Dá para amar uma criança difícil?

Dá para amar uma criança difícil?

Fonte: Atualizado: sábado, 31 de maio de 2014 às 10:19

Quando eu era criança, odiava ir à freira livre. Não suportava o barulho, os feirantes gritando, os carrinhos disputando espaço, as frutas caídas no chão, desperdiçadas, o tumulto nas saídas. Posso ter sido classificada como uma criança do tipo "fresca", mas o fato é que eu sofria. Não chegava a fazer birra, nem nada, mas era um sacrifício suportar aquilo tudo. Até hoje, o barulho me incomoda. Precisei me tornar adulta para aceitar que isso poderia ser uma característica, não um capricho.

Crianças que reagem assim exigem uma dose a mais de paciência dos pais. Criar filhos é uma eterna descoberta de sensibilidades. É como conhecer qualquer pessoa. Você vai convivendo, sentindo o que a agrada, do que ela não gosta tanto, o que a deixa nervosa ou irritada, o que a deixa contente ou relaxada. Só que, vez ou outra, vem aquele berro, aquele tapa na sua barriga, uma cara enfezada, uma braveza que você não entende onde pode ter nascido! Haja a tal paciência. E essa virtude, sabemos, é artigo um tanto raro entre os pais de hoje. Por inúmeros fatores: a correria de ter de administrar pressões de trabalho e filhos, o ritmo frenético da cidade grande, a saudade e a culpa por não estar gastando tanto tempo quanto gostariam com as crianças. Você alguma vez já teve um embate com seu filho a ponto de desejar que a segunda-feira chegasse logo para você correr para o trabalho? Sim? Não se culpe. Sentir raiva ou simplesmente não querer lidar com aquilo naquele momento é normal. Muito normal.

Culpa de quem

Mas será que essas situações fazem com que os pais amem menos os filhos em determinados momentos? "Sentimentos vêm e vão, variações afetivas são normais. Os pais não devem se apegar ao que não podem controlar. No entanto, eles devem se culpabilizar, sim, em como refletem esse sentimento no trato com os filhos", diz Yves de La Taille, professor do Instituto de Psicologia da USP. É aquele conceito básico: pode sentir raiva, mas não precisa bater. Quando os pais se permitem sentimentos ruins podem entender melhor e elaborar uma forma mais saudável de vivenciar os conflitos. "Bom pai ou boa mãe não é ser alguém amoroso com os filhos 24 horas. É ser justo, generoso, respeitoso, educando sempre", afirma Yves. Ufa.

Especialista em casal e família, a terapeuta Daniela da Rocha Paes Peres acredita que o mais relaxante para os pais é evitar a sensação de derrota. "Esse sentimento de raiva, de achar que não gosta mais dos filhos é o ápice de uma crise. Mas não quer dizer que a partida está terminada, que você não o ama mais. Este é o ponto de parar e retornar ao equilíbrio. E, a partir daí, procurar uma solução."

Para ela, a criança difícil pode estar sinalizando justamente o que não vai bem dentro de casa. "Por vezes, é uma forma mais pungente de pedir atenção, amor. Outras, um desafio à autoridade dos pais." Ela não nega que pode ser uma característica da criança. Pois este é justamente o ponto principal para a educadora norte-americana Mary Sheedy Kurcinka, de Minnesota. Diretora do Parent Child Help, um serviço para atendimento a pais, é autora de best-sellers como Raising Your Spirited Child (algo como Educando seu Filho Impetuoso). Esta tradução livre talvez tenha pouca importância aqui. O interessante é o significado. Kurcinka usa o termo para denotar essa característica, atribuindo-a, inclusive, à variação genética de cada pessoa. Dessa forma, entende que ela deve ser, acima de tudo, compreendida. E que chegar a este ponto é o melhor para todos. Inclusive para o bem-estar dos pais. "Quando começar a ficar chateado, distancie-se do problema ou respire fundo. Diga a si mesmo: ‘Meu filho está perdendo a calma, mas eu não tenho de perder também’", diz Mary Kurcinka (veja mais em entrevista na página seguinte).

O outro

De qualquer interpretação, o "conselho" é um só: ouça a criança. Mas ouça de verdade, com calma. Algumas vezes, terá de ler na criança o que ela não consegue dizer, interpretar mesmo. Ela talvez não consiga explicar, mas sempre dá pistas. Pois seja por razão genética, seja por um comportamento temporário ou por falta de limites, são os pais que irão ensinar a criança como ela deve lidar com os sentimentos de rejeição, raiva, irritabilidade e outros conflitos inerentes a qualquer passagem pelo planeta Terra. É papel dos pais ensinar os filhos "difíceis" a lidar com suas próprias características, para serem socialmente possíveis.

"Os pais têm de conhecer o estilo da criança. Entender, aceitar, flexibilizar as expectativas e, quem sabe, modificar. É aprender a conviver com eles, pois padrão de educação não existe mesmo. Cada família tem seu jeito de impor regras. Não compare a sua com outras", afirma a psicóloga Simone Savaya.

Isto e aquilo

Quando se trata de uma criança com comportamento hostil, daquelas que dão trabalho mesmo, show em público, é fácil colocar aquele monte de adjetivos. "Ela é assim mesmo", "não pára quieta", "é difícil de lidar". "O ato de rotular deve ser evitado, principalmente porque crianças mudam", diz Yves de La Taille. Rotular pode ser até perigoso. "Criança se apega demais ao que é dito a ela. Se incorporar, pode fazer do adjetivo, realidade."

Apontar somente os pontos negativos da criança não é bom para ninguém nessa história. Fica aquele ciclo de pensamentos ruins, ar de fracasso, ar de que não dá para ser de outro jeito. Resultado: a criança fica mal e os pais, pior ainda. Por isso, é o caso de olhar para o que ela tem de bom. Não ficar atento somente ao que os filhos fazem de errado. Mude o foco, converse com outros pais, sugira outras coisas para fazerem juntos, descubra algo de que eles gostem muito.

Para assumir a responsabilidade que lhes cabe, os pais têm de saber que ela pode, sim, dar mais trabalho. "Para uns vai exigir mais, tem de se dedicar mais, explicar mais. As crianças de hoje têm outras necessidades, não basta um olhar reprovador. E essa dedicação toda, de explicar etc, não precisa necessariamente acontecer todos os dias. Tem dias que você está mais disposta, tem mais tempo. Outros, não." E está tudo bem. Não tem jeito: "Pai e mãe têm de ter maturidade", afirma a terapeuta Daniela. Serão eles que farão a diferença no desenvolvimento dessa criança.

Mais do que só irritação de criança

Autora de Raising Your Spirited Child (algo como Educando seu Filho Impetuoso, Editora Harper Perennial), a educadora norte-americana Mary Sheedy Kurcinka afirma que os pais precisam relaxar até para poder mostrar aos filhos o quanto são amados

Em seus estudos, é comum encontrar crianças "difíceis"?

Por volta de 20 a 25% das crianças são "difíceis". Ser difícil está ligado à nossa genética. Coloque duas crianças em uma sala e toque um sino alto: uma irá, quieta, voltar-se para o barulho; a outra começará a gritar furiosamente sem parar, agitada. Isso não é uma reação aprendida - é inata. No entanto, como os pais respondem a isso é muito importante. Para acalmá-la, em vez de gritarem com ela ou ficarem preocupados, eles podem ajudá-la a aprender a controlar sua reação. Com o passar do tempo, o corpo dela não reagirá mais tão intensamente.

Que tipo de criança é essa? Está querendo chamar atenção?

Ela não está tentando chamar atenção ou embaraçar os pais. Ao entender seu temperamento, você começa a perceber que há certas situações que a provocam a reagir assim. Se ela é altamente sensível, por exemplo, estar em um lugar cheio, com gente barulhenta, é exaustivo demais. Aí, você a ensina a lidar com essa situação, dizendo, por exemplo, que estão indo a uma loja - vá cedo, quando ela ainda está bem descansada - e que ficarão lá por um curto período de tempo. Você decide se, depois de alguns minutos, ela pode lidar melhor com aquilo ou é hora de ir para casa. Precisa dar tempo suficiente a ela. E toda vez que você apressá-la, ela irá se irritar.

O que os pais podem fazer?

Como pai ou mãe de uma criança difícil, é importante reconhecer que vai ter muito trabalho. Então proteja seu sono - planeje ter 8 horas por noite -, planeje o tempo para se exercitar, ou para conversar com amigos. Quando começar a ficar chateado, distancie-se do problema ou respire fundo. Diga a si mesmo: meu filho está perdendo a calma, mas eu não tenho de perder também. Então, foque nas qualidades dele e realmente olhe para os rótulos que usa para descrevê-lo. A criança teimosa é comprometida com seus objetivos. Quando você usa um rótulo positivo, abre seu coração para ela. Nunca é tarde demais. Essas crianças possuem características, traços que nós valorizamos em adultos. Elas são mais apaixonadas, sensíveis, perceptivas e energéticas. Estas são coisas boas, e nós podemos ajudá-las a desenvolver suas habilidades, para que elas as usem melhor.

Por: Cristiane Rogerio

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