Não há lugar onde possa se sentir mais em liberdade que em sua casa

Não há lugar onde possa se sentir mais em liberdade que em sua casa

Fonte: Atualizado: sábado, 31 de maio de 2014 às 09:38

Yumi Sakate nasceu e cresceu em Botucatu, interior de São Paulo. Caçula de uma trupe de cinco irmãos, ela acompanhou inúmeras idas e vindas para a capital do estado — fossem estadias temporárias, fossem mudanças parciais ou inteiras. Então ela mesma mudou para Pinheiros, onde fica o apartamento da família, quando veio cursar a faculdade de moda. Sempre, como era de esperar, dividiu a morada com algum dos irmãos. Até que o último solteiro se casou no início deste ano e deixou os dois quartos, sala e cozinha apenas para ela. Hoje, a estilista de 30 anos ainda estranha os sons do prédio, os barulhos da rua, a sensação de muito espaço. “Está tudo diferente”, conta. Yumi gosta de viver sozinha, faz questão de deixar isso bem claro. E ela não é a única: milhões de pessoas em todo o Brasil, segundo o IBGE, migraram depois dos últimos anos da vida a dois ou em família para a vida a um. Precisamente, 12% dos domicílios do país hoje são habitados por uma única pessoa. Toda uma nova geração (ou velha, é arriscado especificar...) às voltas com o desafio de montar seu espaço e gerenciar a vida por si só.  

Desafio, aliás, é uma boa palavra para definir o lado pouco comentado do “morar só”. Charme à parte, essa escolha de vida dá trabalho e custa mais: cada item da lista do mercado é você quem tem que comprar. Isso sem falar na manutenção da casa toda. Ou seja, se for preciso esperar o pessoal que conserta a descarga, por exemplo, é você quem ficará de plantão em plena semana “quente” do escritório. O desafio lotado de detalhes gera uma questão: por que tantas pessoas almejam essa opção? “Hoje o culto do ‘si mesmo’ é um valor. Com isso, cada vez mais a ‘não-dependência’ é valorizada, seja ela material ou afetiva. Pode-se dizer que as pessoas buscam ser independentes mesmo que de forma mais solitária”, diz a psicanalista Laura Hansen. Não é à toa que o mercado voltado para esse público esteja tão aquecido. Os apartamentos para uma pessoa (em média, entre 30 e 70 m2) são os mais procurados, mesmo já não sendo alternativas evidentemente mais baratas. Mas, para abraçar essa causa, é preciso antes calcular bem os custos: tanto os financeiros (do condomínio ao vasinho das plantas) como os emocionais (será que você consegue ser tão independente assim?).  

Tudo funcional Em busca de uma linha mestra para quem quer imaginar como vai ser sua casa solo, conversei com o designer de interiores Fernando Piva. Ele também mora sozinho há nove anos – na mesma rua em que tem escritório, o que facilita muitas coisas. E usa essa experiência para criar seus projetos. Primeiro, diz ele, é preciso entender a importância dos próprios costumes e de seu   modus operandi . “Comece a observar tudo que funciona – ou não – na sua casa atual. E imagine como gostaria de viver. É bom pensar em como os espaços irão funcionar e montar uma lista do que precisa ser feito”, aconselha. Afinal, é preciso funcionalidade para começar a viver em um apartamento que tenha poucos móveis. Assim como habitar uma casa lotada e sem espaço pode ser bem desconfortável. Conclusão: priorize o prático. Como lembra Piva: “Conheça suas necessidades”. Afinal, toda casa tem seu funcionamento, sua estrutura. As tais engrenagens da vida como ela é, em suas mãos.  

Vale ressaltar que o morar só também abrange o “fora” da casa. O economista Saididin Denne precisou de cinco meses de buscas para alugar um apartamento na cidade de São Paulo. Com 72 anos, ele queria, mais do que tudo, segurança. “É impossível para mim, em minha idade, me arriscar por caminhos que não conheço. Por isso, priorizei a busca por lugares próximos ao metrô.” Encontrou um lar a meia quadra de distância da estação do seu bairro. Se agora parece fácil, difícil mesmo foi deixar a família no Rio para aproveitar uma oportunidade de trabalho. Não é tão simples quanto parece mudar um padrão de vida doméstica. “Essa tendência de morar só é muito maior em núcleos urbanos. Em sociedades tribais e rurais, o valor ainda está em morar em grupo, em compartilhar tudo. Isso está associado à proteção que o grupo oferece”, explica o antropólogo Renato Stutzman, da Universidade de São Paulo.  

Só, mas não sozinho No caso da bióloga Andreza Veiga, também foi duro encontrar o que ela queria. Por mais seguro que parecesse um apartamento, ela almejava a liberdade de uma casa. Depois de muito procurar, Andreza achou seu inusitado canto perfeito: um apartamento com jeito de casa. O primeiro andar tem uma varanda generosa, que a deixa cercada pelas árvores da rua. “Quando entrei aqui, sabia que tinha achado o que buscava. Pude planejar até onde iria pendurar os quadros, colocar a estante dos livros, dispor os sofás. Minha mente encaixou tudo de uma vez”, diz. De tão aconchegante, a casa virou um ponto de encontro para todas as suas amigas. “Adoro receber visitas, hospedar pessoas. Isso traz vida à casa”, diz. “Consegui integrar todos os ambientes para poder curtir cada um dos espaços e não sentir a casa vazia.”  

O roteirista Vitor Angelo se pergunta até hoje por que demorou tanto para morar sozinho. Para se estabelecer, contou com a força dos amigos do peito, que ajudaram na mudança e a deixar a casa funcionando. Como Vitor dividia uma casa antes, trouxe móveis, fogão, geladeira, máquina de lavar e micro-ondas. Comprou duas estantes grandes para colocar os inúmeros livros e, pronto, já estava de casa nova. Mesmo assim, nem tudo foi resolvido de uma vez. Ainda tem muitas coisas em (também muitas) caixas. O próximo passo é comprar um sofá e um móvel para a cozinha. Ele garante que se adaptou muito bem à nova vida e diz que nunca mais quer dividir a casa. “Mas tem um detalhe”, diz. “Moro numa ruazinha pequena, sem saída, e tenho amigos que são vizinhos. Quando quero, não fico sozinho.”  

Toque bem pessoal Bem diferente do fotógrafo carioca Daniel Stanislauskas, que sente falta de bons amigos para levar um papo e beber uma cerveja no meio da semana. Daniel mora só desde jovem. Talvez por ter tido sempre que arrumar as coisas por si mesmo, considera decorar a casa uma arte minimalista. “É muito bacana você ver um apartamento em branco ganhar sua cara, com seus quadros, seus enfeites e suas orquídeas”, diz. Daniel arrumou um marceneiro para fazer estantes e um móvel para acoplar a TV, o DVD e o videogame. A casa tem uma mesa de trabalho, uma cama, louças, um belo tapete e várias almofadas. E só. “Fica fácil de limpar e está sempre arrumada.”  

Cris Berger, por sua vez, tem muita experiência em lugares inóspitos e destinos inusitados. A jornalista gaúcha tem como profissão viajar. Por isso, valoriza tanto seu cantinho próprio – um quarto, uma sala e um escritório. E, em cada destino que visita, ela garimpa uma peça típica e especial para sua moradia. Objetos de todos os tipos, que ficam espalhados por paredes e prateleiras. Uma marionete e um leque da República Tcheca, uma manta feita a mão vinda do Peru, estátuas de guerreiros da África do Sul, um coração de vidro de Los Cabos, no México, e muitos outros. Juntos, mostram um pouco das histórias de viagens e da vida da jornalista – todos reunidos no seu refúgio. “Como sou muito caseira, a casa é uma continuação do meu ser.”  

Sem idealizações  Após dezenas de metros de um declive íngreme, é possível perceber a cabana, camuflada pela vegetação nativa. De perto, ela se revela uma casa com um amplo deque de madeira, onde uma carranca faz a guarda. É a moradia do agrônomo e empresário João José Befi, meio ermitão por natureza, como se define. Do alto de seus 47 anos, João passou a experimentar, pela primeira vez na vida, o extremo de morar sozinho. Largou a cidade e se mudou para um terreno em Embu das Artes (SP). “Meu único vizinho é um pica-pau”, conta. A ave amiga só aparece uma vez ao dia. Seu cumprimento é matinal e dura menos de 5 minutos. João espera por esse momento, mesmo que seja breve. Faz parte da rotina da casa. Outro ritual acontece durante a noite, quando leva seus dois rottweilers brincalhões para andar pelas trilhas. “É uma verdadeira farra. Por aqui, é difícil dormir cedo”, conta, feliz.  

Mas nem todo mundo consegue se sentir tão realizado ao morar sozinho. Primeiro porque esse estilo de vida está repleto de idealizações: muitos sonham com a liberdade de viver só, mas nem sempre estão prontos para encarar essa empreitada com a dedicação e o desapego que ela exige. “É a dimensão do projeto, do desejo de cada um e das contingências da vida que poderá indicar o sentido ou não dessa experiência”, diz a psicanalista Laura. “Claro que idealmente é sempre enriquecedora a experiência de ter de criar soluções próprias para o cotidiano, isto é, se viabilizar na vida.” Morar sozinho nos ensina a sermos totalmente responsáveis por nós mesmos. Mas cada um tem seu tempo para constituir essa responsabilidade.  

Cada vez mais tomando posse da sua morada, Yumi (a estilista do início da reportagem) não deixa de pensar no seu apartamento sempre que possível. A questão mais crucial hoje é a decoração. Por ter herdado a morada que foi de tantos irmãos, também recebeu uma combinação inusitada de móveis que emprestam um ar de improviso aos ambientes. Tem até um beliche em um dos quartos. “Muitas vezes tenho vontade de doar tudo, para começar do zero”, diz Yumi. Assim, complementa, “eu poderia conceber um canto com o meu jeito. Esse sim seria o meu espaço”. Uma criação que ainda nem começou, mas que não para de evoluir na mente da estilista.  

Boas ideias surgem o tempo todo. Como em tudo na vida.      

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