colunista do Guia-me e professor de Teologia em diversos seminários. Possui Licenciatura em Letras (2024), Bacharelado/Mestrado em Teologia (2013/2015) e pós-graduação em Docência. Autor de 2 livros de Teologia, tem mais de 20 anos de experiência ministerial e é membro da Assembleia de Deus em BH.

* O conteúdo do texto acima é uma colaboração voluntária, de total responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a opinião do Portal Guiame.

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