Deus no mundo

Deus no mundo

Fonte: Atualizado: sábado, 31 de maio de 2014 às 09:52

" Quando eu morrer, verei o avesso do mundo.

O outro lado, além do pássaro, da montanha, do poente.

O significado verdadeiro, pronto para ser decodificado.

O que nunca fez sentido, fará sentido,

O que era incompreensível, será compreendido.

- Mas, e se o mundo não tiver avesso?

Se o sabiá na palmeira não for um signo.

Mas apenas um sabiá na palmeira? Se a

Sequência de noites e dias não fizer sentido

E nessa terra não houver nada, apenas terra?

- Mesmo se assim for, restará uma palavra

Despertada por lábios agonizantes,

Mensageira incansável que corre e corta

Campos interestelares, corta galáxias que giram,

E clama, reclama, grita. "

Gosto desse poema do polonês Czeslaw Milozs, Nobel de Literatura, porque expressa a impressão popular de que após a morte o mundo finalmente fará sentido. Mas o que me chamou mesmo à atenção foi a confissão de seu desespero ao considerar a hipótese de que o mundo não tenha qualquer outro sentido senão o que está diante de nossos olhos aqui e agora: e se o sabiá na palmeira for apenas um sabiá na palmeira? e se não houver nada por trás da seqüência de dias e noites? Imagino que alguns religiosos sacariam, do coldre, a Bíblia, e despejariam sobre o poeta uma avassaladora saraivada de conceitos mostrando que é isso mesmo, no céu o mundo fará sentido, e depois tentarão confortar o poeta convidando-o a acreditar que Jesus poderá leva-lo para lá, o céu. Mas não posso ser contado entre eles.

ALÉM DA IMANÊNCIA E DA TRANSCENDÊNCIA

Na teologia cristã, transcendência e imanência são dois atributos de Deus. A transcendência trata do Deus Totalmente Outro, como se referem os teólogos, Aquele que “habita na luz inacessível”.[i] A transcendência é a afirmação de que Deus, “embora presente e perpassando tudo, não pode ser retido nas malhas de nenhuma presença concreta”.[ii] A transcendência diz que Deus está no mundo, mas também fora dele. Ou como diz Huxley, “somente o transcendente, o completamente outro, pode ser imanente sem ser modificado pelo vir-a-ser daquilo que ele habita”.[iii] Em outras palavras, Deus está no mundo, mas não é o mundo. Deus abrange o todo, mas é mais do que o todo. Deus está aqui e além. Por uma razão simples, Deus é, e não pode ser contido pelo que está.

A imanência, por sua vez, fala que Deus está presente e ativo dentro de sua criação”,[iv] como fundamento de toda a realidade. Este conceito é bem desenvolvido nas tradições orientais. Por exemplo, a fórmula sânscrita tat tvam asi – “Tu és isto” advoga que Deus é o Eu eterno imanente, o Princípio absoluto de toda a existência. O Bhagavad-Gita, texto sagrado do Hinduísmo panteísta fala de Deus como Aquilo por que todo este mundo é penetrado. O Upanixade (texto filosófico anexado ao Veda, fundamento sagrado do bramanismo e do hinduísmo), conta a seguinte história.

" Svetaketu, meu filho, você que está tão ancho do seu saber, e é tão dado a críticas, solicitou porventura ao seu mestre que lhe ensinasse o conhecimento mercê do qual ouvimos o inaudível, percebemos o que não pode ser percebido e conhecemos o que não pode ser conhecido?

Que conhecimento é esse, Senhor?, indagou Svetaketu.

Replicou o pai:

Assim como, conhecendo um bloco de argila se conhece tudo o que é feito de argila, residindo a diferença apenas no nome, mas sendo verdade que tudo é argila – assim, meu filho, é esse conhecimento, de modo que, se o possuirmos, conheceremos tudo.

Os meus veneráveis mestres ignoram, sem dúvida, esse conhecimento; pois, se o possuíssem, ter-mo-iam comunicado. Portanto, senhor, dê-mo.

Assim seja, conveio o pai, e ordenou: Traze-me um fruto da árvore nyagrodha.

Aqui está um, senhor.

Quebra-o.

Está quebrado, senhor.

O que vês aí?

Algumas sementes, senhor, excessivamente miúdas.

Quebra uma delas.

Está quebrada, senhor.

O que vês aí?

Absolutamente nada.

Disse o pai: Meu filho, nessa essência sutil que não percebes aí – nessa mesma essência se encontra o ser da imensa árvore nyagrodha. Nisto que é a essência sutil tudo o que existe tem o seu eu. Isto é o Verdadeiro, isto é o Eu, e Tu, Svetaketu, és Isto.

Rogo-lhe, senhor, fale-me mais sobre isso.

Assim seja, tornou o pai, e disse: Coloca este sal na água e vem ter comigo amanhã cedo.

Fez o filho o que lhe fora prescrito. Na manhã seguinte ordenou o pai:

Traze-me o sal que puseste na água.

O filho procurou o sal, mas não o encontrou, pois o sal, naturalmente, se dissolvera.

Disse o pai: Prova um pouco da água da superfície do vaso. Como está ela?

Salgada.

Prova um pouco da água do meio. Como está ela?

Salgada.

Prova um pouco da água do fundo. Como está ela?

Salgada.

Ordenou o pai:

Deita fora a água e em seguida vem ter comigo outra vez.

Assim fez o filho; mas o sal não se perdera, pois o sal existe para sempre.

Disse então o pai:

Da mesma forma, aqui, nesse corpo que é teu, meu filho, não percebes o Verdadeiro; mas ele, na verdade, está aí. Nisto que é a essência sutil, tudo o que existe tem o seu eu. Isto é o Verdadeiro, isto é o Eu, e tu, Svetaketu, és Isto ".

Talvez você esteja se mexendo na poltrona e começando a desconfiar que estou advogando o panteísmo. Mas de fato, o panteísmo não fala da presença de Deus em tudo e todas as coisas. O panteísmo na verdade fala que Deus é exatamente a soma deste tudo e todas as coisas – Deus é tudo e Tudo é Deus. O panteísmo além de roubar de Deus seu mais essencial atributo, a saber, a pessoalidade, se esgota na imanência. O Cristianismo, entretanto, não é panteísta. O Cristianismo pode chegar perto do panenteísta[v] – ver tudo em Deus – mas jamais do panteísmo – chamar Deus de tudo.

Tudo está em Deus: “nEle somos, nos movemos e existimos”,[vi] disse Paulo, apóstolo, citando um poeta grego em seu discurso em Atenas, confirmando que “dEle, por Ele e para Ele são todas as coisas”. [vii] Teilhard De Chardin falava do le milieu divin: nós estamos dentro de Deus, pois “nunca saímos de Deus, nem vamos a Deus, porque estamos sempre dentro de Deus. A tarefa da fé (ou efeito da revelação) é descobrir esse Deus presente em todas as coisas, mas oculto sob mil sinais. O universo é o grande sacramento”.[viii]

Faço questão de deixar claro o fato de que a linha que separa o panteísmo do teísmo é muito tênue. O teísmo sugere que Deus criou o universo e o entregou às leis naturais, de modo que o mundo funciona tal qual um relógio cujo criador deu corda e depois o abandonou à sua própria sorte. Esta compreensão mecanicista da atividade divina roubou de Deus sua transcendência, sua capacidade de existir além do seu universo criado, sua possibilidade de interferir na história dos homens com feitos milagrosos – amorosos. É na carona do “panteísmo spinoziano do século XVII e do teísmo dos filósofos iluministas do século XVIII”[ix] que surge o a-teísmo dos séculos XIX, XX e XXI.

Por estas razões, nunca é demais afirmar a imanência e a transcendência de Deus. Mas a transcendência e a imanência não são suficientes para elucidar a experiência de Deus, pois, via de regra, são tratadas como categorias dissociadas, às vezes opostas, e não raramente antagônicas.  Este é o dilema de Czeslaw Milozs. Ele está entre a imanência e a transcendência. Ou o sabiá é somente um sabiá (imanência), ou saberemos o que de fato é um sabiá quando enxergarmos o avesso do mundo (transcendência). Mas há uma terceira via.

Deus não é apenas transcendente e imanente. É também transparente, nos ensina Leonardo Boff. “Transparência significa a presença da transcendência dentro da imanência. Em outras palavras, significa a presença de Deus dentro do mundo e do mundo dentro de Deus. Conforme se expressou Paulo, apóstolo[x]: ‘Há um só Deus e Pai de todos, que está acima de tudo (transcendência), por tudo (transparência) e em tudo (imanência)’.”[xi] Neste triângulo transcendência-imanência-tranparência, o mundo não é negado, pois Aquele que é  transcendente está nele, dando-lhe sentido, e também não é absolutizado como realidade última, pois Aquele que é imanente está nele, e ninguém encontrará sentido no mundo antes de encontrar-se com o transcendente que nele também está.

Philip Yancey, jornalista, é um dos mais premiados escritores cristãos da atualidade. Em seu livro O Deus (in)visível , você vai encontrar as seguintes afirmações: “buscar o Espírito é como procurar os óculos estando com eles (…) o Espírito é com mais precisão aquilo pelo qual percebemos, não aquilo que percebemos: é quem abre nossos olhos para destacar as realidades espiritu-ais subjacentes”.[xii] O que ele está dizendo é que a maioria de nós encara a vida como uma laranja, e pensa que Deus é um dos gomos. Funciona mais ou menos da seguinte maneira: assim como interagimos com o trabalho, o lazer, o dinheiro, as pessoas, o corpo, a igreja, e por aí vai, também interagimos com Deus – Deus é uma das nossas interações. Mas esta é uma concepção errada da realidade. O correto é compreender que Deus está por trás de cada uma das nossas interações. Deus está presente em cada uma das realidades com as quais convivemos, e, inclusive nós mesmos, estamos imersos em Deus. Todas as nossas interações são mediadas por Deus. A única relação imediata que temos é com Deus (imediato, do lat. immediatu, que não tem nada de permeio), todas as outras são mediatas (mediato, do lat. mediatu, que está em relação com uma coisa por intermédio de uma terceira; indireto). Isso significa que um sabiá somente fará sentido quando entre nós e ele Deus estiver presente; a seqüência de dias e noites fará sentido apenas quando Deus tomar parte no dia e na noite. O mundo somente faz sentido quando mediado por Deus, quando entre nós e o mundo, Deus estiver no permeio. O encontro com Deus deve ocorrer “não ao lado, dentro ou acima do mundo, mas justamente com o mundo, no mundo e através do mundo. Deus somente é real e significativo para o ser humano se emergir das profundezas de sua própria experiência no mundo com os outros”.[xiii]

O grande problema da maioria dos religiosos é que desejam o relacionamento direto com Deus, sem incluir as realidades criadas por Deus como ambiente da experiência vivencial. Querem se aproximar de Deus sem os sabiás, os filhos, o trabalho, o dinheiro, e tudo o mais, como se pudessem abrir uma gaveta, colocar  Deus lá dentro e deixar toda a realidade do lado de fora. Estão no avesso dos materialistas: querem se relacionar com os sabiás, os filhos, o trabalho, o dinheiro, e tudo o mais, deixando Deus de lado. Ambos estão em situação difícil. Para os primeiros, Deus não faz sentido. Para os outros, o mundo é que não faz.

Esta é a grande descoberta e o grande susto do patriarca Jacó após sua experiência espiritual: “Deus estava aqui e eu não sabia”.[xiv] A partir disso deveríamos necessariamente perguntar: onde mais Deus esteve sem que eu o soubesse?, onde mais Deus está sem que eu o saiba?, e, principalmente, por que não fui capaz de perceber Deus estando Ele aqui? As respostas seriam simples: Deus esteve e está em todo lugar, e eu não fui capaz de percebê-lo simplesmente porque não estava a procurá-lo aqui, mas acolá, ou simplesmente porque jamais imaginei que ele pudesse estar aqui, no sabiá, na palmeira, e em mim.

Aquele que deseja experimentar Deus deve se aproximar dele levando consigo os sabiás, as palmeiras e a terra. E quem deseja experimentar a plenitude dos sabiás, das palmeiras e da terra deve se aproximar deles a partir de sua experiência de Deus. Assim, reconciliamos Deus com sua criação, e a criação com o seu Deus. Ao lado do poema de Czeslaw Milozs podemos colocar um trecho de outro poeta, Gilberto Gil.

Se os campos cultivados neste mundo

São duros demais

E os solos assolados pela guerra

Não produzem a paz

Amarra o teu arado a uma estrela

E aí tu serás

O lavrador louco dos astros

O camponês solto nos céus

E quanto mais longe da terra

Tanto mais longe de Deus.

[i] 1 Timóteo 6.16

[ii] Boff, Leonardo, Experimentar Deus, p.23

[iii] Houxley, Aldous, Filosofia Perene, p. 16

[iv] Erickson, Millard, Teologia Sistemática, p.101

[v] Panenteísmo é uma expressão criada pelo filósofo alemão Karl C. F. Krause (1781-1832) e se explica etmologicamente pela fusão de duas palavras gregas: pan, tudo, e Theos, Deus. No Panteísmo, que identifica tudo com Deus e na verdade chama de Deus a soma de toda a realidade, Tudo é Deus e Deus é Tudo. O Panenteísmo, por sua vez, compreende Deus além da realidade, embora admita que Deus harmonize toda a realidade em si mesmo. Tanto o Panteísmo quanto o Panenteísmo se aproximam de Plotino e dos neoplatônicos, que entendiam a realidade como emanação de Deus – O Uno. Giordano Bruno, Teilhard De Chardin e Baruch Spinoza, foram grandemente influenciados pelo neoplatonismo.

[vi] Atos 17.28

[vii] Romanos 11.36

[viii] Boff, Leonardo, Experimentar Deus, p.?

[ix] Leone, Alexandre, A imagem divina e o pó da terra, ps.135,136

[x] Efésios 4.7

[xi] Boff, Leonardo, Experimentar Deus, p.31

[xii] Yancey, Philip, O Deus (in)visível, p.

[xiii] Boff, Leonardo, Experimentar Deus, p.12

[xiv] Gênesis 28.16

[Trecho do meu livro Vivendo com propósitos, Editora Mundo Cristão].

Ed René Kivitz   é mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo, escritor, conferencista e pastor da Igreja Batista de Água Branca, na Zona Oeste de São Paulo, tendo obras e pastorais publicados neste site:   http://edrenekivitz.com/blog/ .   

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