O sonho de muitos brasileiros é morar fora. O problema é que o projeto de ficar anos conhecendo culturas diferentes ou mesmo fazer um bom pé de meia e poder voltar com dinheiro na conta nem sempre acontece. Um dos problemas dos chamados repatriados, brasileiros que ficam fora e depois retornam ao país de origem, é a dificuldade de se adaptar novamente a rotina já não tão familiar. De quebra, esse senso de não pertencer completamente vem junto com a dificuldade de se reinserir no mercado de trabalho para garantir renda e qualidade de vida.
As irmãs Luci e Kely Ikeda, de 35 e 34 anos respectivamente, voltaram em dezembro para o Brasil, depois de 14 anos morando no Japão. Luci trabalhou quase todo esse período em fábricas de componentes eletrônicos, mas no último ano mudou de área e foi para a mesma padaria onde a irmã Kely passou nove anos trabalhando. Já se foi a época em que se ganhava bem no Japão. Minha mãe trabalhava com a gente, na padaria. Com mais de 70 anos, teve de se aposentar e voltou para o Brasil porque não compensava mais ficar no Japão, conta Kely.
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A volta foi um choque para as duas. O primeiro mês foi horrível, desabafa Luci. Estranhei muito a falta de educação e de respeito aos horários combinados das pessoas. Nas primeiras tentativas de cruzar uma rua, a indignação com quem atravessava fora da faixa de pedestres, onde carros param sem cerimônia: Mas ninguém leva multa por causa disso?
Ao analisarem o mercado de trabalho, perceberam também que seria difícil manter o padrão de vida que levavam, exercendo atividades equivalentes no Brasil. No Japão a vida é bem prática, as coisas funcionam, diz Luci. Em quatro meses no Brasil, as irmãs vão retomando o contato com amigos daqui aos poucos. Depois de colocarem os documentos em ordem, preparam-se para voltar ao mercado de trabalho. Procuraram a Reduplan, uma das empresas no Brasil que faz a readaptação de dekasseguis (termo utilizado para definir estrangeiros que moram no Japão a trabalho) e reinserção no mercado.
Reacostumar com o Brasil
Renato Shigueru Botuem, sócio-diretor da Reduplan, recebe em média cinco dekasseguis por dia. Alguns já trazem o currículo. Outros, vindos há poucos meses do Japão, ficam completamente desnorteados e isolados, e são empurrados pela família para empresa. Tem gente que passa um ou dois meses em casa, sem falar com ninguém e sem saber como recomeçar a vida aqui, afirma Renato.
Há ainda os que chegam a Reduplan com a péssima notícia de que estão queimando o patrimônio num negócio que não está dando retorno. A maior dificuldade de quem volta do Japão é obtenção de renda. Quem ficou fora não acompanhou as mudanças que aconteceram no por aqui e volta desatualizado sobre a economia e o cotidiano.
Para suprir essa falta de conhecimento, as irmãs Luci e Kely estão passando por simulações de problemas da rotina de um negócio, como lidar com público no Brasil e como montar o currículo tirando proveito da experiência delas no Japão. Quando você chega, não sabe nem se a roupa que escolheu está certa aqui, desabafa Luci.
As duas concordam que, mesmo decididas a ficar no Brasil, inevitavelmente, todo dekassegui passa pela tentação de voltar para o Japão. O tempo todo eles lembram você de que você é gaijin (estrangeiro, em japonês). Aqui no Brasil, te chamam de japa. Parece que você não tem nacionalidade, diz Kely. As diferenças culturais são grandes. Quem é tido como tímido no Brasil, no Japão é tagarela, afirma Renato.
Choque cultural
Embora o choque de cultura com o Japão seja mais evidente, é também comum para quem volta de outros países, principalmente dos desenvolvidos. A psicóloga Simone Eriksson, 40 anos, já morou por três anos e meio nos Estados Unidos, dois anos na Suécia, onde casou com o marido, sueco, e na última temporada no exterior, passou quatro anos na Itália. Viajei para os Estados Unidos aos 17 anos por conta da pressão social de ter uma experiência internacional o mais rápido possível, diz. De tanto mudar, voltar e ir de novo, quando morava na Itália, fiquei muito confusa e fui fazer faculdade de psicologia por lá. Eu simplesmente não sabia mais onde eu pertencia.
Simone se especializou no atendimento psicológico a pessoas em transição cultural. A repatriação depende de fatores como o tempo durante o qual se ficou fora. Uma coisa é um intercâmbio de seis meses, outra é viver fora por seis anos, afirma. A dificuldade de readaptação é totalmente diferente para quem arruma um trabalho, ou casa com um estrangeiro e não tem perspectiva de voltar. Você cria mais laços. Ela afirma que o choque cultural é normal no processo de internacionalização. Você está tentando se adaptar a outra cultura, mas nesse processo reavalia a sua própria, afirma. O saldo pode ser, às vezes, um estranhamento, como a aversão à falta de pontualidade no Brasil, por exemplo.
Ela atende de executivos a jovens adultos que vão estudar fora e tem problemas de adaptação no retorno. Tive o caso de uma mulher de 19 anos que tentou se suicidar duas vezes depois que voltou de morar alguns anos na Itália e em Singapura. Atendi também um brasileiro que fez faculdade no Canadá, no segundo ano começou a usar drogas e teve que voltar. A experiência internacional é válida, mas nem para todo mundo é útil. Quando se passa muitos anos num país organizado, o dia a dia no Brasil na volta fica muito mais difícil, afirma.
Confira dicas da psicóloga para quem está fora e vai voltar para o Brasil:
- É bom manter o contato com a família e amigos com freqüência, sobretudo para quem vai ficar mais tempo. Manter uma base forte aqui faz toda diferença na volta
- Escolha com critério para quem você vai contar sobre a experiência, para evitar passar impressões erradas
- Manter uma rotina ajuda na sensação de ter um lar. Lar é a sensação de segurança que a casa passa para você. Os seis meses iniciais de quem muda muito são difíceis porque a casa não te dá essa segurança e a rotina ajuda
- É importante planejar financeiramente o retorno, sobretudo para jovens. Lá fora, jovens adultos conseguem se sustentar muito mais facilmente. Voltar a depender dos pais e aceitar as regras da casa é difícil
- O ideal é aproveitar o país mais desenvolvido para estudar e trazer alguma coisa além da língua. Falar inglês é o mínimo que o mercado cobra e não garante mais emprego
- É importante ter um plano para o retorno. Quem sai do Brasil com uma carreira iniciada precisa manter os contatos e se atualizar. Começar uma carreira fora pode deixar você sem se integrar nem lá nem aqui
-Não tenha vergonha de procurar ajuda no retorno se sentir que adaptação está sendo mais difícil do que o esperado
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