O que pensa um recém-nascido

...estava curtindo o meu cantinho escuro e aconchegante quando senti uma força estranha me empurrando. Antes de entender o que acontecia, puxaram minha ca beça por um buraco pequeno e todo o meu corpo foi espremido para passar por ele. Que aperto! Agora estou em um lugar muito claro, frio, seco e cheio de gente es tranha. Não penso duas vezes e abro o maior berreiro.

...mal me refiz do susto e estão perguntando a um cara chamado "pai" se ele quer cortar o meu cordão umbilical. Aí, tchik... Só sobram uns 2 centímetros. Então, vem uma mulher que prende esse coto com um clipe, passa álcool e explica que ele precisará ser limpo todos os dias até cair, daqui a duas semanas. Engraçado que ninguém perguntou se eu queria! Sorte que não dói. Mas, sem ele, preciso respirar sozinho. E isso não é fácil!

...resolvo abrir o berreiro, e o tal pai pergunta se é verdade que, quando a gente não chora sozinho, leva um tapinha no bumbum. Ei, cadê os meus direitos? Mas logo falam que essa história de tapa não é verdade e que não tem problema se o bebê chora pouco. Eles são sádicos! Estão olhando meu choro e dando risada, felizes. Dizem que o choro faz o ar chegar aos pulmões pela primeira vez e ajuda a expulsar o líquido amniótico de dentro do meu corpo.

...brrr, que lugar gelado. Sorte que se tocam e me enro lam em uns tais panos estéreis (de um verdinho horro roso). Não ficou nem a minha cabeça de fora. Já saquei: a cabeça é um terço do meu corpo e, por isso, precisa ficar protegida do frio. Também me deitam em um berço aquecido para manter meu calor. #issoémuitobom

...tem um sujeito estranho colocando um negócio gelado no meu peito. Ouvi que o nome é este... estetos... estetoscópio. Que palavra difícil! Parece que serve para ver se o meu coração está batendo di reitinho. Essa turma não dá folga. Agora está olhando se me esforço para fazer o ar entrar no meu cor po e sair dele. Quer saber se já aprendi mesmo como funciona esse negócio de respirar sozinho. #eoquemaiseupodiafazer?

...enfiaram uns tubos fininhos no meu nariz e na minha boca. Não machuca, mas também não é o que chamaria de recepção perfeita. Essa sonda serve para tirar o líquido amniótico que não foi expulso pelo parto nem pelo choro. Só estou repetindo o que ouvi. Continuo sem entender nada.

...ei, que é isso? Levei uma espetada na perninha. E ainda fazem piada que é a primeira injeção da minha vida. Explicam que é vitamina K, para regular a coagulação do sangue e evitar uma tal de doença hemorrágica do recém-nascido, que pode levar à morte. Ô, medão!

...estão me examinando inteiro outra vez. É para o boletim de Apgar. E vão fazer essa avaliação duas vezes - no primeiro e no quinto minuto de vida para ter certeza de que estou me adaptando bem. Eles dão nota para tudo. Para o meu coração, a minha respiração, a cor da minha pele (que era meio arroxeada e está ficando rosada) e para a forma como me mexo quando eles me tocam. Até meus reflexos são avaliados: põem algo perto da minha boca e observam se tento sugar, me fazem piscar aproximando um objeto dos meus olhos, veem se os braços e as pernas estão semiflexionados e se procuro afastar coisas que chegam perto do meu rosto. Tirei de letra, mãe! #eumeamo

...oh-oh, essa é nova. Estão me pesando e medindo. Será que vou começar uma vida de modelo? Já ia fazer pose quando, sem glamour, enfiaram meu pé na tinta e o carimbaram sobre um papel - chamam de impressão plantar. Aí, colocaram uma pulseirinha no meu braço e pediram para o pai conferir meu nome. Ué, não me chamo bebê?

...fontanelas! Fontanelas! Foi assim que batizaram minhas moleiras. O médico falou que, quando elas estão fundas, é preciso cuidado, porque pode ser sinal de desidratação. Acabo de perceber que estou coberto por um negócio gorduroso e esbranquiçado. Eca! O que será isso? A moça explica que aquilo é o vérnix e pergunta se o pai quer ajudar no primeiro banho. Ele topa, mas é um banho de gato bem mixuruca. A vantagem é que vão me levar para o seu colo, para minha primeira mamada. Lá vou eu!

...por que me tiraram de perto de você, mãe? E ainda pingaram essa coisa nos meus olhos! O médico está dizendo que é colírio de nitrato de prata para prevenir conjuntivite neonatal. Aposto que quem fez essa lei não foi um bebê! #tôbravo

...de repente, estou no colo de outra mulher. Não faz nem meia hora que nasci e já me mandam para um tal berçário. Esse lugar deve ser importante. Tem fechaduras de segurança, só entra quem é autorizado e fica uma plateia lá fora olhando os bebês pelos vidros. Ih, de novo estão ouvindo meu coração e examinando meu corpinho. Eles querem ter certeza de que está tudo bem comigo.

...o lado bom desse berçário é que eles dão um banho caprichado. Adoro sentir a água morninha e não entendo por que me tiram dela tão rápido. Quis protestar, mas me puseram nesse berço quentinho, a incubadora, para eu não perder calor. Alguém está me vestindo e conta que você escolheu a roupa especialmente para este momento. Valeu, mãe! Vou tirar uma soneca. #adorobanho

...dormi só três horas e lá vou eu. Mas o motivo é bom: estão me levando para perto de você, mãe. Preciso mamar de novo. Senão, tem risco de um negócio chamado hipoglicemia. Espere aí que estou chegando... Logo, logo vou me ajeitar no seu colo e não vou querer sair mais para escrevermos juntos muitos outros capítulos dessa história.

Consultores Clery Bernardi Gallacci, neonatologista do Hospital e Maternidade Santa Joana, em São Paulo; Victor Nudelman, neonatologista e pediatra do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo; Maria Cristina Senna Duarte, pediatra da unidade de terapia intensiva pediátrica e neonatal cirúrgica do Hospital Federal da Lagoa, no Rio de Janeiro

Via Revista Claúdia