Dormir fora de casa

Dormir fora de casa

Fonte: Atualizado: sábado, 31 de maio de 2014 às 09:12

Essa é uma prova tão difícil quanto inevitável, ainda mais quando é a primeira vez que seu filho não vai dormir no quarto dele. Como tudo no mundo acelerado que vivemos, tem acontecido cada vez mais cedo. As aventuras fora da segurança do círculo familiar começam geralmente pela casa da madrinha, avó ou equivalente. Mas não vale ficar aí, tem que seguir para outras casas mais distantes.

Tive a sorte de passar a infância no interior, mais especificamente na região de Ituverava, onde o estado de São Paulo se dissolve no Triângulo Mineiro. Onde mais teria a chance de iniciar as minhas dormidas num sítio sem telefone e energia elétrica? Lá, no meio do mato, quando batia a saudade, não dava para ligar para mamãe ou conversar com os amigos da escola pelas redes sociais. A nossa sala de chat era uma generosa cozinha, ao pé do fogão a lenha, onde as conversas geralmente descambavam para histórias de medo, peraltice e valentia.

Com a família do “tio Zé” – que apesar do nome não era parente próximo –, conheci personagens e situações que ampliaram minha coragem e visão de mundo. Ainda me custa acreditar na lembrança de que, iluminados por lampiões a querosene, íamos e voltávamos a pé, ziguezagueando por trilhas esculpidas pelo gado no morro, das festas de “arraiá” nas fazendas dos vizinhos. Quantos aprendizados novos surgiram de eu ter que me virar sozinho.

Longe de mim sugerir que a infância de “antigamente” é melhor que a de hoje. Ao contrário, vejo a meninada agora com oportunidades até mais desafiadoras e criativas. Mas, por conta das maquininhas de controle – celular e etcéteras digitais – há uma tentação grande dos pais de não deixá-los viver plenamente a experiência de sair do casulo. Mesmo que por uma noite só.

Respire fundo e procure observar a cena: é docemente revelador os brinquedos, objetos e até as roupas escolhidas para ser levadas para a “viagem” para fora do campo gravitacional dos pais. Repare ainda na linguagem corporal quando eles voltam: a expressão facial traz novas nuances, até a voz parece outra, surgem novas palavras – e palavrões, evidentemente... Parece outra pessoa! Alguém que começou andar com as próprias pernas de verdade.

Este assunto tem me fascinado tanto que dia desses, sem querer (ou querendo?), comprei por impulso uma barraca de camping, dessas pequenas, que se armam num estalar de dedos. Foi um tiro certeiro na mosca. Agora, de vez em quando, se não vão dormir fora na casa de amiguinhos, o pessoal usa a barraca para “dormir fora”, mesmo quando estão dentro de casa. A pequena cabana de plástico virou uma espécie de nave, plantada no meio da sala de estar, que os leva para outros mundos fora do campo gravitacional de papai e mamãe.

Desconfio que a grande dificuldade que temos para viver plenamente o fato dos filhos pequenos dormirem longe da gente é que se trata de uma prévia do ato real do distanciamento que acontecerá em algum lugar do futuro. Tudo é uma questão de manter a ansiedade pelo controle e o afeto calibrados na medida certa para poder apreciar a beleza da primera vez que o filho dorme fora de casa. Não é fácil. É apenas necessário e inevitável.

 

por Marcelo Tas

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