A igreja na roda viva da indústria cultural

A igreja na roda viva da indústria cultural

Fonte: Atualizado: sábado, 31 de maio de 2014 às 9:37

De benéfico veículo de humanização à tirano da informação, a Indústria Cultural revela sua real estratégia para igreja brasileira no século XXI: a total dominação. Se para Kant a razão se manifestava em dados imediatos de forma secreta, hoje ela dobra-se aos esquematismos de uma produção em massa que aliena e irracionaliza.

Quando o cinema e o rádio perderam a noção de serem empacotados como arte e se auto definiram como indústria, o prenúncio do porvir estava dado. Hoje tudo, ou quase tudo, antes de ser o que era, é de fato, naturalmente, um produto no sentido mais capitalista possível. Sendo assim, nessa nova dinâmica, um belo quadro, por exemplo, não tem o significado artístico de outrora em seus requisitos técnicos, específicos, de cosmovisão, de linguagem expressiva, etc., basta-lhe torná-lo uma simples mercadoria e então copiá-lo em série e vendê-lo popularmente como um utensílio qualquer.

Vivemos agora numa era onde a técnica adquire poder sobre a sociedade, e a sua racionalidade tecnológica representa a racionalidade da dominação que reprime o poder de escolha e autonomia do indivíduo. O bombardeio vem de todos os lados: num comercial de TV, num jingle de rádio, num outdoor da cidade, nas roupas, nas revistas, na internet, e nas pessoas já adequadas ao sistema. Roda Vida (canção de Chico Buarque) há décadas atrás já sintetizava a sensação que experimento atualmente ante a violenta ação da Indústria Cultural. Mas o que realmente me inquieta ao falar desse assunto é perceber que a grande maioria dos cristãos brasileiros, grande parte da igreja institucional, artistas, pastores, a muito estão sendo sugados pelas engrenagens dessa voraz dinâmica mercadológica; e o pior, o “evangelho” passou a ser campo de práticas e joguetes dessa indústria. Seu ofício maior é domesticar o cristão como um consumidor cultural da contemporaneidade.

Templos repletos de “adoradores” que nos seus cotidianos, fisgados pelos manjares popularizados, correm atrás do novo modelo de carro mais desejado, da nova TV de 2 cm de espessura, do mais novo celular com tecnologia de luxo, do modelo de roupa usada na novela do sucesso, enfim, de tudo que representar o prazer de status e de atualização do mundo. Desta forma a tal indústria apoiada na técnica faz uso da tecnologia para legitimar seus produtos culturais. Portanto o que mais interessa não é o conteúdo e sua relevância, mas sua sofisticação de entretenimento. Ou seja, a técnica sobrepuja o conjunto da obra. E não é isso que mais vemos hoje em pregações Técnicas, efeitos, domínio de público, construções de discursos à base de macetes de neurolinguística. Muita sofisticação, pouco conteúdo. “A racionalidade técnica é a própria racionalidade da dominação”.

(Theodor Adorno)

Os esquemas são as fórmulas de garantia da boa aceitação do produto. Portanto o que surge no mercado com cara de novidade, perpassa por um processo de maquiagem que torna o supérfluo atraente, porém sem que muitos notem que é uma ideia e produto refugo. O cimena, as novelas (praxe dos crentes modernos, após a Bíblia e os cultos) são bons exemplos dos esquematismos. Neste, prova-se então o quanto é raro o personagem vilão de um filme não ser aniquilado no final da história, já o protagonista, mesmo suportando a inúmeras investidas e agonizando suas forças, quase que nunca promove um final triste. Assim também ocorre em novelas. Mudam-se nomes, personagens, cenários, épocas, mas as cronologias de fatos sucedem a própria prévia do telespectador de um final feliz. São artes que vestem diversão, passatempo e falsa importância para a vida comum.

Na música comercial, cujo gospel atual se encaixa perfeitamente, os esquemas também são bem vindos. É uma ferramenta que gira em torno do próprio eixo. Nada se cria, como bem disse João Alexandre, o “novo” reaparece em “meras repetições”. Como músico, compartilho a minha simples visão ante a massificação de canções que vestem as ideias da indústria cultural atual:

Melodias óbvias e nada improváveis. Nota-se que a fórmula é a mesma para tantas canções (faça o teste, por exemplo, com canções do Diante do Trono: melodias de cor melancólica, com progressões de acordes invertidos, super-uso de terças e finais de frase com “SUS”, ou seja, suspenso). Se a canção for lenta, precisa te impelir ao emotivo, se for rápida precisa te impulsionar a tirar o pé do chão.

Refrão fácil de pegar. Aquele que vai de Sol, Ré, Mi menor e Dó, isto é, o velho esquema que funciona – o que não deixa de ser um padrão legal, mas tudo de mais é muito né? Assim o ouvinte vai ouvir e consumir um “novo” que não tem nada de novidade, muito pelo contrário, é apenas mais uma estandardização do familiar no inconsciente da massa.

Letra recheada de conceitos e noções soltas, vagando no ar, mas não problematizada, além de quase sempre trazer poesias demasiadas pobres. Se enche os espaços de verdades, rima paixão com coração, louvor com amor, diz que Deus é tudo, fala sobre sonhos, promessas, milagres, e pronto, o esquema tá novamente reproduzido e com certeza fará sucesso. Isto, claro, se deveu a domesticação do público por parte da indústria, que por sinal, não vê com bons olhos suscitar dúvidas, imaginação ou questionamentos. Nada pode ameaçar a prosperidade da fórmula e por em cheque a garantia do ciclo do $uce$$o.

Cara de popular com intenções ‘nada democráticas’. Nessa lógica, o público é ensinado a consumir sobre o referimento do que é popular e não do que é desejado. Aí notamos a vedação do poder escolha que ocorre seja na violência simbólica ou na segmentação do espaço como demarcação de grupo através dos meios de comunicação – dáí alguém pode pensar “aonde ouvir outra música cristã além das tocadas no rádio”? “Existe outra para que eu possa escolher”? Comumente, é natural domesticar os ouvintes a receberem “novas” canções sem esforço algum, do que induzi-los à busca (é o mercado do óbvio). Ou seja, a indústria mina, demarca e com suas fórmulas e esquemas ataca sem dar trégua.

Pois bem gente, aonde chegamos? Marketing eclesiásticos, consumismo desenfreado, venda de indulgências modernas, práticas domesticadas pela indústria da cultura, resignificação de novos grupos e cantore(a)s que giram num mesmo ciclo de pseudo-novidades, gosto pelo popular e não pelo fundamental… Muita superficialidade e pouca essencialidade. Muita diversão, muita distração…. é isso que ela quer pra nós.

Portanto, bom é reconceituar que a Indústria Cultural torna-se de fato a Indústria da Diversão, e nesta não se pretende pensar, senão esquecer a dor, mesmo onde quer que ela se mostre pra que assim, na base do divertimento instala-se a impotência, a legitimação, o uso e o abuso. Efetivamente, a libertação prometida pelo entretenimento é a do próprio pensamento como negação. E nós como Igreja, será que estamos atuando nossa faculdade de autonomia de pensamento? (Reflitamos) Almejo a que igreja brasileira se liberte das garras da manipulação. Almejo que as formas de culto, as nossas canções, nossos hobby’s, nossas práticas estejam além do que a indústria da cultura “gospel” nos oferece. Almejo que cantemos novas canções, que sejamos livres, criativos, pensantes, e de vida plena e dominada apenas pela graça e sabedoria vindas de Deus.

Por Antognoni Misael Via Púlpito Cristão

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