Guarda compartilhada: Um filho, duas casas

Guarda compartilhada: Um filho, duas casas

Fonte: Atualizado: sábado, 29 de março de 2014 às 03:25

Na primeira cena, um pai explica à filha que vai sair de casa. Para manterem contato a qualquer hora, ele dá à menina um telefone celular. A tristeza inicial fica de fora das situações do dia a dia, onde eles se comunicam via telefone. Algumas despertam riso, como a que o pai, em plena fila do mercado, tenta afugentar monstros que "estão" debaixo da cama da menina. E, antes que o telespectador se pergunte "eles não se encontram mais pessoalmente?", o pai aparece de surpresa para buscá-la na aula de balé. Suspiro. A propaganda de celular toca em um tema atual: como os pais separados criam os filhos sem estar perto deles todos os dias? O telefone, de fato, ajuda (inclusive aos pais que moram na mesma casa). Mas algumas famílias encontraram um jeito mais eficiente para manter os vínculos com os filhos após o divórcio: a guarda compartilhada.

Praticada há pelo menos 20 anos na Europa e nos Estados Unidos, o modelo dá a pais e mães separados obrigações e oportunidades iguais de convivência com os filhos. No Brasil, começou a ser discutido com maior profundidade a partir de 2002, com a entrada de um projeto de lei em prol de sua aprovação. Em vigor oficialmente desde 2008, o regime timidamente conquista espaço nos tribunais e na sociedade brasileira. Isso porque ainda existe uma noção equivocada de que é a mãe quem deve "cuidar" dos filhos e que o pai deve sustentá-los. Mas a tendência é que isso mude, algo que já pode ser percebido nas estatísticas. Segundo dados do IBGE, dos 145 mil divórcios e separações concedidos em 2003 a casais com filhos menores de idade, apenas 2,7% terminaram em guarda compartilhada. Cinco anos mais tarde, esse percentual subiu para 4%. Isso sem contar os casais que não têm a guarda compartilhada oficializada. Afinal, a distância imposta pelos tradicionais encontros quinzenais já não é o suficiente para as famílias atuais.

O engenheiro Sandro Marino, 27 anos, pai de Laura e Giuliana, de 8 e 4, logo percebeu que não conseguiria ficar longe das filhas. Um mês após a separação, dois anos atrás, solicitou a guarda compartilhada. "Cheguei a recorrer ao juiz, mas logo eu e minha ex-mulher conseguimos entrar em acordo", diz. Desde então, os dois compartilham das decisões referentes às filhas e participam igualmente da rotina e da educação delas. As meninas dividem a vida entre as duas casas sem maiores problemas. Toda segunda e quinta-feira, vão embora da escola com o pai. São esses os dias em que dormem na casa dele, sem descartar, claro, os finais de semana alternados. Nos outros dias, elas moram com a mãe.

Mas não são todos os ex-casais que conseguem resolver suas diferenças e ressentimentos a favor dos filhos. Com o funcionário público Ronaldo Campos, 41 anos, tudo parecia correr bem. Ele se separou no fim de 2008, quando sua filha, Giovanna, estava com 6 anos e conseguiu a guarda compartilhada sem problemas. Ele e a ex-mulher se revezavam para buscar a menina na escola (ela dormia na casa de quem a buscava) e decidiam juntos sobre médicos, escola, atividades extracurriculares. Foi assim por pouco mais de um ano, até que a mãe tomou por conta própria algumas decisões importantes. "Fui surpreendido ao saber que, sem meu conhecimento, ela tinha mudado nossa filha de pediatra e de algumas atividades. Questionei a decisão unilateral e ela afirmou ter feito as mudanças para atender a interesses próprios (como preço e distância). Respondeu que, se eu me opusesse, ela pediria a guarda unilateral."

Foi o que fez e, assim, conseguiu uma "guarda provisória". Campos, que recorreu da sentença e aguarda julgamento, hoje é obrigado a manter pouco contato e diz ter notado um aumento da animosidade da ex-mulher quando soube que ele estava com uma companheira. O ciúme, diz, acabou com o que vinha dando certo.

A produtora Ana Maria (nome fictício) segue tentando manter o esquema. Ela se separou quando a filha tinha 1 ano e o ex-casal optou pela guarda compartilhada: uma semana na casa da mãe, outra na do pai. Mas logo as diferenças apareceram. Na sua casa, a alimentação saudável sempre foi prioridade, mas na do ex-marido não. E ela temia que a filha se entupisse de bobagens. A solução foi fazer com que a babá, que ia junto com a menina para a casa do pai, garantisse a qualidade das refeições.

O ideal, claro, é que haja um mínimo de tolerância, respeito e boa vontade, para que a guarda compartilhada dê certo. Afinal, a rotina de trocas pode se transformar em mais motivos para brigas. Ao assumir a guarda compartilhada, pai e mãe devem ter disponibilidade e disciplina para cumprir tarefas do dia a dia, como o leva-e-traz para a escola, os horários de sono e refeições. De nada adianta um pai requerer a presença do filho em três noites por semana, se ele próprio não estiver disposto a estar com a criança nos dias estabelecidos. E por questões práticas, o ideal é que as casas sejam relativamente próximas e que ambas tenham uma boa estrutura para os filhos.

Já para as mães que torcem o nariz só de pensar em deixar os filhos com outra pessoa (mesmo que seja o pai!), a bancária Patrícia Zilli, 42 anos, conta que a divisão representa um alívio. "Como tudo que diz respeito a eles é previamente discutido, fico muito tranquila em relação à educação dos meus filhos", diz a mãe de Matheus, 16 anos, e Gustavo, 13, que vive a guarda compartilhada há dez anos. Um dos motivos pelo qual ela recomenda esse tipo de regime é porque as mães ganham mais tempo para si – algo que reclamam tanto nos dias de hoje.

De fato, a guarda compartilhada pode ser conveniente para as mães, já que permite que tenham tempo livre para a vida pessoal e profissional. Para a advogada Sandra Vilela, especializada em direito de família, esse tipo de guarda é uma consequência natural da revolução feminista: "A mulher vem para o mercado de trabalho e o papel do homem na família sofre uma transformação. O pai que era só provedor passa a se envolver com a educação dos filhos. E isso não pode se perder na separação".

Não há dúvidas de que quem mais ganha com a guarda compartilhada são as crianças, já que elas têm a oportunidade de manter os vínculos com ambos os pais. Ainda que a rotina possa parecer um pouco confusa, quando eles estão de acordo com as regras, como horário de dormir, não há problema para os filhos. Afinal, ser pai e mãe é levar ao médico, ajudar na lição, dar bronca, resume o publicitário Alexandre Borges, 39 anos, que tem uma filha de 7 e há quatro vive a guarda compartilhada. "Se ficar com o filho só dois fins de semana por mês, você acaba virando um tio", diz. "A guarda compartilhada veio para corrigir isso."

Decisão amigável e duradoura

Faz dez anos que o psicólogo Evandro Luiz Silva, de 43 anos, e a bancária Patrícia Zilli, de 42, se separaram. Na época, os filhos Matheus, 16 anos, e Gustavo, 13, estavam com 6 e 3 anos, respectivamente, e, desde o início, o casal optou pela guarda compartilhada. Eles decidiram de maneira amigável e procuraram um juiz apenas para homologar a situação. Patrícia resolveu apostar. "Fiquei meio receosa quando o Evandro me propôs a guarda compartilhada, mas ao mesmo tempo resolvi dar um crédito a ele", afirma. "Além de ser psicólogo e entender do assunto, ele era, e continua sendo, um excelente pai." Hoje, eles contam que nunca tiveram problemas e estão certos de que foi a melhor opção para todos. As crianças dormem com o pai às segundas e quartas, com a mãe às terças e quintas, alternando os finais de semana – tudo isso, com flexibilidade. O pai comemora. "Meus filhos têm duas casas, com seus quartos, roupas, brinquedos... Eles não vêm para cá de mochila, como se fossem para a casa de um amigo." Mas a melhor parte, claro, é que os vínculos foram mantidos.

Entenda a guarda compartilhada

O que é? Trata-se de um tipo de guarda aprovada em 2008 na qual tanto o pai quanto a mãe permanecem responsáveis pelos filhos, ficando a cargo de ambos as principais decisões relativas à criança.

Quais as obrigações e deveres de cada genitor? Pai e mãe devem compartilhar as questões relativas à saúde, educação e formação dos filhos. Em relação ao convívio, a frequência deve ser estipulada em um acordo amigável ou em juízo. É comum haver uma "democratização" do tempo de ambos os pais com os filhos e essa divisão não precisa ser exatamente igual para cada um. A pensão alimentícia continua existindo, mas, na medida em que a criança passa mais tempo com os dois genitores, pode haver uma negociaçãopara redução do valor em relação ao que seria pago na guarda unilateral.

Como obter essa guarda? Pode ser obtida em acordo ou ser legalmente requerida, ficando a cargo do juiz a decisão.

Tão longe, tão perto

Quando o editor de livros Analdino Paulino Neto, 56 anos, e a assistente odontológica Cássia Marciano, 36, decidiram se separar, a filha Amanda tinha 2 anos. Os seis anos seguintes foram de brigas e disputas judiciais. Neto lutou para obter a guarda compartilhada, mas foi em vão. Até que, aos 8 anos, a própria Amanda pediu à mãe para ficar mais com o pai. O ex-casal finalmente entrou em acordo e dividiu a guarda da menina. Nessa altura, Neto já morava em São Paulo enquanto a filha continuava em Goiânia. Mesmo assim, a relação ficou mais próxima. As visitas variam conforme o trabalho de Neto, mas ele faz questão de ir a Goiânia pelo menos uma vez por mês. Em fevereiro, no aniversário de 12 anos da filha, todos se reuniram outra vez: o ex-casal, a filha e ambas as famílias. Cássia reconhece hoje a felicidade de Amanda e está satisfeita com o novo modelo que a família escolheu.

Por: Marina Vidigal

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