Luto na maternidade

Luto na maternidade

Fonte: Atualizado: sábado, 31 de maio de 2014 às 09:42

Grávida de gêmeas, Marcia Helena iria finalmente realizar o sonho de ser mãe. Mas ao voltar da maternidade e entrar no quarto, tinha apenas um bebê no colo. Acomodou Rafaela, debruçou-se sobre o berço vazio e chorou a perda da filha gêmea, que se chamaria Giovana. Ela não pode segurá-la nos braços, nem saber se ela tinha os olhos do pai. Ou se realmente era a cara da irmã que sobreviveu. O bebê virou uma lembrança confusa do conturbado momento do parto e um processo judicial que se arrasta por 10 anos.

No dia 2 de novembro de 2000, Marcia dava à luz Rafaela e Giovana. O choro que deveria encher a sala de alegria foi motivo de preocupação. Apenas um choro e o silêncio. A segunda filha nasceu morta e Márcia nunca chegou a vê-la. “Logo retiraram o corpo do quarto, embrulhado em um lençol. Eu pedi para ver, queria segurá-la, orar para ela, dizer adeus. Não deixaram”, relata.Assim como ela, 25.867 mulheres passaram pela dor de perder um filho ainda no ventre só em 2009, de acordo com dados preliminares do DataSus. A proporção é assustadora e dolorida: a cada 100 crianças nascidas vivas, uma nasce morta. E apesar do índice de mortalidade infantil decrescer a cada ano, o número de bebês mortos ainda no útero aumentou 30% no País de 1998 a 2008.

“A morte fetal intrauterina é muito ampla, as causas são as mais variadas possíveis. Entre as mais conhecidas estão as anomalias congênitas, infecções virais, síndromes diversas, patologias do cordão umbilical, incompatibilidades sanguíneas, além das malformações. Ainda assim, quase 50% dos óbitos fetais são inexplicáveis”, afirma Denis José Nascimento, presidente da comissão nacional especializada em gestação de alto risco da Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo).

Dores e direitos

Nesse momento de dor intensa, muitas dessas mulheres sofrem mais uma violência ao terem negado seu direito de se despedir do bebê e de dar àquele que foi membro da família o que chamam de “destino decente”. Marcia não recebeu o corpo da filha que tanto desejava.   “Essa criança ficou para sempre insepulta. Hoje, 10 anos depois, eu me sinto em dívida com ela, me sinto culpada. Ainda não me despedi”, relata.

O hospital alegou ter enterrado o bebê e simplesmente não deu mais informações à Marcia. O impasse virou caso de justiça. Milhares de mulheres, fragilizadas e sem informação adequada, não sabem quais são seus direitos nesse momento.

A legislação federal garante o direito ao sepultamento quando a gestação tiver duração igual ou superior a 20 semanas, ou quando o feto tiver peso igual ou superior a 500 gramas ou ainda estatura igual ou superior a 25 centímetros. O enterro é obrigação e dever dos pais. Stephanie Vasconcelos, do Distrito Federal, recebeu seu bebê em um frasco de vidro.   Desorientada, foi para casa sem saber quais as primeiras providências a tomar e, desesperada, guardou o feto na geladeira de casa. “Olhar para ela dentro daquele vidro foi desesperador. Eu chorava muito”, disse a garota.

As mães que perderam seus bebês também têm direito à licença-maternidade. A lei garante 120 dias para recuperação física e psíquica, independentemente do nascimento com vida da criança, além da garantia ao emprego. Diz a lei trabalhista: “O nascimento de natimorto não é considerado aborto e a empregada tem direito ao gozo de salário-maternidade integral de 120 dias. Da mesma forma, o nascimento com vida da criança, ainda que morra imediatamente após o parto ou após alguns dias, não retira da mãe o direito ao salário-maternidade”.

Durante esse período, a mulher não pode trabalhar. Caso isso ocorra, ela terá direito ao recebimento, além do benefício previdenciário, à remuneração pelo trabalho.

Fora dos critérios estabelecidos, no entanto, a lei entende a expulsão do feto como um aborto e o hospital ficará responsável pela destinação adequada – que, em geral, é a incineração. Na França, o serviço funerário de Paris organiza uma cerimônia trimestral de cremação de todos os fetos e corpos de bebês. A decisão foi tomada depois que se descobriram 350 corpos em condições precárias de conservação, mas também serve para que os pais possam se despedir dos filhos.

Mais raro, em alguns hospitais brasileiros também há a opção de doar o feto para pesquisa por meio da assinatura de um documento. Neste caso, ele é encaminhado para algum centro de estudos ou universidade.

Falta de preparo

O nascimento é, em geral, um momento de alegria e vida. Médicos e enfermeiros, acostumados a participar ativamente dessa ocasião importante, se vêem desesperados quando a morte, exceção à regra, se faz presente.

“Ouvi um caso que me marcou: a equipe médica já sabia que o bebê estava morto, a mãe estava preparada. No entanto, no momento do parto, a anestesista ficou tão angustiada com a situação que deu mais anestesia para que a mãe não visse o bebê”, relata Debora Genezini, psicóloga do Hospital Samaritano, de São Paulo.

Para quem acha que é impossível lidar com a morte de outra forma, a pediatra Jussara de Lima e Souza dá exemplos cotidianos de como fazê-lo. Ela é a responsável pela UTI pediátrica neonatal do CAISM (Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher, da Unicamp), em que ajudou a implantar os cuidados paliativos, desde 2002. Ali, são atendidos, em média 90 bebês por mês. Muitos não voltam para casa e aqueles que finalmente vão nem sempre são exatamente como seus pais sonharam.

“Nós sempre imaginamos uma criança gordinha, sorridente. Muitas são magrinhas, algumas têm malformações. A primeira perda é a do bebê sonhado, para lidar com o bebê real”, diz. Jussara relata o caso de um recém-nascido, cujo pai, desnorteado, encontrou na UTI.

“Levei-o para uma sala, dei água e ele me contou o quanto estava sendo difícil perder aquele filho, o quanto ele queria brincar, jogar futebol com ele. Eu só escutei. Dias depois, essa criança se recuperou e foi para casa e o pai veio me agradecer: ‘Doutora, a senhora estava comigo no pior dia da minha vida, mas teria sido muito pior se você não estivesse lá.’” A história, passada há quatro anos, ainda deixa a médica com a voz embargada.

“O filho que ele levou para casa é uma criança que precisa de cuidados especiais e que não vai jogar bola. Mas ele me fez ver o quanto foi importante ter estado ali, mesmo que fosse para ajudá-lo a abrir mão de levar o bebê dos sonhos”, conta. São por essas e outras histórias semelhantes que Jussara defende o estudo de cuidados paliativos e sua implantação em todos os hospitais.

No berçário em que trabalha, implantou muitas mudanças significativas. Lá, não há horário de visita determinado para os pais e o contato entre eles e a criança é reforçado. “Colocamos o bebê no colo, para que eles possam dizer o quanto gostam dele, se sentirem mais mãe ou pai. Mas até mesmo após a morte, o tratamento é diferenciado.

“Se a família não está aqui no momento, nós vestimos a criança, colocamos em um berço e deixamos na unidade para que eles possam pegá-lo no colo, se despedir. É mais difícil para a equipe, porque iremos vê-los em um momento de crise, mas estamos fazendo mais do que simplesmente cuidar”, conta.

No caso dos natimortos, bebês que nascem já sem vida, o contato da equipe é diretamente na sala de parto. Para Jussara, é importante que a mãe veja o filho ou a experiência do luto poderá ser ainda mais complicada.

“Ela estava grávida e, de repente, não tem mais o bebê, não tem imagem dessa criança. Elaborar a perda de alguém que você não conheceu é muito mais complicado porque fica mais subjetivo”, opina.

A médica aprendeu que é preciso ir além da medicina pura e simples para tratar de um tema tão delicado. “Quando comecei a estudar o assunto, queria aprender o que falar para uma mãe que está perdendo o bebê para que ela não chorasse. Descobri que não existe, mas que eu posso ajudar para que a perda não seja pior do que já é.” E finaliza: “Tenho de cuidar daqueles que estão morrendo para que eles tenham a melhor morte possível, sem sofrimento, e para que a família que fica aqui tenha condições de continuar vivendo depois da perda.”  

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