Do que é sagrado e a liberdade de expressão

De forma prática, o sagrado é aquilo que você assim o considera, e não podemos exigir que o mundo, na sua pluralidade de pensamento, respeite e engula nossa fé, como se ela fosse inquestionável. É assim que fundamentalistas agem, mas não é assim que Deus ensina

Fonte: Guiame, Luciana HonorataAtualizado: terça-feira, 3 de fevereiro de 2015 às 14:15
Religião
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"Sagrado" é uma palavra que está, ironicamente, sendo banalizada. Digo isso porque ouço o tempo todo as pessoas dizerem que isso ou aquilo é sagrado, como se dissessem que Nutella é uma delícia. Já percebeu? Para ganhar um debate, basta dizer que "tal coisa é sagrada", sendo que é esta a coisa que você defende, ou qualquer outra à qual esteja intimamente relacionada, e uma vez dito, seu argumento se torna inquestionável.

Mas, afinal, o que é sagrado? Por que se formos parar pra pensar, as pessoas estão sacramentando tudo, desde meu bem querer (que é segredo, é sagrado, está sacramentado em meu coração) até as vacas da Índia, onde, aliás, os ratos também o são. Sagrado é o "coração de Jesus", ou o de Maria, o manto de Nossa Senhora, o óleo ungido, o trevo de quatro folhas, o escapulário e o sinal da cruz. Sagrado é o Alcorão, a Torá, Meca, Israel, os amuletos, talismãs e patuás do candomblé, as oferendas a Iemanjá. Há quem sacramente satanás, assim, na cara dura, e ache ele um fofo. Há quem sacramente a ciência, o saber e até, pasme, Beyoncé (duvida?! Googla aí que cê acha). É sagrado o matrimônio, é sagrado o direito de expressão, a liberdade individual e a preservação da vida. Ah, estão sacramentando também o direito a tirar a vida, mas isso é tema para um próximo texto. O que nos interessa, é essa sacramentação de tudo, e se de fato ela procede.

O episódio terrorista contra a revista Charlie Hebdo reacendeu alguns debates, e este foi um deles. Já que até o Papa (que além de sagrado, é considerado infalível pelos dogmas do catolicismo), decidiu equivocadamente opinar a favor do terror (ainda que de forma velada), argumentando que "você não pode insultar a fé dos outros, você não pode zombar da fé", pois, ao que consta nos autos do politicamente correto, a fé de alguém é algo, adivinha?, isso mesmo, sagrado! Segundo o Papa, portanto, seria errado ridicularizar quem acredita no bicho papão ou quem tem medo de reencarnar numa mosca varejeira, por exemplo. De acordo com ele, é errado expressar a sua conclusão a respeito de cultos canibalistas e ilustrá-lo de forma cômica.

Veja bem, eu não estou tentando relativizar valores morais fundamentais, como o direito à vida e à liberdade. Acredito que a maioria de nós concordamos com a legitimidade dos mesmos, embora os terroristas obviamente os ignore. Aliás, diversas culturas o fazem, a exemplo dos indígenas que matam suas próprias crianças nascidas com deficiência. Mas de acordo com o Papa e alguns relativistas culturais, o direito SAGRADO à vida dessas crianças sucumbiria então, diante do direito à fé que os índios têm de considerá-las amaldiçoadas? O que é mais sagrado, afinal?

Quando eu ouço alguém dizendo que "você não pode zombar da fé", e usando esta declaração para justificar ou amenizar a gravidade de um atentado terrorista, lembro imediatamente de todos os vídeos perniciosos do Porta dos Fundos, dos inúmeros escárnios do movimento LGBT à fé cristã, e das manifestações pró-aborto com as vadias tripudiando publicamente de símbolos sagrados para os cristãos que ainda têm neles um pouco da sua fé, e se ofenderam profundamente com a penetração de crucifixos nas vaginas daquelas que buscam respeito usando a afronta. Quanto a nada disso o Papa jamais se pronunciou – inclusive quanto às ofensivas charges da mesma revista à Igreja Cristã.

Preciso discordar do Papa, e me perdoem os católicos por isso, mas o faço em favor da verdade. Não preciso respeitar a "fé" das pessoas, mas o seu direito de tê-la. Isso sim, é sagrado, e é esse direito fundamental que os islâmicos radicais estão tentando usurpar – querem extinguir a divergência de fé, pela força.

Para ser ainda mais clara, o nosso respeito é devido às PESSOAS, não às suas ideias, do contrário, não nos seria lícito debater pensamentos e crenças e, portanto, o nazismo ainda teria um lugar legítimo e cativo no nosso mundo, e a produção intelectual seria extinguida. Logo, se você crê que adorar ratos e vacas faz muito sentido, vou defender seu direito de crer nisso, mas me reservo o de achar bobo, irracional, hilário e estúpido, tudo ao mesmo tempo, e ainda postar no meu twitter usando de um pouco do sarcasmo que me é peculiar – nada pessoal, ta?

Mas estávamos falando do que é sagrado, e vou, finalmente ligar os pontos. É que o sagrado diz respeito à consideração, e não à substância, e a Bíblia (para mim, sagrada) nos ensina isso.

Se nos debruçarmos nas Escrituras, veremos que Deus considerava como sagrado aquilo que separava do uso comum, corriqueiro, para que fosse dedicado a ele. É por essa razão que ele mandou Moisés tirar as sandálias para que pisasse naquela terra que, segundo ele, era santa. Ela estava sendo destacada, naquele momento, como o lugar onde Deus se revelaria a Moisés, e a partir de então deixou de ser um lugar qualquer.

Também é por isso que os objetos utilizados no Templo eram consagrados antes de serem usados e, portanto, sagrados a partir daquele momento. Os talheres do Templo, por exemplo, certamente não eram feitos de um material extraterrestre (obviamente eram de metal), no entanto, desde o momento da consagração, não mais eram usados como os da nossa casa, mas com um cuidado e consideração especiais, para um propósito definido estabelecido por Deus e, portanto, sagrado. É justamente daí que vem a crença de que as pessoas que se consagram a Deus são santas: não porque têm uma substância diferente de todas as outras, ou porque sejam moralmente superiores, mas porque a Bíblia ensina que uma vez separados para Deus pelo sangue de Jesus (do gregohagios), embora sejam de carne e osso, Deus assim as considera – santos, ou sagrados, como preferir.

O que eu quero dizer, finalmente, é que, de forma prática, o sagrado é aquilo que você assim o considera, e não podemos exigir que o mundo, na sua pluralidade de pensamento, respeite e engula nossa fé, como se ela fosse inquestionável. É assim que fundamentalistas agem, mas não é assim que Deus ensina. É assim que os xiitas pensam, mas não é isso que a razão contempla. Para os cristãos, sagrado deve ser aquilo que DEUS diz que é, e ponto final, mas quem se importa com isso além de nós?

O papa está errado, e eu vou continuar rindo de quem tem medo de passar embaixo da escada para não ter azar e lê horóscopo. Vou continuar matando ratos e comendo vacas. Eu também não respeito a fé dos satanistas, nem sou obrigada, mas respeito a cada um deles como PESSOAS, e seu direito de adorar a quem ou o que quiserem.

Como afirmou sabiamente o apóstolo Paulo na carta aos Romanos, "tens fé? tenha-a para ti mesmo", e conforme-se de que muitos irão discordar dela, e outros tantos irão desrespeitá-la, mas a mantenha bem guardada no íntimo do seu coração, pois é "mediante a fé que sois salvos", e é a fé o seu escudo contra o mal deste século – talvez não o mal dos jihadistas islâmicos, que pode nos roubar a vida natural, mas certamente o mal que pode nos roubar a eternidade.

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