“Qualquer pessoa pode mudar de opinião, e algumas vezes bastante rapidamente. Mas, raramente acontece que alguém mude de opinião pelos argumentos de um outro que decidiu convencê-lo. Assim, se, por uma verdadeira preocupação de difundir a verdade você resolveu fazer alguém evoluir, não diga: vou demonstrar-lhe que está errado, mas, vou ajudá-lo a descobrir a verdade por si mesmo. Muitas vezes o outro estaria pronto para aceitar ”a” verdade e não a “sua” verdade. Por que você monopoliza a verdade? Ela existe independentemente de você. Em noventa por cento dos casos, quando você a açambarca, você a turva. Se você quiser ser bem sucedido em suas discussões, esqueça-se e respeite o outro. Não seja o rico que dá uma esmola ao pobre, mas o amigo que corre em direção ao amigo para se unir a ele, e com ele descobrir a verdade. Trata-se de uma verdade religiosa? Então nunca se esqueça que o cristianismo não se demonstra por meio de raciocínios ou de idéias, pois antes de ser uma doutrina, o cristianismo é uma pessoa. A verdade é Cristo. E não se discute Cristo, acolhe-se Cristo. ‘Discutir religião’ é, antes de tudo, dar testemunho e ajudar o outro a encontrar Cristo”.
Esses conselhos do vigário católico Michel Quoist, em sua obra Construir o homem e o mundo, me fizeram lembrar de Amos Oz, um dos mais renomados escritores israelenses da atualidade, dedicado a promover a conciliação entre judeus e palestinos em Israel. Ao citar um provérbio árabe: “não se bate palma com uma única mão”, o co-fundador do movimento pacifista Paz Agora, diz que “o coração do conflito israelense-palestino é um choque entre certo e certo, e muitas vezes um choque entre errado e errado”. Adverte que “é difícil ser profeta numa terra de profetas”, mas ainda assim arrisca uma profecia (e que profecia): ”um dia chegará em que haverá uma embaixada israelense na Palestina e uma embaixada palestina em Israel. Essas duas embaixadas estarão a uma distância que será coberta a pé, porque uma delas estará em Jerusalém Ocidental, a capital de Israel, e a outra ficará em Jerusalém Oriental, capital da Palestina. Extremistas dos dois lados continuarão a fazer de tudo para sabotar um compromisso histórico e a paz – mas a paz chegará, porque a maioria dos dois povos a quer e porque os extremistas são minorias nos dois lados”.
Amos Oz acredita que somente os moderados podem promover a paz. Extremistas, fanáticos e fundamentalistas são incapazes da auto-crítica, raciocinam em termos nós contra eles, são monotemáticos, não sabem dialogar, apenas debater, são passionais em sua leitura da realidade, seletivos em suas informações, e geralmente desonestos intelectualmente. Não sabem argumentar, sabem gritar, agredir e explodir gente inocente.
Esta é também a lógica de Ayaan Hirsi Ali. Nascida na Somália e criada numa família islâmica de acordo com as tradições da religião, a ativista e escritora, autora de Infiel (2007), A virgem na jaula (2008), e o mais recente, Herege (2015), é conhecida pelos seus posicionamentos críticos ao Islã. Entre suas teses, está a convicção de que somente os muçulmanos que vivem no Ocidente, convertidos aos valores ocidentais, podem promover a reforma e a salvação da religião islâmica.
Eis alguns valores ocidentais listados por Hirsi Ali como essenciais para a busca de uma coexistência pacífica apesar das distinções abissais entre culturas e religiões: individualidade, independência e responsabilidade: cada pessoa decide sua vida, seu rumo, seu caminho; diversidade de ideologias; Constituição acima dos livros Sagrados; leis e regras estabelecidas pelo povo e não por um poder divino; igualdade de todos perante a Lei; liberdade de crença; possibilidade de construir o futuro (contra o fatalismo); bom senso no julgamento dos valores religiosos.
Esses três posicionamentos têm em comum a convicção de que o diálogo e a tolerância são possíveis apenas àqueles que aceitam o fato de que vivem num mundo em que os valores e crenças religiosos não podem ser mais impostos ou tomados como verdades absolutas universais. O Iluminismo, movimento filosófico do século 18, destituiu a religião de seu locus dogmático absolutista. Ninguém mais pode falar em nome de Deus. Apenas em nome do “seu Deus”. Ninguém mais detém a verdade. Apenas “sua verdade”. O que para os religiosos foi uma perda, para a sociedade plural foi imprescindível como alternativa para a possibilidade de uma sociedade onde é possível conviver em paz entre os divergentes.
A tradição judaico-cristã está na base das grandes conquistas da cultura ocidental: os valores que dão origem e sustentam às noções modernas de direitos humanos e das liberdades individuais, como por exemplo crença e culto, opinião e expressão. É surpreendente, portanto, que os cristãos tenhamos um dia imposto nossas crenças sobre outros povos usando a força da espada e o braço militar do Estado, tenhamos massacrado culturas e populações nativas da América Latina, promovido a escravidão, patrocinado regimes totalitários nos países chamados de terceiro mundo, dado sustentação a organizações como a Klu Klux Klan e regimes como o Apartheid na África do Sul. Hoje fazemos o caminho da volta, buscando a superação de um modelo de expansão missionária colonialista, que confunde dar testemunho do evangelho com processo civilizatório eurocêntrico e norteamericano.
Sob pena de perdermos o bonde da história e ficarmos batendo bumbo sozinhos na praça, é urgente a reflexão corajosa a respeito de como podemos e devemos transitar na arena pública. Não tenho dúvidas quanto ao fato de que a voz de Jesus Cristo é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê. Temo apenas que a sociedade contemporânea não ouça essa voz, pois na boca dos extremistas e fanáticos a voz de Cristo se confunde com a voz do Diabo.
*[Publicado originalmente na edição 356 da revista Ultimato]
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